segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Sou
2008 está chegando ao fim e reconheço com uma pontinha de insatisfação que escrevi bem menos do que gostaria. Eu queria ter falado sobre tantas canções que me tocaram, mas nunca consigo entrar num acordo com o tempo, esse “compositor de destinos e tambor de todos os ritmos”. Abro meu bloquinho de notas e reencontro nomes de cds, cantores e compositores que foram se embolando e escondendo no decorrer das folhas e dos dias. Envergonhada assumo que devo uns cinco textos sobre excelentes trabalhos de artistas de Juiz de Fora, mas não me perguntem porque eles não saem, pois nem eu sei.


Vou passando as folhas do bloco (que já está despencando), anotações e mais anotações dispersas sobre trabalhos de João Donato, Gilberto Gil, Daniel Gonzaga, Joyce, Zeca Pagodinho, Mamão, Mônica Salmaso, João Nogueira, Lenine, Waly Salomão, Leny Andrade, Fernanda Cunha, Milton Nascimento, Cristóvão Bastos, Marcelo Camelo e tantos e tantos. Aproveitando o clima de natal, estou pensando em fazer uma boa ação, vou manda-lo de presente para o Nelson Motta, quem sabe ele aproveita alguma coisa em suas aparições na TV Globo.


Brincadeiras à parte. Vale a pena dedicar a última crônica do ano ao belo cd Nós, que inaugura a carreira solo do cantor, compositor e instrumentista Marcelo Camelo. O disco me chamou atenção de cara pela capa, feita em papelão numa tonalidade meio parda, que me lembrou o livrinho Na corda bamba, de Cacaso. Recordo como se fosse hoje o dia em que Pedro Landim (filho de Cacaso) me mostrou com todo cuidado e carinho seu único exemplar (muito bem conservado) desse microlivro de poemas, produzido nos moldes artesanais, como mandava a estética da poesia marginal. A concepção visual de Na corda bamba imitava o formato de um talão de cheques, em que os poemas-relâmpago revelavam uma linguagem que privilegiava o coloquial e o lirismo extraído das miudezas do cotidiano.


Nos tempos sombrios da ditadura militar Cacaso, Chico Alvim, Chacal e Ana Cristina César criaram poemas que se confundiam com a própria experiência de vida, viver a vida e o verso sem amarras era a ordem vigente no reino de invenção dos poetas marginais: “Poesia/ Eu não te escrevo/ Eu te/Vivo/E viva nós!” (Na corda bamba/Cacaso), “Vai ter uma festa/ que eu vou dançar/ até o sapato pedir para parar/ aí eu paro/ tiro o sapato/ e danço o resto da vida” (Rápido e Rasteiro/Chacal). Ana Cristina sobretudo evidenciava em seus poemas um forte traço confessional, um auto desvelar-se (na verdade forjado) que não passava de puro exercício literário: “O tempo fecha/ Sou fiel aos acontecimentos biográficos/ Mais do que fiel, oh, tão presa!”.


O cd de Marcelo Camelo é voltado para o tema da solidão, que se revela desde a proposta do título. A palavra “nós” ao ser lida de cabeça para baixo transforma-se em “sou”, ou seja, é a expressão do uno no múltiplo e vice versa. Neste trabalho o artista da vasão a todo o seu lirismo, deixando aflorar uma atmosfera melancólica. As composições Passeando e Saudade, interpretadas pelo piano solo de Clara Sverner reforçam o tom introspectivo de Nós. Essas canções mostram a influência da vertente clássica na formação de Camelo, que nos álbuns anteriores ficou um pouco oculta na imagem de músico do universo pop e rock.


Para captar a essência de Nós são necessárias várias audições. Camelo é músico das sutilezas e seu canto traz a beleza do legado cool de Chet Baker, Julie London e João Gilberto. Sua voz é intensa, mas sem excessos, valoriza o colorido de cada nota, respeita os intervalos, os silêncios. Téo e a gaivota, composição que abre o disco, coloca em destaque as guitarras de Fernando Cappi, Marinho e Marcelo Camelo. O mergulho nas coisas da alma se faz com uma levada leve e simultâneamente plena de força poética: “todos os encontros todos os poemas/manda me avisar/ todos os embates todos os dilemas/ manda me avisar/ eu sei/ todo ser humano/pode ser um anjo”.


A canção Janta, interpretada em dueto com Mallu Magalhães é um exercício de delicadeza. Desponta a pureza do canto de Mallu, jovem cantora de apenas quinze anos que Camelo descobriu no site de música myspace. Mallu canta tão suave e profundo alguns versos em inglês, que em certo momento me remeteu a Björk. Neste álbum o músico abre espaço para experimentar novas parcerias, como é o caso também da interpretação luxuosamente brasileira de Liberdade, realizada com sua voz, violão e a sanfona primorosa e pungente de Dominguinhos: “Promovi parcerias ao longo do disco e estou promovendo no show, e a cada segundo da minha vida, o tempo inteiro. Gosto de me aproximar das pessoas por esse tipo de inteligência coletiva. Gosto de ouvir as opiniões de todo mundo, gosto de saber o que os outros pensam. Então, eu não me sinto num momento sozinho, nem nada. Estou totalmente acompanhado de novas pessoas”.


A atmosfera introspectiva adquire o ápice em Santa Chuva, canção de Camelo gravada por Maria Rita em seu primeiro disco. O pianista e arranjador Gilson Peranzzetta recriou a música dando ênfase a densidade da linha melódica, reconstruída com um arranjo primoroso em que o violão preciso e enxuto de Camelo é revestido por violinos, violas e violoncelos. A letra reitera a sensação do lirismo melancólico, mesmo assim é tão bonito e sincero que em nenhum momento esbarra na pieguice. Em Nós/Sou, Marcelo Camelo criou asas e voou alto, vale compartilhar com ele essa Doce Solidão: “Posso estar só mas sou de todo mundo/por eu ser só um/e nem a não a nem dá solidão/ foge que eu te encontro eu já tenho asa/ isso lá é bom/ doce solidão?”.

Um comentário:

figbatera disse...

Caramba, Daniela, em um só mês vc postou aqui 50 (CINQUENTA) vezes e vem falar que escreveu pouco?
E não foram pequenos notas e, sim, longas resenhas (quase "ensaios") bem pesquisadas e analisadas; enfim, uma "produção" invejável; parabéns!
Um beijão procê...