domingo, 25 de março de 2012

Bracher



Faz um bom tempo que não escrevo uma crônica, hoje recordo-me com satisfação do período em que mantive assiduamente uma coluna no jornal de Cataguases. De quinze em quinze dias estava lá ao lado de outros colunistas também assíduos como os escritores Ronaldo Werneck e Francisco Marcelo Cabral. Cataguases é a “Paris da Zona da Mata” na visão lírica-utópica de Werneck, mas é fato que certo glamour ainda invade o imaginário de alguns habitantes que por ali se reúnem num pequeno calçadão evocando um tempo-memória não vividos pelas imagens de Humberto Mauro e a criação densa e simultaneamente iconoclasta de Rosário Fusco.

Um ano e meio caminhando entre igrejas, ladeiras, museus e casas e mais casas de Ouro Preto, me invade uma sensação semelhante a que tive anos atrás mirando um jardim composto por Burle Marx, no Hotel Cataguases. Essa sensação é difícil de traduzir em palavras e também não encontrei uma canção que desse conta de me traduzir em verso e som. É uma espécie de melancolia aliada a uma solidão contemplativa que me faz alegre e triste. “Estou aqui de passagem, esse mundo não é meu, esse mundo não é seu”, Marisa Monte sopra nos meus ouvidos esse verso com sua voz de sereia e vou juntando as imagens desses passageiros que encontro a todo momento na Rua Direita, ou seria esquerda? O bar Barroco, ou melhor: Barro Oco, na insistente versão de meu amigo Serginho, é uma mistura de Lapa com Baixo Leblon, botequim pé sujo e mil outras associações que sempre lhe cabem bem. Cabeludos, carecas, pretos, brancos, hippies, estudantes, turistas brasileiros, turistas franceses, turistas italianos, turistas bolivianos,turistas argentinos, professores, ricos, pobres, intelectuais, pseudo-intelectuais, bem vestidos, mal vestidos, musicais, desafinados, filósofos, caras de pau, saudosistas, artistas, sonhadores, gente e mais gente vejo por ali quando às vezes entro para comprar uma água gasosa ou para saborear a tão famosa coxinha. Verdade que já me sentei ali algumas vezes, a primeira foi com papai na nossa primeira visita a Vila Rica há cerca de vinte e três anos, em que barroqueamos até o dia clarear. Coca Cola, cerveja, tira gosto, violão e uma gente muito doida que nunca me fez apagar aquela noite única.

Ganhei do pintor, meu mais novo amigo de infância e conterrâneo Carlos Bracher, seu tão bonito “Ouro Preto. Olhar Poético”: “Daniela amada dos tempos e memórias impregnadas, dos seus e da própria vida, que virá, tanto quanto da Havida, daquela que lá ficou nos registros de mim, Juiz de Fora. Todo afeto. Carlos Bracher 2/12/2011”. No claro escuro daquele corredor da estação ferroviária, espaço em que acontecia a vernissage, li e reli, li e reli a dedicatória de Bracher que muito talvez dissesse do meu estar aqui, Bracher que foi um amigo irmão de meu saudoso e querido tio Luiz Affonso, selou naquele instante nossa mais “nova velha amizade”.

Ouro Preto desponta nas páginas deste livro em que Bracher percorre Vila Rica com cores e palavras, objetos como uma cadeira de braço do século XVIII e uma cama que data da mesma época, transformam-se diante de seu olhar pictórico. Salto duas páginas e vejo a foto envelhecida de Dona Olímpia tirada em 1962, e me remeto a Milton Nascimento e Toninho Horta no antológico “Terra dos pássaros”, nesse instante Minas arde nos meus olhos e ouvidos: “É ficou assim, caiu no ar/ É passou assim, não quer passar/ Não para de doer/ E não vai parar mais/Nem de vez em quando vai sarar/ Me xinga me deixa me cega/ Mas vê se não esquece de voltar”. Praça Tiradentes acinzentada, Casa de Gonzaga em fluxos rosados, igreja de São Francisco de Assis serena e tensa em sua luminosidade, Casa de Claúdio Manuel da Costa expandindo-se sobre um semi teto rosa e cinza, o círculo sóbrio que recria labirinticamente- uterinamente a Mina do Chico Rei, a última morada de Guignard resplandece plena de sensibilidade e delicadeza aos olhos de um pintor que celebra um igual: “O bairro de Antônio Dias era uma de suas temáticas preferidas. Adorava crianças e, quando instalava seu cavalete nas redondezas de Antônio Dias ou quaisquer outros lugares, seus bolsos estavam sempre cheios de balas para presenteá-las à meninada. Sentava-se nos bancos da ponte de Marília, observando, desenhando, fruindo a paisagem e as pessoas. Era um homem de modos simples e a autenticidade era sua marca vulnerável”.

Parece-me que Bracher re-constrói Ouro Preto, um pouco mais ensolarada? Nos cruzamos em poucas ocasiões, embora ele entusiasticamente sempre fale da nossa futura longa conversa- entrevista que acontecerá um dia. Topei pela última vez com ele entre as estantes de um supermercado, afobado procurava estopas para limpar os dedos sujos de tinta. Um momento descontraído e absolutamente cotidiano. A vida prática naquele instante suplantava o lirismo. Rumo a uma cidade o qual não me recordo o nome, Bracher pintaria uma grande tela, trabalho que ele se preparava para fazer sob encomenda, feliz da vida e com uma empolgação de menino. Antes de se despedir pediu-me meu endereço para o envio de “uma coisa”. Essa coisa chegou num envelope branco médio, é um vídeo seu acrescido de um texto sobre a fábrica “Louçarte”, existente em Juiz de Fora. Delicadezas que tanto me movem e comovem.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Entrevista com o pianista André Mehmari



Daniela Aragão: Oi André, é um prazer e uma honra conversar com você que é o terceiro pianista a ser entrevistado. Márcio Hallack e Cristovão Bastos já passaram por aqui e falaram sobre suas músicas, projetos e apreciações. Recordo-me de que nos conhecemos na ocasião da homenagem ao Cacaso realizada pela Rosa Emília no CCBB do Rio, você participou do espetáculo acompanhando Paula Santoro, Claudio Nucci, Rosa Emília, Sergio Santos entre outros. Gosto imensamente da sua maneira de tocar que parece aliar o popular e o erudito, enfim, como começou a música wm sua vida?

André Mehmari:Minha vida começou no banquinho do piano, literalmente. Minha mãe iniciou o trabalho de parto enquanto tocava algo no piano Bentley que meu pai havia presenteado a ela quando soube da gravidez. Podia ser Chopin, Nazareth ou Jobim mas ela não se lembra. Não venho de família de músicos, mas ela garantiu um ambiente musical rico e variado em casa, tocando piano, violão, acordeom (seu primeiro instrumento) e cantando.

Daniela Aragão: Você parece-me um pianista de formação clássica que no percurso foi incorporando outras vertentes como o jazz. Como se deu sua formação?


André Mehmari:Na verdade deu-se algo muito próximo do inverso disso que você descreve. Minha formação foi bastante irregular e singular. Comecei por um curso de órgão eletrônico, febre dos anos 80 e já saí tocando em bailes aos 9, 10 anos de idade... na adolescência mergulhei nos clássicos e me enamorei do jazz. O ímpeto de improvisador sempre existiu em mim. Desde a infância, assimilei todo tipo de música ao meu redor, sem rótulos nem pré julgamentos. Isso se reflete na música que faço hoje.


Daniela Aragão: Você também compõe trilhas para cinema e peças eruditas, como foi a experiência de compor e gravar a música do ballet “Sete” para a Companhia Paulista de dança?


André Mehmari: Compus já quatro balés: Sete, Bach, Abacada e Ballo. Este ano escreverei mais um. É algo muito rico para o compositor, esse namoro com o movimento do corpo humano, com a dança. O que veio primeiro, a dança ou a música? Essas artes são irmãs e se adoram.

Daniela Aragão: Um de seus trabalhos que mais me encantou foi o que desenvolveu ao lado da cantora Ná Ozzetti, somente o duo piano e voz e uma cumplicidade musical plena que deixa evidente para o ouvinte o trato delicado de cada nuance da melodia. O ciúme de Caetano Veloso ganha uma versão impactante de vocês. Como foi trabalhar com uma cantora como Ná Ozzetti?

André Mehmari: Este trabalho é importantíssimo nas nossas carreiras. O trabalho com a Ná foi sempre muito fluente e natural, desde a escolha das canções que abordaríamos no nosso CD piano e voz. De fato, trata-se de um trabalho onde cada nota tem sua razão de existir, tudo foi muito bem cuidado e gestado, pois registramos todos os ensaios até o dia do primeiro concerto. Isso nos deu um controle sobre o amadurecimento profundo do processo criativo, um recurso que só o tempo permite. O CD e o DVD são discos dos quais me orgulho muito e a Ná tem sido uma parceira constante em minha carreira.

Daniela Aragão: Você é muito jovem e certamente com muitos projetos pela frente. Na vertente mais direcionada para a música popular brasileira, qual trabalho você sonha em realizar?

André Mehmari:Não me vejo encaixado (literalmente) numa vertente ou linha musical. Tenho uma natureza inquieta, transito por ambientes musicais muito variados e distintos, aprendo com tudo e todos, filtro o que não gosto e minha música é o resultado dessa vivência musical rica e intensa. Gosto de música bonita, boa e inteligente.

Daniela Aragão: Você já gravou um disco inteiramente autoral?


André Mehmari: ...De árvores e valsas (2008) é o primeiro projeto totalmente dedicado a composições próprias. Mais recentemente, o Canteiro também é só de coisas minhas, todas dialogando com a tradição da canção, algo que me é muito caro.


Daniela Aragão:Quais são os projetos atuais?

O lançamento do CD duplo Canteiro, a finalização do novo CD com Chico Pinheiro e Sérgio Santos, previsto ainda para este ano e muitas composições e e encomendas já em andamento, para orquestras e grupos variados.