Tenho ouvido falar sobre Mart’nália por todos os cantos. A mídia, que sempre gosta de anunciar os talentos do momento, já chegou a elegê-la a maior cantora do Brasil. Os rótulos alimentam o sistema mercadológico, que sobrevive justamente pela criação de artistas, modelos, escritores e tendências “fast food", imposturas que não sobrevivem mais de uma temporada anual.
Mart’nália já ultrapassou algumas estações com segurança e talento. Mesmo assim, considerá-la a maior cantora do Brasil seria um exagero. Já se foi a época em que eu buscava “o melhor”. Hoje convivo bem numa miscelânea antropofágica, pós-tropicalista, pós-moderna, e por isso mesmo transito sem crise entre as obras das margens e dos centros. Escolher subalternos pode ser uma boa pedida, ficar no entrelugar pode não ser a melhor opção.
Vi Mart’nália ao vivo somente uma vez, e numa passagem muito rápida, num show de seu pai, Martinho da Vila. Nos idos de 1990 ela era uma garota que mostrava muito swing, mas que eu não imaginei que fosse desenvolver uma carreira solo como cantora.
Hoje, “Menino do Rio”, seu mais recente trabalho e o quinto de sua trajetória, é a minha trilha sonora predileta enquanto faço minha caminhada diária pela esteira. A atividade tão monótona torna-se sempre mais interessante, pois observo um detalhe aqui, uma nuance do arranjo acolá e, melhor de tudo, o tempo passa e não me enjôo nem da esteira, nem de Mart’nália.
O álbum traz o samba como linha de frente: “O samba corre em minhas veias/ O samba é a minha escola/ Se levo um samba do Candeia/ Ou do Paulinho da Viola/ A Dona Ivone me incendeia/ E o Martinho é quem/me consola/É a luz que sempre me clareia/ E a minha emoção decola” (Fred Camacho e Jorge Agrião). Mas também revela o talento da vertente de compositora e cantora pop que é Mart’nália.
Na primeira audição, tocou-me a interpretação delicada e contida que ela deu para a canção “Só Deus é quem sabe”, de Guilherme Arantes, que parecia estar perdida nos recônditos do tempo. Num arranjo que prima pelo minimalismo, a cantora é acompanhada pelos violões de Jaime Alem e pelo baixo de Jorge Helder, duas feras.A voz rouca e rascante, que faz lembrar em muitas ocasiões Elza Soares, destaca os versos em tom quase narrativo: “As vezes a paixão nos traiu/As vezes foi a voz que mentiu/Mas, nada disso importa/O que vale é o que a sorte escreveu/Só Deus é quem sabe do amor/ Eu não sei nada/ Só sei que a vida nos prepara cada cilada/ E é inútil se tentar fugir da longa estrada.”
Mart’nália herdou do pai a manemolência e a ginga de malandra carioca: “Acompanhei meu pai durante muitos anos no palco. Depois fui tocar com o Ivan Lins. Aprendi a respeitar a música, a ser fiel ao palco e à arte”. Ao interpretar sambas, ela deita e rola no seu métier. Em “Boto meu povo na rua” (Arlindo Cruz, Acyr Marques e Ronaldinho), canção que caberia perfeitamente também em Zeca Pagodinho, outro malandro de carteirinha, Mart’nália se exprime como uma brasileira no sangue e na raça: “Pra te ganhar/ Dei sugesta em vagabundo/ Dei a volta pelo mundo/ Eu mergulhei fundo sem medo de errar/ E você fica nessa querendo esnobar/ Meu amor que é tão profundo/ Tá na hora de parar com isso ou/ Eu jogo um feitiço pra te apaixonar”.
Neste trabalho Mart’nália faz músicas em parceria com Zélia Duncan, Paulinho Black, Paulinho Moska, Mombaça e Ana Costa. Ótima compositora de baladas, a artista traz como destaque a suavidade de suas linhas melódicas que valorizam a intenção das letras. Em “Pára comigo”, parceria com Paulinho Black, o casamento é perfeito. A levada do violão de Jaime Alem, que faz contraponto com o baixo de Arthur Maia, exalta o tom coloquial dos versos: “Madrugada/ Que aos pouquinhos vem chegando/Sorrindo, cantando/E esperando por nós dois/Pra curtir”.
Mart’nália só não pode ser considerada a maior cantora do Brasil porque a ala feminina da MPB tem crescido em qualidade e diversidade. Certamente essa “menina do Rio” está entre as melhores descobertas da nossa música e é uma de nossas mais autênticas intérpretes. Lembro-me de ter pensando na força de Clementina de Jesus ao ouvir sua bela interpretação para o samba de roda “Nas águas de Amaralina”. Mart’nália é África e América: a terra, o ritmo, a cor, o sol, a noite, os batuques. A pureza e a malícia.
Quando assisti ao filme “Vinicius” de Miguel Faria Jr, fiquei encantada com sua interpretação para “Sei lá... a vida tem sempre razão” (Toquinho e Vinicius). Entre tantos escolados como Edu Lobo, Gilberto Gil e Carlos Lyra, Mart’nália deu um banho de talento e presença de palco. No seu jeito único de moleca, a cantora criou um swing e uma divisão única para o samba: “Sempre fui palhaça, risonha e a mais espoleta da turma. Sou bem-humorada e muito festeira”.
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