Noite abafada de primavera na Livraria da Travessa de Ipanema, no Rio. Adriana Calcanhotto lançava Saga Lusa, seu primeiro livro. Comprei-o e li numa tacada só, mas guardo meus comentários para uma próxima crônica, pois hoje quero falar sobre Jards Macalé, que também estava no lançamento.
O evento pululava de personalidades como o poeta Ferreira Gullar, o quasíssimo prefeito Fernando Gabeira, o tremendão Erasmo Carlos, o produtor musical André Midani, o compositor Jards Macalé e tantos e tantos. Uma fotógrafa que me pareceu muito bem chegada no meio artístico ia registrando inusitadas parcerias: “Macalé, junta com o Gabeira e o Ferreira Gullar, agora o Midani com o Gullar ...”
Com uma bolsa de viagem a tiracolo, e numa das mãos o exemplar de capa verde do meu Saga Lusa, permaneci um bom tempo tal qual o poeta gauche de Itabira, postada num canto observando o entra e sai das celebridades. Jards Macalé, o Macao, circulava pra lá e pra cá enquanto eu, espectadora isolada, lutava contra minha timidez, tentando arrumar algum jeito de falar com ele, mas sem que parecesse mera tietagem.
Encerrei uma crônica que escrevi há pouco tempo, Cafés sons e chocolate, com um breve comentário sobre o encantamento que me proporcionou a audição do novo cd do Macao. Na ocasião não estiquei o assunto por falta de espaço (estou me policiando com as laudas do jornal), mas prometi aos leitores um texto sobre esse grande artista de que tanto gosto. Com poucas linhas dedicadas ao Macao, consegui causar um certo rebuliço no meu correio eletrônico, recebi emails conselheiros, simpáticos e até meio raivosos: “Pô, que boicote é esse ao Macalé, você anuncia o cara e não desenvolve/ O Macalé é fodão, eu adoro o Movimento dos barcos/Macalé toca um violão...”
Voltando à livraria, de repente Macao deu uma escapolida à francesa para fumar um cigarro do lado de fora. Foi quando aproveitei a oportunidade e com uma leve cutucada em seu braço soltei um “Adorei seu cd, Ne me quitte pas me arrebatou”. Ele estava tão absorto, jogando a fumaça e contemplando as capas coloridas dos livros expostos na vitrine, que senti que levou um pouco de susto com minha súbita abordagem. Mas, bem-humorado, devolveu: “É mesmo, olha só, mas e o violão?”
Falei para ele que o que tinha chamado mais minha atenção no seu cd era o som “sujo” do violão, totalmente cru, despido de interferências “organizadoras” como mixagens e efeitos. Com sua inquietude bem peculiar, Macao foi me explicando o processo de feitura do disco. Da proposta inicial centrada no binômio voz e violão os caminhos foram conduzindo no sentido da colocação de mais instrumentos: “Farinha do desprezo, que regravei, seria só voz e violão, mas daí senti que precisava encher mais e fui colocando mais violões, que fui gravando e encorpando. Sou um Bossa Nova transmudado”.
Passamos um bom tempo conversando sobre linguagens musicais, a diferença tão grande que é fazer um som no estúdio e fora dele. Macao se mostrava ora satisfeito ora insatisfeito com o desempenho do seu violão registrado no cd: “Quando me apresento para uma platéia com voz e violão o resultado é outro, a atenção se fixa no todo. Já no estúdio o violão fica totalmente em evidência”. Ouvir a revelação desse violão “desprotegido” e tão emocionalmente humano foi a melhor parte da conversa.
Este ano fiz um curso na PUC-Rio com Júlio Diniz, um professor que desenvolve um estudo muito interessante centrado na questão da voz, denominado “voz como rasura ou assinatura”. Ele pesquisa a performance da voz dos cantores, a transformação que a atuação da voz do intérprete é capaz de realizar numa canção. Júlio faz um percurso pela genealogia do canto na MPB, da tradição do excesso que marcou os intérpretes da era do rádio até a revolução instaurada pelo minimalismo do canto de João Gilberto. Fiquei pensando muito nesse poder do canto ao ouvir Macao interpretando Ne me quitte pas: “Ouvi muito, muito, muito Jacques Brel e fiz um show caindo em prantos!, ele me disse.
Já ouvi esse clássico na voz de muita gente brasileira, de Maysa a Ângela Ro Ro, mas a interpretação de Macao transcende: é única, inigualável, puramente rasurante. O artista se apropria de modo visceral dos sons e dos versos da canção, instaurando sua marca definitiva. O piano de Cristóvão Bastos acompanha o canto pleno de carga dramática. É particularmente belo o trecho em que a voz rouca de Macao se eleva nos erres franceses e vislumbra uma poética das cores: “Et quand vient le soir/ Pour qu’un ciel flamboie/ le rouge et le noir/Ne s’epousent-ils pas”.
E por falar em cores, em certo momento da nossa conversa Macao fixou os olhos na vitrine onde se exibiam os exemplares de Saga Lusa em várias opções de capas- azul, laranja, verde e rosa – e comentou: “Puxa, Adriana está lançando todos esses livros de uma vez?”.Não Macao, eu disse, é um livro só, pura estratégia de marketing. “E eu ia saber disso, pô!”, ele rebateu.
Caímos na risada e, motivada pelo clima de leveza, lancei uma pergunta que talvez fosse por demais óbvia, mas que sempre me intrigou: Macao, porque te chamam de marginal?. “ Marginal? Maldito em relação a quê? Eles começaram a me chamar de maldito e ao Melodia porque não conseguiam nos classificar, nos enquadrar. Maldito é a pqp. Eles têm que adjetivar, rotular, e para mim adjetivar nesses casos de maldito é fechar portas. Colocar no caixão e fechar a porta”.
“ O artista deve estar aberto o tempo inteiro para transformar os objetos de arte em outros objetos de arte. Mamãe, que tem mais de oitenta anos, fala comigo: “Meu filho, suas músicas são tão lindas, bem feitas, não sei porquê você é marginal.” Vai lá saber. Você deveriam entrevistar as pessoas que falam de mim, do marginal Macao. Eu próprio ouço histórias inacreditáveis a meu respeito”...
Re-ouço agora The archaic lonely star blues, composição de Macao em parceria com Duda Machado. Um retrato do artista incansável em permanente movimento criativo, marginal ou não, Macao é único e basta: “Você sabe/ continuo o mesmo/ eu ainda preciso me olhar no espelho/ amanhã ou depois/ você sabe onde me encontrar/ eu vou ficar aqui mesmo/ cantando dançando chorando/morrendo, eu sei/ não me diga”.
O evento pululava de personalidades como o poeta Ferreira Gullar, o quasíssimo prefeito Fernando Gabeira, o tremendão Erasmo Carlos, o produtor musical André Midani, o compositor Jards Macalé e tantos e tantos. Uma fotógrafa que me pareceu muito bem chegada no meio artístico ia registrando inusitadas parcerias: “Macalé, junta com o Gabeira e o Ferreira Gullar, agora o Midani com o Gullar ...”
Com uma bolsa de viagem a tiracolo, e numa das mãos o exemplar de capa verde do meu Saga Lusa, permaneci um bom tempo tal qual o poeta gauche de Itabira, postada num canto observando o entra e sai das celebridades. Jards Macalé, o Macao, circulava pra lá e pra cá enquanto eu, espectadora isolada, lutava contra minha timidez, tentando arrumar algum jeito de falar com ele, mas sem que parecesse mera tietagem.
Encerrei uma crônica que escrevi há pouco tempo, Cafés sons e chocolate, com um breve comentário sobre o encantamento que me proporcionou a audição do novo cd do Macao. Na ocasião não estiquei o assunto por falta de espaço (estou me policiando com as laudas do jornal), mas prometi aos leitores um texto sobre esse grande artista de que tanto gosto. Com poucas linhas dedicadas ao Macao, consegui causar um certo rebuliço no meu correio eletrônico, recebi emails conselheiros, simpáticos e até meio raivosos: “Pô, que boicote é esse ao Macalé, você anuncia o cara e não desenvolve/ O Macalé é fodão, eu adoro o Movimento dos barcos/Macalé toca um violão...”
Voltando à livraria, de repente Macao deu uma escapolida à francesa para fumar um cigarro do lado de fora. Foi quando aproveitei a oportunidade e com uma leve cutucada em seu braço soltei um “Adorei seu cd, Ne me quitte pas me arrebatou”. Ele estava tão absorto, jogando a fumaça e contemplando as capas coloridas dos livros expostos na vitrine, que senti que levou um pouco de susto com minha súbita abordagem. Mas, bem-humorado, devolveu: “É mesmo, olha só, mas e o violão?”
Falei para ele que o que tinha chamado mais minha atenção no seu cd era o som “sujo” do violão, totalmente cru, despido de interferências “organizadoras” como mixagens e efeitos. Com sua inquietude bem peculiar, Macao foi me explicando o processo de feitura do disco. Da proposta inicial centrada no binômio voz e violão os caminhos foram conduzindo no sentido da colocação de mais instrumentos: “Farinha do desprezo, que regravei, seria só voz e violão, mas daí senti que precisava encher mais e fui colocando mais violões, que fui gravando e encorpando. Sou um Bossa Nova transmudado”.
Passamos um bom tempo conversando sobre linguagens musicais, a diferença tão grande que é fazer um som no estúdio e fora dele. Macao se mostrava ora satisfeito ora insatisfeito com o desempenho do seu violão registrado no cd: “Quando me apresento para uma platéia com voz e violão o resultado é outro, a atenção se fixa no todo. Já no estúdio o violão fica totalmente em evidência”. Ouvir a revelação desse violão “desprotegido” e tão emocionalmente humano foi a melhor parte da conversa.
Este ano fiz um curso na PUC-Rio com Júlio Diniz, um professor que desenvolve um estudo muito interessante centrado na questão da voz, denominado “voz como rasura ou assinatura”. Ele pesquisa a performance da voz dos cantores, a transformação que a atuação da voz do intérprete é capaz de realizar numa canção. Júlio faz um percurso pela genealogia do canto na MPB, da tradição do excesso que marcou os intérpretes da era do rádio até a revolução instaurada pelo minimalismo do canto de João Gilberto. Fiquei pensando muito nesse poder do canto ao ouvir Macao interpretando Ne me quitte pas: “Ouvi muito, muito, muito Jacques Brel e fiz um show caindo em prantos!, ele me disse.
Já ouvi esse clássico na voz de muita gente brasileira, de Maysa a Ângela Ro Ro, mas a interpretação de Macao transcende: é única, inigualável, puramente rasurante. O artista se apropria de modo visceral dos sons e dos versos da canção, instaurando sua marca definitiva. O piano de Cristóvão Bastos acompanha o canto pleno de carga dramática. É particularmente belo o trecho em que a voz rouca de Macao se eleva nos erres franceses e vislumbra uma poética das cores: “Et quand vient le soir/ Pour qu’un ciel flamboie/ le rouge et le noir/Ne s’epousent-ils pas”.
E por falar em cores, em certo momento da nossa conversa Macao fixou os olhos na vitrine onde se exibiam os exemplares de Saga Lusa em várias opções de capas- azul, laranja, verde e rosa – e comentou: “Puxa, Adriana está lançando todos esses livros de uma vez?”.Não Macao, eu disse, é um livro só, pura estratégia de marketing. “E eu ia saber disso, pô!”, ele rebateu.
Caímos na risada e, motivada pelo clima de leveza, lancei uma pergunta que talvez fosse por demais óbvia, mas que sempre me intrigou: Macao, porque te chamam de marginal?. “ Marginal? Maldito em relação a quê? Eles começaram a me chamar de maldito e ao Melodia porque não conseguiam nos classificar, nos enquadrar. Maldito é a pqp. Eles têm que adjetivar, rotular, e para mim adjetivar nesses casos de maldito é fechar portas. Colocar no caixão e fechar a porta”.
“ O artista deve estar aberto o tempo inteiro para transformar os objetos de arte em outros objetos de arte. Mamãe, que tem mais de oitenta anos, fala comigo: “Meu filho, suas músicas são tão lindas, bem feitas, não sei porquê você é marginal.” Vai lá saber. Você deveriam entrevistar as pessoas que falam de mim, do marginal Macao. Eu próprio ouço histórias inacreditáveis a meu respeito”...
Re-ouço agora The archaic lonely star blues, composição de Macao em parceria com Duda Machado. Um retrato do artista incansável em permanente movimento criativo, marginal ou não, Macao é único e basta: “Você sabe/ continuo o mesmo/ eu ainda preciso me olhar no espelho/ amanhã ou depois/ você sabe onde me encontrar/ eu vou ficar aqui mesmo/ cantando dançando chorando/morrendo, eu sei/ não me diga”.
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