Fiz essa crônica para as minhas amigas lúdicas Isabella Ladeira e Rosana Brito.Agora tive a honra de escrever o texto de apresentação para o Dvd que elas acabam de lançar. Vale a pena ouvir e se ludificar com essa turma de mineiros da pesada. Sucesso!!
Diversões lúdicas
Teatro Sesiminas de Belo Horizonte lotado, cortinas se abrem e os lúdicos atacam: “Abre alas pra minha folia/Já está chegando a hora/Abre alas pra minha bandeira/Já está chegando a hora”. A canção de Ivan Lins e Vítor Martins renasce plena de força e lúdica magia, servindo de passaporte para um universo de ritmos, invenções e alegria. É sempre com encantamento e emoção de descoberta que assisto às apresentações do Lúdica Música!. Guardo na memória o momento único em que, há dezessete anos, vi pela primeira vez Isabella Ladeira, Rosana Brito e Joãozinho da Percussão apresentando-se no extinto Teatro São Mateus, em Juiz de Fora. A performance dos três era incrível: com apenas um violão, vozes e instrumentos percussivos o grupo fazia um som sofisticado e com uma marca autoral muito própria. Eles eram acústicos antes que o gênero se tornasse moda.
Acabo de ver o dvd Diversões lúdicas e comprovo com satisfação que sou testemunha da história de formação da carreira do Lúdica Música. Diversões Lúdicas é o reflexo-resultado do trabalho desses músicos que só vêm ganhando em qualidade e amadurecimento no longo percurso pelos palcos do Brasil e do exterior. Com leveza, afinação, criatividade e astral nas alturas as band leaders Rosana Brito e Isabella Ladeira conduzem o espetáculo ao lado dos músicos: Gutti Mendes (guitarra), Gladston (bateria), Messias Lott (baixo) e Gustavo Lira (percussão).
A produção impecável se nota desde a concepção visual do encarte do dvd, que segue as prerrogativas lúdicas do grupo. Érika Machado desenhou para a capa duas graciosas meninas que reproduzem com riqueza de detalhes as cantoras e instrumentistas Rosana e Isabella. Muitas cores se distribuem num espaço aberto para a interatividade em que a lei é se divertir com o caça palavras, o labirinto, e as duas cantoras-bonequinhas que também estão dentro do encarte para serem cortadas e ganharem movimento, vestidas de acordo com o desejo do ouvinte. Sedução pura!
No palco, os músicos revisitam canções consagradas do repertório do primeiro disco (época do vinil) como Narciso, de Rosana Brito, e Samba na cidade, de Carlinhos Vergueiro. A relação de afeto e cumplicidade entre Carlinhos e os artistas é revelada no making of, em que em momentos de descontração eles relembram antigos repertórios e até debatem a condição do artista brasileiro. A síntese exata fica com o Samba na cidade: “Trabalho o ano inteiro sem tocar no rádio/Vida de artista marginalizado/ Nada pra beber, nada pra fumar/ Nada pra ligar, assim não dá/ Se não der vai ter que dar/ Como é que vai ficar/Quero um samba na cidade/ Eu não posso morrer de saudade”.
O espetáculo engrandece com a participação de convidados como Vander Lee, Maurício Tizumba, Chico Amaral e as meninas do Harém da Imaginação. O maior trunfo do grupo é o poder que ele possui de recriar canções. Nos momento que o “Lúdica” privilegia o humor, a interação com a platéia é absoluta. Tudo parece ir se inventando e reinventando no calor da hora, e carnavalizar torna-se imperativo nas performances. Isabella toca pandeiro e canta dialogando com Rosana que devolve pra Gutti, que emite uma nota respondendo à recepção do público.
Um dos momentos mais tocantes do show acontece quando o Lúdica Música se junta a Maurício Tizumba e às meninas do Harém da Imaginação, para interpretar Bandeira do Divino, de Ivan Lins e Vítor Martins. A releitura ganha um arranjo que valoriza o lirismo, onde a herança africana acentuada pelo canto de Tizumba, e suas evocações que remetem às manifestações do congado, explicita a força da musicalidade das Minas Gerais. O canto das meninas do Harém produz uma sonoridade única em contraponto com as vozes de Rosana e Isabella. Vale destacar os momentos em que elas cantam em uníssono, numa afinação absoluta. A voz mais para grave da cantora Rosana se casa muito bem com o tom mais agudo de Isabella e elas exploram todos os recursos que esse contraste favorece.
Cotidiano de Chico Buarque também adquire um novo e interessante formato na versão lúdica. Os versos do compositor, que exacerbam o movimento enfadonho da rotina de um casal, são interpretados numa levada monocórdica em que Isabella toca o bumbo como se fizesse a marcação dos momentos repetitivos do dia: “Todo dia ela faz tudo sempre igual/me sacode às seis horas da manhã/me sorri um sorriso pontual/e me beija com a boca de hortelã//todo dia eu só penso em poder parar/meio-dia eu só penso em dizer não/depois penso na vida pra levar/e me calo com a boca de feijão”.
O ouvinte/espectador, além de usufruir do show, tem a oportunidade de conhecer a história do grupo desde sua formação. Fotos de arquivo, depoimentos e imagens raras envelhecidas pelo tempo compõem a trajetória desses artistas que demonstram acima de tudo a preocupação com a expressão de uma música que revela intensa brasilidade. Sem cair no kitsch da atração para turista.
Emocionou-me o depoimento de Ivan Lins, o “sócio avalista”, conforme a designação dos lúdicos. Ivan também faz parte da história do Lúdica Música!, tanto que pouco conteve a emoção ao dizer: “Como elas são bárbaras. A forma como vocês apareceram na minha vida, como mineiros completamente iluminados, alegres, completamente entregues à música. A linguagem de vocês é muito impregnada dessa mineirice.Vocês têm o maior respeito pela música e vocês fazem a música de vocês e acreditam na música como a liberdade”.
O show vai chegando ao fim e a platéia se mostra completamente seduzida, entregue, solta, risonha. Essa é pra acabar, canção alto astral e cheia de senso de humor de Luiz Tatit, se encaixa como uma luva no repertório dos lúdicos, que tentam encerrar o espetáculo que parece nunca ter fim: “Sempre foi difícil terminar/sempre é um suplício esse momento/mas temos que acabar/não adianta essa demora/se tudo acaba um dia/ então por que não agora?/ Vamos entender esse momento/Vamos acabar enquanto é tempo...”
Incluo-me na categoria de Ivan Lins: sou sócia, fã, avalista do Lúdica Música!. Sucesso pra vocês!
MPB Ludificada
MPB Ludificada
Juiz de Fora, noite quente de sábado nos idos de 1991. Eu comia batatas fritas com queijo e coca cola comum (naquele tempo não havia ainda a febre dos diets), enquanto papai tomava copos e copos de chope e vez ou outra dava uma beliscadinha na batata. Estávamos no extinto teatro São Mateus, aguardando o show do Lúdica Música. Na verdade quem esperava a surpresa era eu, pois papai já tinha visto no mínimo umas quatro vezes e ficava me incitando com sua nova descoberta musical.
Não demorou muito e o palco se tornou pequeno diante da grandiosidade do trio: Joãozinho da Percussão, Rosana Brito e Isabella Ladeira. O impacto visual guardo na memória até hoje: uma mulher muito grande e bela e dois baixinhos geniais. Levou poucos segundos para que essa primeira impressão passasse e desse lugar a uma alternância infinda de tamanhos, timbres, posições, suíngues e levadas. O grupo fazia jus ao nome que me seduziu tanto: a “base não era uma só”, mas uma mistura riquíssima de improvisações rítmicas, que era a encarnação original de uma estética carnavalizadora.
Nada de querer compará-los com os tropicalistas, Novos Baianos, sambistas e nem com os papas da MPB. O Lúdica Música nasceu com identidade própria, fruto de um mergulho antropofágico no que de melhor se produziu e se produz na música popular brasileira.Mantendo-se com um trabalho independente dos apelos mercadológicos, o grupo comemora seus quinze anos de existência com o cd “Então eu canto e nem me lembro pra onde as coisas vão”. Rosana Brito e Isabella Ladeira, líderes da banda, cantoras, compositoras e instrumentistas, estão visivelmente amadurecidas. A bela voz de Isabella, mais para o agudo e com enormes potencialidades de expressão, faz contraponto com o timbre mais grave e o timing perfeito de Rosana. Esta é daquelas cantoras raras, Rosana “tem cabeça de músico”, como dizia o João Medeiros, que entendia tudo e mais um pouco sobre a boa MPB. Se me explico bem, cantoras com “cabeça de músico” são aquelas que não interpretam somente a canção, mas que são espécies de co-autoras. Acrescentam detalhes aqui, quebram o ritmo acolá, brincam com a segurança proporcionada por seus ouvidos privilegiados. Rita Lee e Roberto de Carvalho quando ouviram “Alô Alô Marciano”, na voz de Elis Regina, ficaram impressionados com os toques pessoais da Pimentinha.
Quase a totalidade das composições são de autoria das cantoras/compositoras mineiras, mas há também registros excelentes como “Enquanto a gente batuca” de Ivan Lins, Vítor Martins e Nei Lopes, “É ouro em pó” também de Ivan Lins e “Alma não tem cor” de André Abujamra. Além de ceder composições praticamente inéditas, Ivan Lins participa cantando e assinando o texto de apresentação.
O Lúdica Música esteve aqui em Cataguases, no Anfiteatro Ivan Müller Botelho, faz menos de um mês. Acompanhado pelo violão & voz de Rosana e pela voz e os múltiplos instrumentos percussivos de Isabella, o “Lúdica” trouxe dois novos integrantes que se incorporaram muito bem à sua sonoridade: Gutti Mendes (guitarra e vocais) e Gustavo Lira (bateria), jovens herdeiros do pop-rock, que, ao se fundirem com o legado MPB mais puro das artistas, devolvem ao ouvinte um som contagiante.
Como falou Rosana no meio do espetáculo: “Nós tocamos MPB, música popular boa. Tudo passa pelo nosso ludificador.” O ludificador devora, tritura e reconstrói preciosidades de Chico Buarque, Carlinhos Vergueiro, Geraldo Pereira, Lenine, Luiz Melodia, Tom Jobim, Monsueto, Caetano Veloso e outros e outros tantos.Esses lúdicos músicos transformam qualquer espaço em alegria, com cara e cheiro de Brasil. Vale sempre reouvir a impecável interpretação que eles fazem da divertida canção “Procotólo” de Carlinhos Vergueiro: “É o procotólo/ É a cardeneta/ É a falcudade/ É o estaltuto/ É o fenônemo/ É o pogresso/E é sempre um crima/ E aí vareia/ E a largartixa/ Que é o pobrema/ Esta é que é a questã/ Quanto menas vezes falar dela/é melhor/com sastifação”. São raros os casos em que o intérprete supera o compositor, “Procotólo” ganha um colorido especial com esses músicos. A cumplicidade entre eles possibilita o improviso constante, a cada apresentação a música ganha um novo toque. Há quinze anos acompanhando-os nos “bailes da vida”, para mim a sensação que fica é de permanente inovação. O som se faz no calor da hora, eles brincam com os ritmos, as palavras e acima de tudo com o imaginário popular.
“Alma não tem cor” é uma canção que recebe tratamento especial do “ludificador”. Uma rumba arretada que dá vontade de sair dançando, mamãe eu quero ir a Cuba já: “Alma não tem cor/ porque eu sou branco/ Alma não tem cor/ porque eu sou negro/ Branquinho, neguinho, branco, negão/ Branquinho, neguinho, branco negão/ Percebam alma não tem cor/ela é colorida, ela é multicolor”.No final do show artistas e platéia eram um arco-íris de alegria/energia. Por favor não confundam com a música da Xuxa. Acho que essa o Lúdica Música teria mesmo que passar num tradicional liquidificador.
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