quinta-feira, 27 de agosto de 2009

SAGA LUSA: UMA VIAGEM PELOS LABIRINTOS DA LINGUAGEM



Meus problemas são os de uma pessoa de alma doente e não
podem ser compreendidos por pessoas, graças a Deus, sãs .
Clarice Lispector



A questão da loucura motiva uma série de produções artísticas, da literatura ao teatro, passando pela música e sobretudo as artes plásticas, muito do que já se produziu e se produz é impulsionado por estados alterados de consciência. Van Gogh, Virginia Woolf, Camille Claudel, Nijinsky, Arthur Bispo do Rosário, Antonin Artaud e muitos outros tiveram suas criações associadas à problemática do desvio da razão. Ousados, delirantes, loucos, inadaptados, visionários, muitos adjetivos envolvem o imaginário que cerca a criação desses artistas.


Neste ensaio pretendemos fazer uma breve abordagem sobre a questão da linguagem em Saga Lusa, primeira obra literária da cantora, instrumentista e compositora Adriana Calcanhotto. Saga Lusa consiste numa escrita de relato e simultâneo combate da “insanidade”, elaborada no calor das horas de delírio e lucidez, em que a autora tenta através do manuseio das palavras, encontrar uma maneira de se fixar na “realidade”. Escrita que se constrói e desconstrói no percurso tortuoso do “surto”, em que Calcanhotto habilmente consegue transformar a dor e o desespero em auto-ironia inteligente e bem humorada.


O “surto”, como declara a própria autora, se deu na temporada de shows em Portugal, em que após contrair fortíssima gripe que a impediria de prosseguir com a turnê, ela se vê refém dos efeitos colaterais ocasionados pela ingestão desordenada de remédios para aplacar a gripe. Na tentativa de domar a “coisa”, a força inclassificável que tenta tirá-la a todo custo do domínio de si mesma, Calcanhotto elege a escrita como condição de suporte dos entraves da dor: “Entendi que a melhor coisa em relação à Coisa seria me dedicar a uma atividade que pudesse exercer com calma, que exigisse concentração e coordenação motora ”. Troca seus usuais instrumentos de trabalho, violão e voz – dimensão criativa de âmbito mais etéreo, pela palpabilidade das palavras escritas em seu laptop. Sob a máscara do humor e da ironia, Saga Lusa explicita luta desesperada da autora pela afirmação de um “eu” que ameaçava se diluir nos labirintos da loucura:


A escrita salvou a minha vida. Escrevi porque precisava. Quando vi que não tinha controle sobre aquilo, que as coisas que eu tentava, como respirar com calma, não estavam funcionando, bolei um plano: “Vou ocupar os comandos cerebrais, em vez de ficar esperando passar esse negócio que só está piorando”. O engraçado é que escolhi a escrita. O violão estava ali, mas tinha qualquer coisa motora que não dava certo, eu suava muito nas mãos...Vi que precisava de uma coisa que me mantivesse no presente. Não queria pensar: “Vou sair disso? Vou ficar assim pra sempre?” Então tinha uma frequência do presente que era a escrita, o acento, o cedilha, que me ajudou a achar um norte .


Em Saga Lusa a linguagem é arma de combate e alvo de experiência estética. Em seus trabalhos musicais, Calcanhotto apresenta uma destacável preocupação com a questão estética, que se desenvolve desde a concepção visual dos encartes de seus discos, passando pelos figurinos, cenários e repertório. O material que lhe serve de motivo na composição de canções é extraído principalmente do contínuo diálogo que a artista traça com as artes plásticas, a exemplo da canção Parangolé Pamplona, inspirada nas criações do artista plástico Hélio Oiticica: “O Parangolé Pamplona você mesmo faz/ O Parangolé Pamplona a gente mesmo faz/ Com um retângulo de pano de uma cor só/ E é só dançar/E é só deixar a cor tomar conta do ar ”.

A narrativa de Saga Lusa traz como marca a não linearidade, composta por fragmentos, colagens e superposições de pensamentos e sobretudo recordações. Calcanhotto acessa continuamente seu repertório de canções que figuram nas entrelinhas e também nos títulos que introduzem alguns capítulos. O universo da arte contemporânea apresenta-se sob a mira do olhar “distorcido” da artista, que aproveita a situação de enfermidade para exercitar sua crítica mordaz a canções, livros e acima de tudo aos objetos da sociedade de consumo: “E aqui um comentário tolo mas...e se por conta deste capítulo a Coca-Cola patrocinasse a minha pobre turnê? ”.

A ironia ao glamour do show business permeia a obra desde as páginas iniciais. Em Saga Lusa a vida transcorre nos bastidores, em que o sublime encantamento que se realiza nas performances do palco, é substituído pela vida crua e sem fantasia do cotidiano. Brincar com os pólos da verdade e da mentira é uma das artimanhas de sobrevivência de Calcanhotto, que assumindo uma postura aparentemente fake de anti-estrela, se coloca acima do bem e do mal para estabelecer julgamentos e exercer seu potencial corrosivo.

As pessoas pensam que sair em turnê é rodar o mundo, com amigos queridos, tocando canções de que se gosta, bebendo champagne no camarim, conhecendo pessoas interessantíssimas e vivendo la vida loca. E é isso mesmo. Em parte. No momento de acordar cedísssimo, de esperar horas e horas e horas e horas e horas e horas e horas, de encarar aeroportos, comida de avião (se houver), repetir as mesmas respostas compulsivamete, ficar longe das famílias, de surtar de uma hora para outra e se deparar com a própria loucura é que nosso caráter é posto à prova.

Calcanhotto é espectadora de si mesma e dos acontecimentos que a circundam. Seu quarto de hotel transforma-se no verdadeiro palco em que atuam assistentes, músicos e funcionários. Apesar do tom bem humorado revestir a escrita, nota-se que a autora alterna estados de liberdade criativa e sensações de aprisionamento: “Fui pro espelho, as retinas resistem com fúria, é assustador, mas não adianta, ainda assim tão diminuindo, tô vendo ”. O exercício com a palavra escrita evolui em vários estágios, em algumas ocasiões como pura atividade catártica, em outras como jogo hábil e experimental com a linguagem. O impacto da dor vivenciada na carne: “A língua sumiu, não sinto nada, além de tontura, tudo de novo. Não sinto a boca, a língua, a garganta, nada ” e o esforço para ultrapassar o estado delirante se efetiva na tessitura das palavras.

Saga Lusa pode ser lido como um diário de bordo as avessas, em que Calcanhotto ao invés de privilegiar a descrição de paisagens externas, foca seu relato no “microcosmo” de seu quarto. Ao escrever um diário íntimo o autor coloca-se momentaneamente sob a proteção dos dias comuns pois, conforme Maurice Blanchot:

O que se escreve se enraíza então, quer se queira, quer não, no cotidiano e na perspectiva que o cotidiano delimita. Os pensamentos mais remotos, mais aberrantes, são mantidos no círculo da vida cotidiana e não devem faltar com a verdade. Disso decorre que a sinceridade representa, para o diário, a exigência que ele deve atingir, mas não deve ultrapassar .

O quarto de hotel é o cenário em que Calcanhotto vivencia alucinações: ouve vozes, vê imagens difusas, sente os sentidos alterados: “E eu poderia jurar que esses sets e cenários e coxias são os bastidores da minha mente, minha nossa, que medo, o que é isso que eu estou dizendo? ”. Através de uma escrita marcada por cortes e inserções de palavras, muitas vezes em caráter desconexo, ela tenta reproduzir no calor da hora os lapsos de fala: “Esdou, cerdamente, zó dão zaberia dizer bem o guê/ O hosbidal dão é eze aí ”.

O experimentalismo que predomina na produção musical de Calcanhotto encontra certo prolongamento em Saga Lusa, onde a autora pratica o exercício de pesquisa lúdica com as palavras. Instaura uma profusão de misturas vocabulares sem fazer distinção entre erudito e popular, alta e baixa cultura, feio ou bonito, como já anunciara em Senhas, canção de sua autoria: “Eu não gosto do bom gosto/ eu não gosto de bom senso/ eu não gosto dos bons modos/ não gosto ”. Shakespeare, João Cabral, John Cage, Rita Lee, Jack Nicholson, Guilherme Arantes, Camané, Moby Dick, Waly Salomão e Camões figuram lado a lado. O mundo da cultura pop é elemento de devoração crítica, a capa do livro, concebida por ela, é o resultado de uma junção de recortes das embalagens dos remédios consumidos, fazendo analogia a Andy Wahrol:

...as coisas todas para mim são misturas. Gosto dos autores, daquela cabeça, daquele ponto de vista, daquela canção ou daquele quadro, daquele experimento. Tudo isso junto, são as coisas que eu gosto. Nunca penso muito sobre esse critério, até porque pelo critério cronológico, se você pensar, os grandes nomes, são todos mais ou menos contemporâneos .

No decorrer da escrita, Calcanhotto vai se guiando pela percepção dos sutis detalhes do cotidiano, acentuados ainda mais em função do seu estado de consciência alterado. A insistente demarcação do espaço que a cerca, se efetua como tentativa de fixação no solo da razão, em que a autora se mostra avessa a qualquer salto demasiadamente alto que a lance para caminhos de descontrole. Importa é a capacidade de apreender e suportar as dores no tempo presente, que se verifica na constante luta pela afirmação/recuperação de sua própria identidade. Tateando objetos, tentando reconhecer sua face no espelho: “Parecendo um urso panda disfarçado de escritora principiante ”, Calcanhotto procura suplantar o vazio existencial através das palavras escritas, que sabe serem na verdade sempre insuficientes. Torna-se oportuno citarmos o poema o Outro, do poeta português Mário de Sá Carneiro, musicado por ela no disco Público:



Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro .



Mesmo nos momentos mais tortuosos, Calcanhotto não deixa de lançar mão do artifício da auto-ironia. Na iminência da perda de si mesma, brinca com as faces de mulher comum, escritora e cantora famosa: “Sou uma escritora ou cantora, enfim, uma mulher, sem razão, porém vaidosa ”. A vivência da angústia é transmudada em sua escrita na forma com que explora a linguagem, criando no pequeno espaço da página um permissível lugar transcendente e lúdico. Músicos e canções figuram como personagens coadjuvantes: Madonna, Roberto Carlos, Caetano Veloso e outros mais estão livres para dividir o mesmo palco de alucinações e invencionices. Submetida a experiência aflitiva do exame de ressonância magnética, Calcanhotto é capaz de transformar o episódio em acontecimento artístico, com direito a nuances sonoras de John Cage: “A mistura aleatória dos sons da máquina com os graves e agudos das caixas é lindíssima. Piiiiiii,pleeeee,schcrafg,piii,piiiiiiii,piiiiiiii,peeeeeeee,schrafg. E eu, num momento desses, sem um gravador. Jamais serei profissional...” .

Vale atentar para o fato de que a produção artística realizada como uma espécie de antídoto das mazelas existenciais é tema para análise de uma série de obras. O poeta, letrista e agitador cultural Waly Salomão confessou em entrevista que, só após a vivência na prisão do Carandiru, encontrou o enquadramento espacial de seus poemas. Van Gogh nas cartas dirigidas ao irmão Théo expõe suas feridas existenciais, que se misturam com a obsessiva preocupação com a criação estética. Pintar é a saída que Van Gogh encontra para se manter vivo:


Seja na figura, seja na paisagem, eu gostaria de exprimir não algo sentimentalmente melancólico, mas uma profunda dor. Em suma, quero chegar ao ponto em que digam de minha obra: este homem sente profundamente, e este homem sente delicadamente...Ainda que frequentemente eu esteja na miséria, há contudo em mim uma harmonia e uma música calma e pura. Na mais pobre casinha, no mais sórdido cantinho, vejo quadros e desenhos .


A cantora, que em sua índole antropofágica já propôs a devoração do ícone da música popular brasileira Caetano Veloso: “Vamos comer Caetano/ Vamos devorá-lo/Degluti-lo, mastigá-lo/ Vamos lamber a língua ”, em Saga Lusa brinca com a subversão do poder das instituições consagradas como a Academia Brasileira de Letras: “ Tô achando mais parecido comigo mesma me candidatar à Academia Brasileira de Letras – e presidi-la – do que ficar na estrada, em turnê” . O binômio aparência x essência é desenvolvido em vários jogos dicotômicos, em que a busca pela afirmação da identidade da cantora/artista Adriana Calcanhotto se dá através de uma série de contraposições. Calcanhotto não é escritora profissional e no entanto se aventura no ofício: “Minhas ambições com esta obra são de vulto. Vulto não, que ultimamente me dá medo, minhas ambições são de porte ”.

Em Saga Lusa a língua portuguesa é mais que suporte, funciona como personagem. Fixada em Lisboa, Calcanhotto materializa seu imenso estranhamento ao sentir-se estrangeira em sua própria língua: “Nossa língua portuguesa prega-nos partidas. E pedi o prego, na verdade, só pra Suely ver que comi carne ”. A metalinguagem desponta então como necessidade de auto-provação, por conseguinte mais uma vez revela-se a busca pela afirmação identitária, que deve se realizar também nos interstícios da língua portuguesa. Em entrevista ao poeta e professor Eucanaã Ferraz declara:


Eu gosto tanto de estar em Portugal, poder falar em português, que eu só posso falar lá para ser compreendida, como se fosse uma outra língua, sendo que é a mesma e é a língua que eu gosto...Eu acho que quando estou em Portugal só penso em escrita e versos e poemas, tudo o que me acontece em Portugal é meio mágico assim...Eu fico muito predisposta as questões da palavra, uma maravilha ficar ouvindo as pessoas falarem português daquela maneira .


Ao refletirmos sobre a questão da relação entre linguagem e processos de alteração mental desenvolvidos em Saga Lusa, consideramos pertinente abrirmos um espaço para produção do dramaturgo Antonin Artaud, que teve toda a sua história de homem e criador intimamente associada aos problemas mentais.

Falar sobre Artaud implica jamais dissociar arte e vida, pois este artista vivenciou na carne a exacerbação do estado de criação. Levou ao extremo da dor a crença na poetização da existência: “Ninguém mais sabe o que é viver, porque viver é afirmar-se em si mesmo, a todo instante, encarniçadamente... ”. Artaud lutou sem cessar pela afirmação da arte enquanto algo não apartado da vida, livre das rédeas impostas pelo sistema racionalista cerceador. Objetivando romper com a linearidade do discurso que se funda sobre os pilares da metafísica tradicional, Artaud propôs a experiência do pensamento enquanto vivência no corpo: “Nós estamos no interior do espírito...Idéias, lógica, ordem, Verdade (com um V maiúsculo), razão, nós entregamos tudo ao nada da morte .” Para Artaud seu corpo é linguagem, e este corpo tornado linguagem atua apenas submetido à sua própria lei, que é a de sua livre vontade. Ao longo de seu percurso criativo, que abrange além dos textos para teatro, desenhos, poemas e cartas, Artaud vai se desprendendo do compromisso com a realidade exterior. Sua expressão pretende abolir o vínculo com a ordem lógica tradicional, sua postura implica ruptura, ele deseja se produzir por uma nova linguagem, não a das palavras que compõem a comunicação habitual, mas sim a linguagem recriadora que abrange o corpo. No primeiro manifesto do Teatro da Crueldade Artaud alega que “importa antes de tudo romper a sujeição do teatro ao texto e reencontrar a noção de uma espécie de linguagem única, a meio caminho entre o gesto e o pensamento” .

Nas correspondências estabelecidas com Jacques Rivière, editor da Nouvelle Revue Française, Artaud explicita a supremacia da linguagem-vida. Artaud enviou alguns de seus poemas para Rivière, na expectativa de que este os publicasse em sua revista, entretanto o editor apresentou uma série de objeções, argumentou que os poemas não eram publicáveis por ausência de literariedade. Face à recusa da publicação, ambos decidiram em comum acordo publicar apenas as correspondências em que discutem o conteúdo dos poemas. Conforme Blanchot, Rivière se interessa “pela experiência da obra, pelo movimento que conduz a ela...pelo rastro anônimo, obscuro, que ela respresenta inabilmente” .

Nas cartas dirigidas a Rivière, Artaud evidencia o primado da questão linguagem-vida: “porque procurar colocar sobre o plano literário uma coisa que é o próprio grito da vida, porque dar aparência de ficção àquilo que é constituído pela substância da alma ” (tradução nossa). Para ele não importava que seus poemas fossem reconhecidos enquanto manifestação literária de elevado caráter formal e estético, valia a escrita como manifestação do jorrar da vida exasperada, seu incomensurável drama existencial:

A questão da aceitabilidade dos poemas é uma questão que interessa mais a você que a mim. Eu falo, bem entendido, de sua aceitabilidade absoluta, de sua existência literária. Eu sofro de uma terrível doença de espírito. Meu pensamento me abandona em todos os níveis. ..É porque pelo sentimento central que me diz meus poemas e pelas imagens fortes que eu pude achar, eu proponho apesar de, todos esses poemas a existência (tradução nossa).

Uma característica importante a ser destacada na linguagem de Artaud é o fato de que ele escreve verbalmente e não gramaticalmente. Sua escrita evolui por movimentos descontínuos e assistemáticos, em que o verbo deseja penetrar na carne turva. Para Artaud seus poemas têm valor na medida em que são a confissão de sua própria dor de existir: “Eu penso na vida. Todos os sistemas que poderei edificar nunca se igualarão a meus gritos de homem ocupado em refazer sua vida .”As críticas estabelecidas por Rivière, que atribuem a seus escritos imaturidade, incoerência e desarmonia, seguem na contramão do pensamento de Artaud, que não objetivava atingir nenhum estado de iluminação poética, mas sim tocar o âmago da vida.

Explicitando um pensamento de natureza Nietzschiana, Artaud contrapõe o homem-artista, dionisíaco, pleno de vida e de dor, ao homem-cientista, racional, sistemático e limitado a suas crenças cerceadoras. Segundo Nietzsche a tragédia é “alegria” e nasceu da afirmação dupla de Dionísio, Artaud ao desenvolver a idéia de um Teatro da Crueldade refuta um sentimento de culpa ou uma dor interiorizada em relação ao público que participa da cena que é dionisíaca no sentido nietzchiano. O espetáculo para Artaud deve conter “gritos, lamentações, aparições, surpresas, golpes teatrais de todo tipo...deslumbramento da luz, beleza encantatória das vozes, encanto da harmonia ”.

Toda a existência de Artaud se conduz pelo sofrimento, e suas dores físicas e mentais são agudas e irrefreáveis. No plano físico Artaud padeceu como vítima de várias sessões de eletrochoque, administradas pelos médicos dos sanatórios em que esteve internado. Loucura e criação estão nele unidos simbioticamente, e sua produção reflete as agruras vivenciadas no corpo. Nas palavras de Blanchot:

O que ele diz é de uma intensidade que não deveríamos suportar. Aqui fala uma dor que recusa toda profundidade, toda ilusão e toda esperança, mas, que, nessa recusa, oferece ao pensamento “o éter de um novo espaço” .

Artaud padeceu na própria carne assumindo sua vida-criação contra a ordem lógica do discurso, castradora das potencialidades do ser: “Parece-me que a criação e a própria vida só se definem por uma espécie de rigor, portanto de crueldade básica que leva as coisas ao seu fim inelutável, seja a que preço for .” A destruição de todos os códigos gramaticais implicou no ultrapassamento dos limites da comunicação. Artaud no fundo considerava a não-comunicação como a única possibilidade de comunicação plena. Em carta dirigida a Rivière, expõe a inquietude que lhe invade na tentativa de vencer a descontinuidade entre o pensamento e sua manifestação escrita:

Há qualquer coisa que destrói meu pensamento, qualquer coisa que me impede de ser quem eu poderia ser, mas que me enlaça, se posso dizer, em suspenso. Qualquer coisa de furtivo que me enleva as palavras que descubro, que diminui minha tensão mental, que destrói a medida da substância de meu pensamento .

O problema da loucura é alvo de destaque na obra de Artaud. Torna-se interessante mencionarmos um de seus textos mais bem articulados denominado Van Gogh, o suicidado da sociedade, em que ele defende o pintor das acusações de loucura, afirmando ser a sociedade a grande responsável por tê-lo assassinado. Sociedade que não foi capaz de compreender a singularidade do homem-artista de sensibilidade extrema, que era Van Gogh. Conforme declaração da psiquiatra Nise da Silveira Artaud “Conhece por experiência própria essas vivências e consegue exprimi-las com uma claridade incrível, levando-nos a concluir que tais sintomas não compõe uma doença...., mas se manifestam como estados múltiplos do desmembramento do ser” .

Artaud solidariza-se com a existência tortuosa de Van Gogh por sentir-se um igual. O pintor também fora vítima de internações em hospitais psiquiátricos e de uma série de procedimentos médicos, que segundo Artaud expressam a mais pura incompetência e desumanidade. Sob a percepção crítica de Artaud, Van Gogh é uma vítima silenciada pelo poder opressivo da sociedade e da medicina:

Van Gogh não morreu de um estado de delírio próprio, e sim por ter servido corporalmente de campo a um problema em torno do qual, desde suas origens, se debate o espírito iníquo desta humanidade, que é o da predominância da carne sobre o espírito, ou do corpo sobre a carne, ou do espírito sobre um e outro. E onde fica neste delírio o lugar do eu humano? Van Gogh buscou o seu durante toda a vida com uma energia e uma determinação estranhas. E ele não se suicidou num gesto de loucura, no transe de não consegui-lo, mas, pelo contrário, acabara de consegui-lo e de descobrir o que ele era e quem ele era, quando a consciência geral da sociedade, para puni-lo por se ter desvencilhado dela, o suicidou .

Nas correspondências trocadas com Rivière, Artaud insiste na autonomia para expressar sua linguagem-vida. Para ele a literatura é uma poética intrinsecamente ligada a sua alma torturada, capaz apenas de mostrar a incompletude de seu ser em permanente busca de existência. Artaud rompe com o espaço logocêntrico da linguagem para dar lugar ao florescer do não-senso, o novo sentido que abomina a conexão com a estrutura linear tradicional do discurso.

Embora Calcanhotto em Saga Lusa apresente um trabalho experimental com a linguagem, constata-se diferenças ideológicas em relação a Artaud. Enquanto o dramaturgo pretende romper totalmente com a lógica racional do discurso, Calcanhotto procura através da escrita uma maneira de não sucumbir à loucura. Escrevendo, a autora tenta ordenar o caos que toma conta de seus pensamentos. Nos momentos de extrema confusão mental, ela explora com mais intensidade o humor, que lhe serve de válvula de escape: “Quando notei o que estava acontecendo comigo, vi que o mais sábio a fazer era me manter no presente e rir de mim mesma. É o que faço quando me deparo com uma situação complicada. Tento rir ”. Calcanhotto brinca com aspectos de surrealismo que permeiam o imaginário popular, como na passagem em que satiriza o discurso banalizado daqueles que já disseram ter conhecido o “outro lado”:

Me vi deitada na cama, do lado direito, me vi do lado esquerdo, eu fora do meu corpo, mas de forma caleidoscópica, não da forma clássica, da pessoa se ver de cima, da mesa de cirurgia ou da cama, que funciona e tal, mas, convenhamos, já ta um pouco batido. Eu me via me vendo me ver. Com um olhar sarcástico. Diabólico. Demoníaco .

Artaud em seus textos “alucinados” contribuiu efetivamente para quebrar o espaço clássico da representação literária. Ele critica o “saber” acumulado na biblioteca, espaço fechado onde se situa a cultura institucionalizada: “ Se a massa não vai às obras- primas literárias é porque essas obras-primas são literárias, isto é, fixadas: e fixadas em formas que já não respondem às necessidades do tempo ”. Calcanhotto e Artaud se aproximam na medida em que ambos atuam no patamar de uma experimentação com a linguagem. Sob o estado de alteração mental, a cantora/compositora elabora uma obra voltada para a reflexão sobre a linguagem e suas possibilidades. Em seu caráter metalinguístico, Saga Lusa tem a língua portuguesa como objeto de análise. Artaud em sua ampla dimensão propõe uma ruptura total com os alicerces da linguagem e essa ruptura se dá num permanente exercício desconstrutivo.