Se você tivesse que matar um, com qual você ficaria, Chico ou Caetano?”, dizia meu falecido tio nas noites de Natal em sua casa de Juiz de Fora, em que sempre tínhamos um novo disco (os cds ainda não existiam) do Chico Buarque ou Caetano Veloso para desvendar, saborear e também pichar. Aos meus olhos de menina, parecia que Chico e Caetano eram verdadeiras antíteses que jamais poderiam conviver juntos. Escolhia-se o talento literário de um e matava-se o talento musical de outro e vice-versa. As discussões, ironias e sacadas eram tão incríveis que me deixaram “uma saudade nos ouvidos”.
Apesar de toda a proclamada incompatibilidade dos gênios, me lembro vagamente de ter presenciado uma convivência “harmônica” entre ambos no programa da TV Globo chamado “Chico & Caetano”. No único programa que assisti, havia a presença de um convidado que era o meu ídolo maior na época: o cantor-roqueiro-sensual-performático Paulo Ricardo. Não posso deixar de achar graça hoje, mas eu ia às lágrimas quando o bonitão atacava de “London London”.
Muitos anos se passaram desde aquelas tentativas de assassinato nos Natais na casa do tio Luiz, e até hoje nunca tive a coragem de cometer esse crime poético-lírico-musical. Acompanho ano a ano a carreira do baiano e do carioca e muitas vezes me apaixono perdidamente por alguma canção.
Neste momento toca pela décima-quarta vez o cd “Carioca”, recentemente lançado por Chico Buarque. Coloco-o até no meu MP3 para preservar os ouvidos do Ronaldo e da Solange e para eles não pensarem que ando ficando obsessiva ou mesmo maluca, que nem a Banda da Joyce. Confesso que ainda estou curtindo o cd aos poucos, a cada nova audição pinta um lance diferente. Os arranjos de Luiz Cláudio Ramos são de um lirismo e sofisticação imbatíveis, possibilitando ao ouvinte captar muitas nuances de sensibilidade.
Depois de oito anos de ausência musical, Chico Buarque apresenta um trabalho com a costumeira grife Chico Buarque, isto é: de grande qualidade. Mas dá vontade de matar. A capa muito bem elaborada traz o mapa do Rio de Janeiro projetado sobre o corpo e o rosto do compositor. Chico é um compositor essencialmente urbano e este cd não foge à regra.
“Carioca” contrapõe o Rio Zona Sul, bonito e ensolarado, ao Rio de Janeiro pobre e tristonho da periferia. Até aí, nada de novo. O que mais me chamou atenção no cd não foi o choque cultural Zona Norte/Zona Sul e nem a “beleza correta” das canções, mas justamente a intensa semelhança entre elas. Parece que tudo é uma coisa só, o velho estilo Chico. Necessitei de tempo e muita atenção para elencar minhas favoritas.
As faixas se sucedem numa linearidade interpretativa meio monocórdia, exceto em “Ode aos ratos” que quebra totalmente o clima. Esta canção em parceria com Edu Lobo foi gravada anteriormente no cd “Cambaio”, mas aqui recebe um tratamento muito mais cuidadoso e original. Chico mistura o baião com uma levada rap-eletrônica, é genial a embolada: “Rato/ Rato que rói a roupa/ Que rói a rapa do rei do morro/Que rói a roda do carro/ Que rói o carro, que rói o ferro/Que rói o barro, rói o morro/Rato que rói o rato/Ra-rato,ra-rato/ Roto/ Que ri do roto/ Que rói o farrapo/ Do esfarra-rapado/que mete a ripa, arranca rabo/ Rato ruim/ Rato que rói a rosa/ Rói o riso da moça/ E ruma rua arriba/ Em sua rota de rato”.
Vale também destacar “Imagina”, uma das primeiras composições de Tom, uma “canção exercício” que o avô do pianista Daniel Jobim, que participa da gravação, fez nos tempos de juventude, e que Chico letrou em 1982. “Imagina” foi gravada anteriormente por Olivia Byington na trilha do filme “Para viver um grande amor”, de Miguel Faria Jr. Nesta segunda versão, Chico Buarque faz contraponto com a voz grave da cantora Mônica Salmaso. Uma letra que prima pela linguagem simbólica: “Olha a chuva, olha o sol/ olha o dia a lançar serpentinas/ serpentinas pelo céu/ sete fitas/ coloridas/ sete vias/ sete vidas/ avenidas em qualquer lugar/ imagina”.
Junto com o cd, foi também lançado o dvd “Desconstrução”, que revela os bastidores da gravação de “Carioca”. O ponto alto do dvd é mostrar ao grande público a faceta humorística de Chico, que ficou muito tempo escondida atrás do estereótipo de “homem tímido”. Aos 62 anos, Francisco Buarque de Hollanda é um homem maduro e sereno que não deve mais nada à música, à política e à literatura.Nessa altura da vida permite-se brincar livremente com os músicos, com os netos, consigo mesmo e seus hetrônimos musicais:“ Eu tenho uns oito ou nove compositores habituais, são compositores anônimos. Tem um que faz canções no feminino, esse cara é legal. É uma moça, aliás. Têm uns que estão velhos, já estão no asilo, têm uns que já pararam. Outros entregam as coisas meio de má qualidade, por que se repetem. Então eu tenho que ficar trocando de fornecedor. O Almed, o novo personagem, entrega a música e fica devendo a letra”.Não vou matar o Chico. Jamais!
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