Gravar o primeiro disco é sempre um desafio – e em geral o artista imagina que deve mostrar tudo e tudo o mais de uma só vez. Os discos de estréia costumam pecar justamente pelo excesso que advém da ânsia de absoluto. No caso do intérprete, por exemplo, nem sempre é no primeiro trabalho que ele consegue mostrar a que veio.
A escolha do repertório é uma das tarefas mais difíceis, principalmente quando ainda se está construindo uma personalidade artística/musical. Submetido ou não ao mercado, o cantor deve escolher composições que possam traduzir sua alma. Isso nada tem a ver com a opção por um repertório meloso e repleto de canções românticas. O artista precisa encontrar afinidade com aquilo que canta para que ultrapasse a mera classificação de “voz bonita”.
Uma possível alternativa que costuma favorecer tanto o intérprete iniciante quanto o experiente é a escolha da obra de um determinado compositor com a qual ocorra identificação. Contudo, eleger uma obra implica não só identidade com o universo do compositor, mas justamente a capacidade de dar uma leitura muito pessoal à sua obra.
Acabo de ouvir “Solidão”, de Dolores Duran, na voz de Nana Caymmi: “Eu quero qualquer coisa verdadeira/Um amor, uma saudade/Uma lágrima, um amigo/Ai, a solidão vai acabar comigo”. Nana gravou “A noite do meu bem”, disco dedicado às composições de Dolores Duran. Re-ouço agora algumas músicas com renovada emoção. Nana se apropria das canções como se fosse ela própria a sofrer de amor, sozinha numa mesa de bar. A cantora funde sua emoção à carga existencial de Dolores, que viveu tanto em tão pouco tempo. Nana cantou Dolores, mas acima de tudo cantou a si mesma.
Claudio Nucci imprimiu sua marca ao gravar “Ao mestre com carinho”, disco em homenagem a Dorival Caymmi. O cantor e violonista ressalta as “maravilhas” da baianidade, sem cair em interpretações pasteurizadas. Nucci não se descuida sequer de uma sílaba das letras de Caymmi – todas elas aparentemente tão simples, mas tão ricas em sua construção sintética. O timbre muito belo que tende ao suave se encaixa muito bem na proposta do trabalho.
Nem passadista nem modernoso, Claudio Nucci encontrou a medida certa e criou um disco que vence a barreira do tempo. O disco foi lançado há quatro anos e ainda mantém o mesmo frescor. Canções que falam dos homens do mar, das baianas quituteiras de vestido branco rendado e das mulatas de requebrado sensual que caminham pelas ladeiras de Salvador: “Para te agradar/ Ai, eu trouxe os peixinhos do mar/ Morena/ Para te enfeitar/ Eu trouxe as conchinhas do mar/ As estrelas do céu/Morena/ E as estrelas do mar/ Ai, as pratas e os ouros de Iemanjá/ (...) Andei por andar, andei/E todo caminho deu no mar/Andei pelo mar, andei/Nas águas de Dona Janaína/ A onda do mar leva/ A onda do mar traz/ Quem vem pra beira da praia, meu bem/ Não volta nunca mais”.
Tudo isso para chegar na carioca Eveline Hecker. Para dizer que seu cd “Ponte aérea” é um disco de estréia que voa muito alto. A cantora, que foi integrante da “Banda Nova” de Tom Jobim, e do grupo “Arranco de Varsóvia”, interpreta composições de José Miguel Wisnick neste seu primeiro álbum. Músico, compositor, ensaísta e professor de literatura brasileira da USP, Wisnick é autor de “O som e o sentido”, livro que já se tornou um clássico no que se refere à reflexão aprofundada das questões musicais. Transitando entre a vida acadêmica e a criação pura, Wisnick compõe com o som e o sentido absoluto de cada palavra: verso, acorde, harmonia, nuance, pausa, melodia, silêncio.
Ouvir “Ponte aérea” exige entrega. As construções harmônicas e melódicas são assimiláveis, mas sente-se a fuga de qualquer obviedade. Wisnick traz o depuramento na base de suas composições, densas e simultaneamente secas em sua economia sonora. Talvez esteja submerso o animus do intelectual, leitor de poesia, que se une à anima do criador, sentimento que aflora. A valorização do silêncio no corte exato, como queria o Cabral de “A palo seco”: “Ou o silêncio é uma tela/que difícil se rasga/e que quando se rasga/não demora rasgada;/quando a voz cessa, a tela/se apressa em se emendar:/tela que fosse de água,/ou como tela de ar”.
Eveline Hecker estudou canto e piano, por isso não foi à-toa que Tom Jobim a convidou para integrar seu grupo. Ela extrapola os limites do simples cantar, pois tem conhecimento das sutilezas da canção. Seu timbre suave e aveludado caminha de braços dados com cada tecla do piano de Wisnick. Em “Ponte aérea”, música de abertura que dá título ao cd, a divisão de Eveline é perfeita a ponto de os tons vocais preencherem qualquer lacuna que poderia existir.
A voz cool de Eveline dá colorido e intensidade às composições que trazem um misto de Bossa e certa melancolia lusitana – como mostra “Polonaise”, poema de Adam Mickiewicz traduzido por Paulo Leminski e musicado por Wisnick: “Choveram-me lágrimas limpas/ Lágrimas ininterruptas/ Na minha infância campestre, celeste/ Na mocidade de alturas/ De alturas e loucuras/ Na minha idade adulta/ idade de desdita”. Em “Polonaise”, Eveline parece retroceder séculos, como se cantasse na velha Lisboa ao som nostálgico (e real) do cello de Jacques Morelenbaum, do baixo acústico de Zeca Asumpção e do piano de Wisnick.
Ela interpreta com graça e leveza “Comida e bebida”, música de Wisnick em parceria com Zé Celso Martinez, que coloca em destaque o violão de Mauricio Carrilho. O canto de Eveline é tão afinado e preciso que me permite associá-la à paulista Ná Ozzeti, uma de nossas maiores “damas da interpretação”. Ná também tem Wisnick como um de seus compositores prediletos: ela estudou canto durante anos e realiza trabalhos altamente refinados, o mais recente com o pianista André Mehmari.
Se Eveline Hecker não gravou antes nenhum disco solo é porque não tinha encontrado o parceiro perfeito. Wisnick e Eveline são uma coisa só: leves, naturais e profundos no entendimento da canção. A busca pelo “mais simples”, como diz uma das letras, é o reflexo desses dois artistas que vieram para trazer música, simplesmente música. Mas com grande sabedoria.
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