Nesses tempos de muitos funks, sertanejos e outras breguices do gênero, o selo Biscoito Fino lança no mercado o primeiro DVD da cantora Nara Leão. Este DVD é mais um que integra uma série de programas especiais dedicados a artistas da música popular brasileira como Elis Regina, Paulinho da Viola, Wanda Sá e Gal Costa.O Especial reproduz a entrevista de Nara no programa “Ensaio”, da TV Cultura, realizado em 1973 por Fernando Faro, que continua até hoje à sua frente (melhor dizendo, por trás das câmeras). A voz e a imagem em off do entrevistador, aliada ao preto e branco da transmissão, reforça o clima intimista e transmite um quê de sensualidade, mistério e delicadeza, esta última a marca maior da musa portadora dos joelhos mais famosos da MPB. Joelhos que se encontram na imaginação dos espectadores, é claro, pois a tônica dos programas realizados por Fernando Faro é manter o entrevistado permanentemente em close, captando as mínimas nuances de seu rosto.
O resgate das imagens dos programas dirigidos por Fernando Faro é de fundamental importância para a preservação não só da história musical, mas também política de nosso país. Nara Leão foi um nome de grande importância na cultura brasileira na segunda metade do século XX. Tímida e paradoxalmente inquieta, corajosa, inovadora, nos seus vinte e cinco anos de carreira, correu em busca do registro de uma arte compatível com sua “verdadeira natureza interior” (como diz Gilberto Gil em Copo Vazio: “Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho/ que o vinho busca ocupar o lugar da dor/ que a dor ocupa a metade da verdade/ a verdadeira natureza interior”).Nara Leão é a cantora que reuniu o melhor repertório do cancioneiro nacional. Gravou Nelson Cavaquinho, Sidney Miller, Zé Keti, Chico Buarque, Tom Jobim, João do Vale, Paulinho da Viola, Carlos Lyra, Dorival Caymmi, Edu Lobo, Vinicius de Moraes, Assis Valente, Sueli Costa, Villa-Lobos, Ernesto Nazareth e até mesmo um belo disco inteiramente dedicado ao Rei Roberto Carlos.
O DVD inicia com Nara interpretando a capella a canção “Soneto” de Chico Buarque, compositor que ela também homenageou no álbum “Com açúcar, com afeto”, de 1980: “Gravei muita coisa dele”, diz Nara, “nem sei direito o que mais. Do Chico eu me lembro de uma música que eu pedi que ele fizesse pra mim. Eu gosto muito de música que a mulher fica em casa chorosa e o marido na rua farreando. Você vê que eu canto “Fez bobagem” (Assis Valente), “Camisa amarela” (Ary Barroso). Chico fez para mim “Com açúcar com afeto”.
Com a voz pequena, no registro de soprano quase ligeiro, Nara imprime uma delicadeza e simultânea carga de emoção que causa impacto naqueles que a assistem pela primeira vez. A câmera persegue detalhadamente os movimentos da cantora, captando toda a sua expressividade. Acompanhada durante todo o tempo somente por seu violão, ela depura cada nota, cada acorde. Em “Morena do mar” de Caymmi, Nara Leão canta com tamanha suavidade que parece que a brisa leve do vento toca seus cabelos: “Para te agradar/ Ai, eu trouxe os peixinhos do mar, morena/ Para te enfeitar, eu trouxe as conchinhas do mar/ As estrelas do céu, morena/ E as estrelas do mar/ Ai, as pratas e os ouros de Iemanjá”.Absolutamente espontânea, Nara fala sobre o acontecimento da música em sua vida, com o charme de um humor levemente Bossa Nova: “Eu andava com esse negócio de cinema porque eu pensava em ser montadora de filmes. E aprendi a fazer montagem. Naquela época, eu queria ser montadora, eu não pensava em ser cantora. Eu cantava, eu fazia gravuras, eu queria fazer montagem de filmes, fazia várias coisas. Até hoje eu não sei o que eu vou ser na vida”.
Mesmo a contragosto, Nara jamais deixou de ser a legítima representante da Bossa Nova. Avessa à postura ortodoxa que marcou muitos de seus companheiros, ela sempre esteve à frente e acima de qualquer rótulo. Nara sabia o que queria, tinha total consciência do que cantava: “Devo dizer que eu não sou nada preconceituosa. Então, vendo uma coisa que eu gosto, que acho bom e que acho renovador, eu não tenho preconceitos para dizer que não canto porque não cantava antes”.
“Eu sou um nostálgico de tudo aquilo que eu não vivi” disse certa vez Ed Motta numa entrevista. Guardei essa frase como se fosse minha. Fico imaginando Nara Leão e sinto saudades.
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