sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

cafés, sons & chocolate



Ando à procura de canções para formar o repertório de meu próximo cd. Tento ser o mais aberta possível em minhas audições, evitando cair na armadilha que confunde identidade musical e medo do risco. Já disse em uma crônica que o cantor deve cantar aquilo que lhe toca fundo a alma, e de preferência algo que se adeque bem ao seu timbre. Sou apaixonada por tudo o que Elis Regina canta, mas no entanto estabeleço uma distância considerável entre nós quando penso na escolha de repertório. Há dez anos fiz uma mostra na Universidade Federal de Juiz de Fora em que dispus meu acervo de discos, fotos e vídeos sobre a cantora gaúcha. Depois disso demorei a conseguir me libertar da “perseguição” dos amigos e desconhecidos que me “carimbaram” Elis Regina. Em virtude disso ganhei presentes lindos e ouvi coisas inacreditáveis. Um dos mais inesquecíveis momentos aconteceu quando uma jornalista me perguntou se eu ouvia Elis e somente Elis todos os dias: manhã, tarde e noite.

Ao refletir sobre minha identidade musical me perco em elucubrações. Como devo tentar ser eu mesma sem perder minha identidade? Mas como vou manter minha identidade sem correr o risco de ingênuamente cair na armadilha da auto-repetição empobrecedora? O único que sabe se auto-repetir de forma genial e esplendorosa é João Gilberto, há mais de quarenta anos com seus acordes dissonantes, seus bim-bons, suas Roleyflex, seus patos, seus barquinhos e banquinhos e sempre magnífico. Para os “peitos” e ouvidos desafinados, João não passa de um chato que canta a vida inteira a mesma coisa. E, no entanto, João ressurge a cada nova apresentação cantando de fato as mesmas canções, mas sempre com reestruturações harmônicas. Acrescenta acordes, suprime, reorganiza os timbres vocais – enfim, João se inova sempre.

Certo dia meu amigo, o saxofonista Glaucus Linx, recém-chegado de uma temporada de jazz na Europa, me propôs a audição de alguns takes de cantoras produzidas por ele. Pretendíamos nessa audição encontrar (ou perder) caminhos, saídas musicais para o meu novo disco ainda sem repertório. Entre xícaras e mais xícaras enormes de café que Glaucus ia bebendo e me servindo, e que eu sorvia naturalmente escondida da minha fonoaudióloga, que me proibiu severamente a ingestão de meus adoráveis drinks pretos: café e coca light. O chocolate, opção aparente do Tim Maia (pelo menos naquela canção), também não é permitido, pois arranha a garganta. Ainda bem que acato bem a maçã, fruta salvadora dos cantores. Mas bom mesmo é o barato interior, como dizia a cantora Joyce no seu momento naturalista: “Bom é não fumar/Beber só pelo paladar/Comer de tudo que for bem natural/ E só fazer muito amor/Que amor não faz mal”.

Eu e Glaucus pretendíamos nos ater mais nas texturas, palavra que aprendi a usar com ele. Por sua vasta experiência no exterior como músico, arranjador e produtor musical, Glaucus trabalha muito bem com uma variedade de ritmos, timbres e instrumentos. Ele me surpreende com sua imensa habilidade cibernética e eletrônica: puxa fios, abre canais, tecla notas, emenda frases enquanto fico fazendo perguntas e mais perguntas com a curiosidade de uma criança de cinco anos. Acredito que em qualquer trabalho artístico o melhor não é o produto final, mas sim o processo.

O make in progress me seduz naquele ponto em que os músicos começam a dialogar já a postos sobre o instrumento. Como não leio partituras, somente cifras, e toco muito limitadamente violão, vou flanando por aquela língua estranha que de repente se apossa daqueles homens sobressaltados. A parte que menos me encanta no processo é o momento da mixagem. Nesse ponto parece-me que termina a viagem e, a exemplo de um médico, o operador inicia (nem sempre com os músicos) sua operação cirúrgica. Hora de emendar, cortar, enxertar e arrematar tudo para que o resultado saia limpo, cada vez mais limpo.

Ontem estava ouvindo o último cd de Jards Macalé, “Macao”, tão bom que merece uma crônica inteira. Como já estou chegando no limite das linhas do jornal, não posso deixar de ressaltar a “bela sujeira” que desponta nesse trabalho delicadamente poético do Macao. O violão, instrumento onipresente na existência do cantor e compositor, aparece cru, pleno, vivo, inteiramente sujo. Viva mais uma vez o marginal Macao: “Neste disco, quanto mais buscava a perfeição, a voz (principalmente) e o violão sibilavam, rosnavam; as cordas ruidavam entre o metal, o nylon e a madeira. Me lembrei de Baden Powell e Nelson Cavaquinho que não tinham pudor do ruído. Achei que a perfeição só existe quando você tenta aperfeiçoar o imperfeito... em vão. Deixei como está: humano".

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