Há coisas que até Deus duvida, como diz o samba. Há cantores e cantores: O Rei da Voz, o Ditador de Sucessos, A Sambista Diferente, A Favorita da Marinha, O Caboclinho Querido, A Cançonetista das Dunas do Barato, A Princesinha do Baião, enfim, graças a Deus, sempre houve o rótulo. Elis é o fácil e o difícil. Elis é o avião e o helicóptero. Elis é a cidade e o campo. Elis é o amor e o desamor. Elis é o Conjunto e a Banda. Elis é o Olympia e o Canecão. Elis é o Deus e o astronauta. Elis é a forma e o fundo. Elis é Lupicínio, Elis é Sueli. Elis é Lovestory e Polansky, Elis é o riso e o trauma. Elis é 50, é 60, é 70. Enfim, Elis é o enigma, doce enigma.Na última quinta-feira, 17 de março, Elis Regina teria feito 60 anos. Ídolo em todo o Brasil, ela sempre fez parte da vida de minha família. Era referência muito próxima, velha amiga-estrela, paradigma de qualidade no item interpretação. Meu falecido tio, Luiz Affonso Pedreira, apreciador das artes e grande amigo de muitos artistas de Juiz de Fora e de vários cantos do país, como Carlos Bracher, Sueli Costa, Gutemberg Guarabira, Affonso Romano de SantAnna e outros, era um aficcionado por Elis e, não por acaso, o parágrafo de abertura desta crônica foi extraido de um texto apaixonado que ele publicou em 1972.
Tio Luiz Affonso possuía todos os seus discos. Mais tarde, quando eu já tinha idade para entender e também apreciar em comum o “Furacão Elis”, descobri que ele não possuía somente isso, mas também uma série de encartes, programas de shows, revistas, fotos e vídeos. Além de tudo, era uma memória viva, pois assistira a shows fantásticos e históricos como “Falso Brilhante” e “Saudades do Brasil”. Seu porte elegante e discreto, lembrava muitas vezes Mastroianni, embora seu apelido entre os mais chegados fosse “Anitona”. Não por ser afeminado, mesmo porque tio Luiz Affonso não levava “jeito na matéria”, mas por ser fã de Fellini e citar sempre Anita Ekberg entrando na Fontana di Trevi, naquela famosa cena noturna de “La dolce vita”.
Conversávamos certo dia em sua “cinemateca”, a sala de “ver bons filmes” que existia em seu apartamento, quando ele tira subitamente do armário um envelope enorme e pesado e dali surge um mundo de Elis Reginas. Eram jornais, revistas e programas de shows que não acabavam mais. Para uma adolescente de 17 anos, a euforia era equivalente à de Alice no País das Maravilhas: com direito a chave do tempo e tudo o mais, eu podia retroceder anos de um passado que jamais vivera.
Inicialmente, não entendi tamanha generosidade. Pensei que o material fosse apenas um empréstimo com direito a cópias xerocadas, e não um presente. Todos admiraram seu gesto de confiança, deixar um tesouro construído por décadas nas mãos de uma menina. Mas não é que anos mais tarde tudo se justificaria na pequena mostra que realizei na Universidade Federal de Juiz de Fora? Foi, de certa forma uma homenagem aos dois, Elis & Tio Luiz. Uma oportunidade de mostrar meu acervo, devidamente ampliado com o tempo, aos universitários, à cidade e principalmente a um emocionadíssimo Tio Luiz.
A partir daí, fui aos poucos me transformando em estudiosa do fenômeno Elis. A paixão de adolescente amadureceu em amor pelo assunto e em constantes pesquisas sobre o objeto amado. E também em muitas alegrias: o contato com historiadores, músicos e críticos de várias partes do país, como Walter Silva, Zuza Homem de Mello e muitos outros. Mas alegria mesmo, e das maiores, foi quando em abril do ano passado encontrei-me em São Paulo com dona Ercy Carvalho Costa. Ela mesma, a mãe de Elis.
Bem-humorada e atenta às coisas do mundo, com voz firme e jovem aos 84 anos, ela assistia ao programa de Raul Gil. Sim, do próprio. É sua diversão predileta nas tardes de sábado, pois até pouco tempo costumava freqüentar alguns desses programas e ficar bem escondidinha para ninguém reconhecê-la. Um dia, Fábio Junior avistou-a de longe e a convidou para ir ao palco: “até que não foi assim tão desagradável, Fábio Junior é simpático, gosto dele”. O fascínio por essa diversão parece ser, de certa maneira, uma tentativa de perpetuar o laço com a filha. Manter intacto, ao menos na memória, o tempo em que iam juntas aos programas de auditório.
Dona Ercy adora bordar e, muito habilidosa, bordava um enorme tapete de palhaço para o bisneto que iria chegar, filho de Maria Rita. Ela vai conduzindo sua vida com sabedoria e serenidade. Fizera para a filha de Elis uma roupinha, agora repete o ofício para o filho dela, seu bisneto. Elis também gostava de bordar. Talvez, se viva fosse, estivesse também bordando alguma coisa para o neto que iria nascer.
Saí da casa de Dona Ercy refletindo sobre o quão longe chegou a paixão adolescente. Tanto que cheguei até à mater-matrix, geradora do mito. Fico pensando como tio Luiz Affonso ficaria feliz se soubesse disso. Mesmo assim me recordo que em sua distinção sempre quis manter a aura de fã à distância, com medo de quebrar o mito. Certa vez, num dos shows, Elis desceu do palco e cantou sentada bem ao seu lado durante um tempo infinito. Ele preferiu manter os olhos fechados, para não quebrar o sonho. Tão longe, tão perto.
2 comentários:
Dani.
Amei a matéria.
Preciso, URGENTEMENTE, entrar em contato contigo. Poderias me adicionar no meu msn: DVMAGNUS@HOTMAIL.COM
Att
Daniel Magnus
Que materia maravilhosa,sou super fã de Elis, mesmo passado tantos anos de sua partida e como se ela estivesse entre nós, gostaria de fazer contato com vc Dani - djalmaelis2007@hotmail
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