quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Muitos tons acima


Semana passada abri a parte cultural da “Tribuna de Minas” em busca de um bom filme. No cantinho da página constava uma nota pequena, dando a notícia do falecimento do músico Hélio Quirino da Paixão. Uma nota fria e inexplicável como a própria morte.


Para amenizar a dor pela perda do amigo, só mesmo palavras-memória sobre o Helinho – figura tão ímpar que rimava mesmo era com vida. Ele não era só um músico, era a música plena jorrando por todos os poros. Seus gestos eram musicais. Seu sorriso, as teclas brancas do piano. O balanço de seu corpo, que não sossegava um minuto sequer, parecia acompanhar sua melodia interior. E as piadas que contava? Chatas e ingênuas muitas vezes, tinham sempre um envolvimento musical, a história de uma mudança de acorde, de uma nota fora do tom.


Conheci o Helinho em 2001, quando participávamos das gravações do cd “Poema e Canção”, de João Medeiros. Ele era o músico onipresente em quase todas as faixas, tocando contrabaixo e violão. O contrabaixo foi seu instrumento de batismo, mas o violão era o instrumento da paixão.


Exímio conhecedor de teoria musical, concepção e arranjo, Helinho ajudou – ou melhor, tumultuou – as gravações do cd de João Medeiros com a proliferação de suas idéias musicais. Se me explico bem, Helinho era como João Gilberto, um ourives do som. Tal como João, passava o dia inteiro com seu violão trancado no seu quarto no bairro juizforano de Barbosa Lage (“Barbosa Longe”, diziam os amigos), descobrindo o acorde mais perfeito, a harmonia mais elaborada.


No cd “Poema e canção”, uma dentre tantas funções exercidas por Helinho com prazer absoluto foi compor as vozes para o coro no samba “Beco do Balthazar” (de Mamão e Cezar Itaborahy). Este famoso samba que deu nome ao histórico Bloco do Beco, que persiste até hoje em Juiz de Fora, quase virou o samba do crioulo doido.


A proposta da criação do coro em Beco do Balthazar era de tirar o ar “botequinesco” da canção, inserindo um coro que realçasse a melodia. Idéia genial, super tarefa para o grande Helinho. Inacreditavelmente ele chegava cada dia com uma composição diferente para cada uma das três moças do coro. Quando as “pobres coitadas” chegavam a harmonizar tudo direitinho, ele mandava desconstruir tudo, tal qual Derrida, e vinha com novas composições.


Helinho era doce como um menino e ao mesmo tempo impetuoso. Não se rendia fácil à “burrice das pessoas” que não acompanhavam seu raciocínio musical. Certa vez quase me abandonou na estréia de um show porque eu não encontrava o tom certo numa canção: “O mínimo que uma cantora deve saber é o seu tom”. Grande mestre.


Durante os vinte anos que passou na Europa, tocou nos melhores festivais de Jazz e acompanhou a cantora e pianista Tânia Maria. Afeito aos estimulantes (com todos os eufemismos), Helinho viveu seu auge no exterior com experiências psicodélicas. Certa vez eu tomava uns remédios homeopáticos que tinham um cheiro forte de álcool, ele me pediu para experimentá-los pois, segundo ele, davam uma onda.

Ficar alguns tons acima era com ele mesmo. Quando o conheci, Helinho estava pegando bem leve. Tão leve que certa vez não pude acreditar que a pastilha branca afogada no copinho de pinga, era uma simples bala tic-tac.


Ultimamente andei lendo livros, textos e entrevistas do enfant terrible da Revista Verde, Rosário Fusco. Naquela famosa entrevista concedida ao Pasquim, ele falava sobre seus mil e um atributos, como a confecção de botas e perfumes para sua amada Annie. Os artistas são multifacetados e Helinho, como Fusco, não fugia à regra. Não só tocava, como fazia violões, luthier de grande habilidade. Cozinhava tão bem como um chef francês. O único problema era o tempo. Nunca se sabia o que mais demorava: a criação de uma música ou de um de seus artísticos pratos.


Nos tantos anos dedicados à música, ele só gravou um cd inteiramente de sua autoria. Sob a direção impecável de Gustavo Barbosa, “Maestro da Paixão” é um trabalho belíssimo que ficará para a história. O que impressiona em “Maestro da Paixão” (Funalfa, 2004) é a simplicidade e a sofisticação. O disco dispensa cordas e orquestrações, mas concentra sua força no talento singular de Helinho. Ele assina quase todas as composições, exceto “Reveillon”, parceria de Dudu Merhy e Paulo Violão.


Neste cd podemos ouvir e conhecer o verdadeiro Helinho em sua essência pura. Afinadíssimo, preciso, profundo, ele faz os arranjos, canta, toca violão, baixo e guitarra. Não é por eu ser cantora, mas a descoberta do Helinho cantor me levou às lágrimas. Um canto cool, alegre e sofrido, o sentido absoluto do som. Minhas palavras são insuficientes diante de tanta beleza. Fico com a voz de Helinho e os versos de Paulo Violão e uma vontade de chorar: “olha que o medo da vida/se acabou/ e afinal/ quem pensava que a fonte secou/ mal sabia que a vida começou”.

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