quarta-feira, 11 de maio de 2011

Entrevista com a cantora Kika Tristão


Daniela Aragão: Como começou a música em sua vida?

Kika Tristão: Sei lá, acho que desde que eu abri os olhinhos. Meu pai falava que eu estava no jardim da infância e cantava a música : “Eu gosto da árvore forida, você gosta também.Foi Deus que lhe deu a vida nasceu para o nosso bem”. Eu dizia Forida, devia ter uns quatro ou cinco anos. Música nunca me passou despercebido, eu me lembro que ela sempre me chamou atenção, me tocava, me sensibilizava. Quando ela entrou mesmo foi com uns nove, dez anos quando eu comecei a tocar violão. Eu pedi aos meus avós um violão e eles me deram, então comecei a tocar com uns nove anos de idade. Nessa fase eu morava em barra do Piraí, meu pai trabalhava na rede ferroviária e depois quando nós voltamos para Juiz de Fora continuei meu curso aqui com o Ronaldo Itaboray. Daí ele me falou que eu deveria levar a sério, pois achou que eu tinha uma voz bonita. Participamos de festivais da Pró-Música, depois disso conheci a Sueli Costa. A Sueli foi uma pessoa super importante, pois ela foi me dando caminhos para que eu me tornasse uma cantora profissional, para que eu vislumbrasse um profissionalismo e não ficasse só no amadorismo e tal. Ela me apontou esse caminho e aproveitei, fui para o Rio quando eu tinha uns dezessete anos para fazer aula com o Pepe Castro Neves que era muito amigo da Sueli.

Daniela Aragão: E nessa época a Sueli estava estourando no Brasil né?

Kika Tristão: A Sueli estava estouradérrima com as músicas, (cantarola) “ A minha alma tem um corpo moreno”, era o auge da Sueli e eu curti muito. Foi muito bacana conviver com a Sueli nesse período e ela é uma grande compositora, a simplicidade dela, nunca se deslumbrou, sempre foi muito próxima de nós simples mortais. De qualquer maneira ela me apresentou muita coisa lá no Rio, me abriu portas no Rio e me fez ver a seriedade, essa coisa de você ter sempre que estar buscando, estudando e se informando para não parar. Ela sempre me deu muito apoio no Rio, ela foi meu porto seguro no Rio, pois você sai de Juiz de Fora que é uma cidade pequena de hábitos interioranos e encara uma metrópole. E eu fui para o Rio trabalhando, o Pepe castro Neves me indicou para o produtor Ari Sperlling e eu fui trabalhar com o Wagner Tiso e fiquei fazendo parte do quinteto vocal que era o Viva Voz. Os vocais ficaram muito na minha vida artística no Rio de Janeiro e fui muito operária de música no Rio, aprendi muito, aprendi a ser profissional com a convicção de que eu nunca posso parar de estudar, que tenho sempre que me aprimorar. Aprendi o que é o sucesso, independente de ter ou não ter sucesso você é uma profissional e tem sempre que estar buscando estar com os melhores, isso eu sempre busquei, que é estar com os melhores da música popular brasileira.

Daniela Aragão: Eu conheci você no Mistura Fina fazendo um show com o Be Happy.


Kika Tristão: Pois é, o Be Happy foi uma coisa muito doida, pois eu saí do Viva Voz depois de uns quatro anos, eu trabalhava com o Djavan e já tinha feito toda a temporada do disco Lilás e trabalhei muito. O próprio quarteto foi se desgastando e consequentemente saí, nessa fase eu conheci o Luiz Avellar que foi o meu marido, trabalhamos muito juntos, na época trabalhei muito com jingle, gravação. Nessa fase nós pegamos para fazer a campanha da Coca Cola e o Luiz era o cabeça disso tudo. Era o lançamento da Big coke e da Diet coke, a troca da campanha que era “Coca Cola é isso aí” para “Emoção pra valer”, e nós trabalhamos muito nessa campanha. Era eu, Ana Zinger, Chico Pupo, Márcio Lott, gravávamos todo dia e depois de um certo tempo a coisa começou a soar rápido. O Luiz sugeriu que montássemos um quarteto vocal, desse trabalho da Coca Cola que surgiu o Be Happy. Eu sou muito amiga do João Caetano que é um grande compositor, mas ele trabalhava com moda também e um dia me deu uma camisa com guache com o Smile em que estava escrito Be Happy. Cheguei com essa camisa no estúdio e todo mundo adorou, cheguei no João e pedi mais camisas para distribuir para o pessoal. Naquele dia gravamos todos com a camisa escrita Be Happy e todo mundo começou a falar : _ Ah o Be Happy... Daí surgiu esse nome para o quarteto vocal. As pessoas achavam que era em função da música : - “Don’t Worry be happy” e não era, foi por causa da camisa. Daí surgiu o Be Happy, que foi muito bacana porque o Luiz era mentor dos arranjos, fazia todos os arranjos e foi um sucesso. Fizemos shows no Rio, São Paulo, algumas capitais, fizemos show em Curitiba. Foi intenso, daí fui para Nova York gravar vocal com a Simone, foi uma fase muito produtiva com o Be Happy, muito rica musicalmente. Aprendi muito. A música está sempre mudando de estilo, sempre te impondo e no meio do caminho fui chamada para trabalhar na dublagem de canções dos filmes do Walt Disney. As músicas da Disney te exigem muito que é o tal do canto belting, o canto Broadway.

Daniela Aragão: E essa sua experiência em conjunto é muito salutar, pois você tem essa vivência individual do seu canto, mas você adquire também essa experiência com o outro, aprende a lidar com a harmonização de vozes.

Kika Tristão: O Domingos Rafaele que é um grande crítico dizia que eram quatro solistas cantando vocal, na verdade nós não éramos vocalistas, nós éramos solistas. Os quatro tinham um histórico solo, eu o Chico Pupo a Ana que depois saiu e entrou no lugar, a Aline Cabral que também tem um histórico de solista. Então éramos quatro cantores solistas que fazíamos vocal. Isso diferenciava todo o panorama de vocais, as histórias dos vocais se dividem antes do Be Happy e depois do Be Happy, como disse o Domingos. Nós gravamos o jingle da Brahma: “- a número um” com João Gilberto. Tive o privilégio de gravar com João Gilberto, foi muito emocionante. Tive momentos muito marcantes na minha vida, pois são mais de vinte e cinco anos nessa profissão. Muitos episódios me marcaram muito como gravar com o Milton, Djavan, ele foi musicalmente enriquecedor, trabalhei nuns três discos dele. Trabalhar com o Walt Disney foi fantástico, pois me deu uma visibilidade, criei um público meu que prossegue em comunidades do Orkut e facebook e que conhecem o meu trabalho. Uma das experiências mais fantásticas foi ter gravado com o João Gilberto pois ele é uma pessoa a princípio muito serena, tive uma experiência ótima. Trabalhei com o Tim Maia seis meses fazendo shows pelo Brasil e tive experiências ótimas , nada assim como todo mundo fala.

Daniela Aragão: João Gilberto e Tim Maia são meio antíteses, um é a explosão e o outro a contenção.

Daniela Kika Tristão: Com o João Gilberto o arranjador e produtor era o Eduardo Sotto Neto, ele é um grande arranjador, fez até aquela música famosa do Ayrton Senna. Gravei com eles o jingle do Rock in Rio. Nós entramos no estúdio e chegando lá gravamos o jingle e tal. Quando acabamos tudo João Gilberto abriu a porta do estúdio e disse: “- Essas vozes parecem sinos”. Nós ficamos super emocionados, foi aquela festa dentro do estúdio. Em certo momento rimos, pois ele ficava sempre muito quietinho, mas em certo momento levantou e disse: “- Não estou gostando muito dessa mixagem porque está tudo assim linear, as montanhas não são lineares porque a música teria que ser linear? É uma viagem né? Muito emocionante também foi gravar com Roberto Carlos, fui fazer vocal para um disco dele. Fica tudo na mão do produtor. Antigamente as gravações eram à noite, raramente pela manhã, enfim, músicos, técnicos de som não funcionam bem de manhã. Eu me lembro que era de madrugada e o bar da Som Livre já tinha fechado e o bebedouro ficava no andar debaixo. Na hora que deu um intervalinho saí do estúdio para ver se conseguia água, esse estúdio tem um anexo que é uma sala de televisão. Acabaram os estúdios todos e nem sei esse da Som Livre ainda existe. Aí falei alto: - não tem água vou ter que pegar lá embaixo. Só ouvi uma voz me dizer assim: “-Pode pegar no meu bar”. A primeira coisa que me veio na cabeça foi assim: é o rei. Porque eu já tinha gravado alguns discos dele como vocalista e ele nunca tinha aparecido no estúdio. O universo do Roberto Carlos é muito interessante, por exemplo a questão do figurino, todos da equipe que incluem músicos, técnicos e tal devem ir de branco, azul, não podem ir de marrom, preto. Isso é da superstição dele e é sério. Então escondíamos nossas bolsas que não eram brancas ou azul turquesa. E o Rei foi muito simpático, ele tem uma luz, um negócio diferente. Me recordo que a Sueli Costa falava também da luz de Dorival Caymmi, eu não o conheci. Ele era uma entidade, acho que tem pessoas que são assim mesmo. O Milton Nascimento também me provocava timidez, eu sempre ficava nervosa. Eu me encontrava muito com o Milton, principalmente na época em que era casada com o Luiz Avellar. Foi uma fase muito produtiva que guardo com muito carinho.

Daniela Aragão: Um período muito rico em que a música popular brasileira vivia sob esse predomínio do bom gosto e da qualidade.

Kika Tristão: Tinha muito trabalho e muita qualidade, eu cheguei no Rio e não sabia gravar, nem sequer sabia como colocar um fone. Eu tinha dezenove aninhos né Dani? Essas coisas de saber a distância do microfone e tal, essas coisas, esses conhecimentos hoje você adquire em Juiz de Fora, na época não era possível. A primeira vez que eu entrei num estúdio foi no disco da Funalfa, o primeiro disco da Funalfa em que gravei Beco do Baltazar. Fomos gravar lá no estúdio Hawaí, no Rio, e depois fiquei sabendo que é um dos piores estúdios no Rio.

Daniela Aragão: Essa música é do João Medeiros né?

Kika Tristão: Sim, música do João. O João Medeiros foi uma entidade que em Juiz de Fora não tem mais, e é uma coisa que eu já falei em público. O João Medeiros teve um papel importantíssimo na minha vida e acho que na vida artística de muitos outros de juiz de Fora, pois o João era um crítico, o João Medeiros em Juiz de Fora era o verdadeiro crítico de música. O crítico é muito importante, pois ele vai te dando uma referência, o João tinha uma coisa assim de que eu tinha que crescer. Foi ele até que me apresentou a Sueli Costa, pois ele viu a minha vontade de ser profissional, ele estava lá quando ganhei o festival em Cataguases, ganhei como melhor intérprete. Eu era novinha, tinha dezessete, dezoito anos e cantava. O João me incentivava, ia aos shows, enfim, era importante para mim que desejava me profissionalizar, me tornar de fato uma artista, ouvir dele os julgamentos. Ele estabelecia os parâmetros.

Daniela Aragão: Você disse que o João foi importante para você, para mim também foi fundamental no despontar da minha carreira de cantora. Minha primeira gravação foi a faixa Sol da Tarde, parceria dele com Damásio. João dirigiu um show meu no Musik dedicado as composições de Sueli Costa e Cacaso e mais tarde elaboramos juntos um projeto de um cd inteiramente dedicado as canções da parceria. Infelizmente João partiu antes da aprovação do projeto e não pode participar.


Kika Tristão: Ele que nos apresentou inclusive na ocasião da condecoração do Fernando Brant, lá no Faisão.

Daniela Aragão: Pois é, que interessante. Vale lembrar que ele foi o primeiro parceiro da Sueli.

Kika Tristão: Eles eram grandes amigos

Daniela Aragão: O João tinha um radar para a coisa boa, ouvido apuradíssimo.

Kika Tristão: Sinto hoje a falta desse tipo de crítico como o João. Ficou um vácuo, não teve ninguém que assumisse, que preenchesse esse vazio do João Medeiros. Juiz de Fora precisa, pois a cidade necessita de uma referência, o João conhecia por exemplo o Abel Silva, outros grandes compositores, sabia o que estava acontecendo entre os grandes músicos. Sabia quem tocava pracaramba. Ele uma vez me falou: “- Kika, acho melhor você parar de ouvir Elis Regina”. Eu fui como toda a minha geração da escola Elisiana, como costumamos brincar. Isso que o João falou foi muito importante para mim, ficou na minha cabeça. É sinal de que a partir daquele momento eu tinha que buscar a minha identidade. E o João agregava, ele queria saber sempre o que estávamos fazendo. Além de tudo ele escrevia no jornal, tenho notinhas do João.

Daniela Aragão: Ele era o cara que dava o respaldo.

Kika Tristão: Como eu me deparei com vários críticos no Rio, Mauro Ferreira, Domingos Rafaelli. O Mauro Ferreira é mais ligado no lado da MPB pop e o Mauro Ferreira já é do jazz, o Tárik de Souza que conheci também. A arte precisa disso e Juiz de Fora é uma cidade em que proliferam músicos. Eu acho que sem o crítico a coisa fica no amadorismo, na tentativa do profissionalismo.

Daniela Aragão: Eu convivi com o João nos seus últimos anos de vida muito assiduamente e ele se mostrava muito desencantado com o panorama da música brasileira. Mesmo estando em Juiz de Fora ele parecia sentir-se sem lugar. Não havia para ele mais espaço no jornal para o tipo de crítica que ele produzia. De certa maneira a cidade já começava a viver certa orfandade com ele vivo.

Kika Tristão:A música passou por um processo que o João pegou já no final da vida dele. A música passou por essa crise fonográfica que a muito tempo já vinha. Vale lembrar também a banalização que a internet trouxe para a música. São dois lados, de um lado a facilidade de acesso proporcionada pela internet e por outro a banalização. Antes ficávamos um ano esperando a chegada de um disco do Chico Buarque, do Milton, dos Borges, às vezes dois anos para um disco do Tom Jobim. Era um acontecimento. Eu me lembro quando foi lançado o Saudades do Brasil da Elis Regina que vinha numa caixa e era caríssimo, um negócio inacessível.

Daniela Aragão: A questão é da mudança dos valores da mídia, o que a internet vende hoje. O Chico Buarque deu uma declaração dizendo que achava que o gênero música popular brasileira seria extinto. Essa forma clássica que conhecemos de uma letra bem construída, uma música e uma voz, isso seria uma manifestação do século XX.

Kika Tristão: Eu concordo e obviamente isso vai influenciar as outras músicas. Estou nessa fase do meu novo cd e hoje em dia tem a World Music que aproveita muito a MPB clássica, criou outra roupagem, uma nova forma de interpretação a qual eu me identifiquei pracaramba. Acho que essa coisa passou, como passou o erudito. Se via ópera nos teatros normalmente, era para o povão. Essas coisas vão mudando mesmo, acho que a música está ficando world mesmo, mundo. Não está tão segmentada. Estou até em contato com a Sarah Tavares que é uma grande compositora portuguesa, ela é uma excelente compositora, grande cantora. Ela é premiada nesse segmento que é a World Music que consiste numa MPB com uma roupagem mais moderna. Acho que é um reflexo desse mundo em que estamos vivendo, que é uma coisa mais globalizada. Quer colocar Cítara no meu cd, utilizar uns instrumentos diferentes. O eletrônico está aí e chegou para ficar, os lounges que são muito bacanas. O mundo vivia antes uma coisa muito fechada, as políticas eram muito cruéis e isso de certa forma influenciou a música. Até uma vez eu vi o Roberto Menescal comentar sobre o impacto da entrada da Bossa Nova. É um ciclo, vou fazer regravação de João Donato, Marcos Valle, só que com outra roupagem. Acho que é uma evolução da música e seria importante a presença de um crítico para avaliar isso. Às vezes eu sinto que Juiz de Fora ainda está muito no Trem Azul, é importante você ver o que os grandes músicos estão fazendo, os arranjadores, os produtores. Eu peguei dois grandes produtores que são o Donatinho, filho do João Donato, um garoto com no máximo trinta anos e que já trabalhou com a Fernanda Abreu,Vanessa da Mata e o Alex da Bossacucanova que não perdeu esse caminho que a música tá tomando.

Daniela Aragão: Eu vou puxar um pouquinho para trás aproveitando sua deixa da Bossa nova mencionada um pouco antes. Você gravou um belo disco pela Lei Murilo Mendes com canções de Tom, Vinicius, um repertório primoroso.

Kika Tristão: Esse cd foi um cd projeto, foi na fase em que se estava homenageando os cinquenta anos da Bossa Nova e a MPB também. Escolhi músicas bem clássicas da Bossa Nova como Chega de Saudade, que marcou a Bossa Nova. Gravei Carlinhos Lyra, peguei arranjos de Dudu Lima, Hermannes de Abreu.


Daniela Aragão: São clássicos, mas que constituem em desafios pois o trabalho é para não se deixar cair no lugar comum.

Kika Tristão: Voltamos a João Medeiros novamente, quando eu estava participando de um dos primeiros festivais na minha vida o João se aproximou de mim e disse: “-Kika, aprende a cantar Bossa Nova, pois quem sabe cantar Bossa Nova canta tudo”. É verdade, pois Bossa Nova não é simples de cantar. A Lei Murilo Mendes é fantástica, pois daqui a uns trinta anos a cidade vai possuir um acervo musical inigualável. Na produção do meu disco eu fiz uma fusão entre amigos do Rio e juiz de Fora, o Marcos Suzano tocou no meu cd, o Emerson Dias fez a mixagem do cd. Foi um projeto árduo e gosto muito dele, acho que foi um cd muito honesto.

Daniela Aragão: Ele tem um enquadramento muito bom, pois as vezes aparecem discos muito irregulares. O seu apresenta uma proposta uniforme.

Kika Tristão: É verdade, eu fiz um pouco de Bossa Nova como Chega de Saudade e Coisa mais linda e gravei Vieste do Ivan Lins. Gravei Sol de Primavera. As canções do Ivan são glamourosas. Achei um disco projeto e esse que irei fazer agora pela Lei considero o meu disco de carreira.


Daniela Aragão: Te desejo muito sucesso pois talento não te falta. Obrigada pela entrevista.

Kika Tristão: Eu agradeço Dani, sucesso pra você também.