terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Entrevista com a cantora e compositora Cristiane Visentin



Eu sempre falei que queria ser artista. Falava isso para família quando era bem pequenininha. A música surgiu em minha vida e daí em diante eu nunca mais parei.


Depois de passar quase uma década nos Estados Unidos cantando o repertório da música popular brasileira e composições próprias, a cantora, compositora e violonista Cristiane Visentin retorna ao Brasil com uma bagagem enriquecida pelo contato com grandes músicos do cenário nacional e internacional. Tivemos uma conversa super agradável em que Cristiane relembra os primórdios da carreira em Juiz de Fora, os festivais, as parcerias e os projetos atuais. Confiram abaixo:



Daniela Aragão: Quando a música apareceu em sua vida?


Cristiane Visentin: Falar sobre isso é falar como todo mundo fala, desde que eu me entendo por gente. Fica até engraçado falar isso (risadas), eu não gosto muito de usar frases muito comuns, é isso aí, essa é a minha verdade. Eu tenho uma influência muito grande por parte da minha mãe, ela também cantava, foi cantora de rádio, não rádio em nível nacional, mas cantava na rádio da cidadezinha dela. Foi podada pelo pai, que era músico também. Depois ela resolveu casar com meu pai e assumir a família, e não mais se dedicar a música. Mas meu avô Zé, por parte de mãe, grande avô, grande violonista e meus tios irmãos dele me influenciaram. Inclusive meu avô era autodidata, era muita musicalidade, um tocava cavaquinho, outro violão de doze, outro violão de sete, e eram reuniões e mais reuniões em família e eu pequenininha assistindo tudo. E ao invés de ficar brincando com as crianças na festinha, eu ficava sentada assistindo. Eu gostava muito, me arrepiava. E as minhas brincadeiras de infância eram um pouco diferentes, ao invés de brincar de boneca, eu não queria saber de boneca, a minha maior satisfação era subir em cima de uma mesa, pegar um cabo de vassoura imitando um microfone, e ficar fazendo o meu programa de auditório. Como se eu estivesse cantando diante de um público e tal. E a música foi surgindo assim na minha vida, lembro-me que aos cinco anos eu pedi uma boneca de natal e minha irmã pediu um violão, e aquele violão ficou parado bastante tempo em cima do guarda roupa. Nem eu brincava com a boneca e nem ela com o violão, mas eu continuava subindo em cima da mesa cantando com o cabo de vassoura, eu não sabia que eu era instrumentista, que tinha essa vocação e tal. Daí ganhei um acordeon, que tocava direitinho, tinha todas as notas. Eu saí tocando de ouvido, um dia olhei para o violão lá em cima do armário, minha boneca ainda permanecia intacta. Fiz a proposta para minha irmã : - eu te empresto a minha boneca, mas você me empresta seu violão? E eu saí tocando o violão, fiz todos os acordes possíveis, assim primários e tocando todas as músicas que sabia na época, aquelas típicas de criança como Atirei o pau no gato, Fui no tororó beber aguá não achei, Parabéns pra você e musiquinhas que eu aprendia no colégio. Eu sempre falei que queria ser artista. Falava isso para família quando era pequenininha. Assim então que surgiu a música em minha vida, e daí em diante eu nunca mais parei.


Daniela: Elis Regina certa vez falou que tinha ficado muito emocionada ao tomar consciência da beleza de sua voz. Você tem um timbre belíssimo, como veio essa consciência do cantar para você?

Cristiane: Eu não acreditava que seria cantora, eu queria ser instrumentista. Eu pensava que iria ser somente instrumentista, eu cantava quando era criança, subia na mesa e tal, mas quando descobri o instrumento já passei a esquecer que era uma cantora. Eu queria mais o instrumento do que tudo na minha vida, até o dia em que o pianista Euzébio Monfardini me encontrou e falou: “- Você tem uma voz muito linda”. Eu falei: - não. Eu sou boa violonista, e eu não era nada (risos). Eu tinha treze anos de idade na época. Daí ele me convidou para cantar num restaurante onde ele trabalhava aqui em Juiz de Fora e meus pais passaram a me levar toda semana.

Daniela: Nesse restaurante você parou momentaneamente de se acompanhar?


Cristiane: O Euzébio me perguntou: - o que você canta? Respondi: - Eu canto o que eu toco. Daí falei João Bosco, Elis Regina e os antigos clássicos da MPB como Lupicínio Rodrigues, Cartola, Noel Rosa, Dolores Duran e muitos outros...Então logo comecei a cantar no Dom Fellipo toda semana, ganhando um dinheirinho simbólico, eu não tinha nem carteira da ordem dos músicos, não tinha nada. E daí eu fui me ouvindo e percebendo que realmente eu tinha uma afinação, que tinha talento para isso, o canto.

Daniela: Os músicos que entrevistei falaram muito da influência que sofreram de músicos como João Gilberto e Tom Jobim, e percebo em você nitidamente a influência do jazz, do soul. Como vem isso?


Cristiane: Desde os meus onze anos que escuto Etta James, Sarah Vaughan e Ella Fitzgerald. Gosto muito também da Janis Joplin, que também se encaixa bem nessa linha jazz, soul. Não sei porque sofri essa influência, nunca tive mito brasileiro, não sei porque. Eu gosto da música brasileira, adoro e sou influenciada por ela, mas não sei porque eu tive uma queda muito grande pela música negra americana. É claro que sou muito influenciada pelas belas composições de Sueli Costa e Fátima Guedes por exemplo, cheguei até a fazer shows dedicados a essas duas compositoras. Contundo não sei nem porque o destino me levou para isso, tanto que fui acabar parando nos Estados Unidos.

Daniela: E no período inicial de sua carreira você passou um longo tempo em Juiz de Fora?


Cristiane: Fiquei bastante tempo em Juiz de Fora, aí eu fui para o Vitrô Musical Bar, que mais tarde se transformou em Jazz Club Bar, onde ali de fato eu assumia a cantora Cristiane Visentin, que eu começava a construir. Confesso que esses espaços foram acontecimentos sui generis na história da música de Juiz de Fora. Não devo deixar de mencionar a importância do Prova Oral, pelo fato de que ali eu também pude conhecer e trabalhar com músicos de projeção nacional.

Daniela: Grandes músicos deram canja ali como o Toninho Horta, Nivaldo Ornellas e Arthur Maia. Percebo que o Jazz Club foi um marco na carreira não somente sua, mas também de outros artistas como o contrabaixista Dudu Lima, que hoje é tido pelo guitarrista Stanley Jordan, como um dos melhores baixistas do mundo.


Cristiane:Ah o Dudu, eu trabalhei com ele juntamente com o Trio BelaFonte, do qual na época ele fazia parte.


Cristiane: Quantos músicos eu conheci ali dentro e sendo ainda uma menina, eu tinha quatorze anos de idade na época. E aí me chamavam para dar canja, e eu ia no Djavan, que já estava em evidência, ia na Janis com Summertime, ia em todas as canções. Eu cantava tudo de jazz, principalmente os Standards. Eu consumia diariamente o jazz. Penso que de certa maneira isso devia impressionar os ouvintes mais experientes, pois eu era uma menininha cantando diante daqueles grandes lá ao meu lado, alguns que hoje em dia nem atuam mais na música né? Isso foi de uma importância muito grande para mim.

Daniela: Você vivenciou todos esses locais que hoje já não existem mais?


Cristiane: Eu me considero pioneira em música ao vivo em Juiz de Fora como cantora. Antes de mim, como cantora considero que só existia a Raquel Silvestre, não tinha cantora em Juiz de Fora que atuasse na noite exceto Raquel e Cristiane Visentin. E a Raquel era aquela escola, uma escola, uma grande cantora. E ela já tinha uma certa vivência, então eu me considero uma pioneira nesse sentido. Porque eram só homens que atuavam na noite de Juiz de Fora.


Daniela: Interessante é o fato de que você pegou uma fase de florescimento das cantoras. Eu nem peguei isso enquanto cantora, pois sou mais nova um pouco. Tinha você, a Rosana Brito, a Mirinha Alvarenga, Isabella Ladeira, Marcela Lobo...


Cristiane: Não posso deixar de falar que durante esse momento despontava a Rosana Britto, eram então Raquel, Cristiane e Rosana Britto em evidência na cidade. Foi uma fase muito legal, e a música era cultural, uma música boa que a gente fazia. Não quero pichar, pois tratando-se de cultura, importa muito na verdade é aquele que está produzindo, quem faz. Há ouvidos para ouvir o que for, e qualquer segmento de música é manifestação cultural de um povo. O funk é cultura, forró é cultura, sertanejo é cultura, agora a minha cultura é diferente. O que eu absorvi foram músicas que têm qualidade de letra e qualidade de música. Hoje em dia você pode muito bem fazer uma música e uma letra sem qualidade, e no entanto ela mesmo assim pode valer a pena para ouvidos de outros. Isso é cultura pra mim.

Daniela: Sempre quando pensava em Cristiane Visentin me vinha de imediato também o guitarrista Salim Lamha. Como vocês desenvolveram uma dupla bonita não é?


Cristiane: Pura sintonia e química musical, o Salim é um grande músico, muito sensível. Com a gente até hoje não ocorrem ensaios, nos guiamos por pura sensibilidade.


Daniela: Você não tocou até agora no seu lado de compositora. Você ficou conhecida como uma das grandes vencedoras dos festivais, como intérprete e até mesmo como compositora. Seu lado compositora foi desenvolvido mais tarde ou emergiu junto com o canto e o desempenho do violão?


Cristiane: Eu com onze anos já tinha a minha primeira música, que era uma música totalmente infantil, mas que despertou o meu lado de compositora. Esta canção se chamava O passarinho azul. Eu levava pra escola um caderninho e ali eu compunha minhas canções inocentes, apropriadas para idade. Depois chegava em casa e quando pegava o violão elas saiam como água de um cano inspirador. Saiam assim mesmo sem precisar ter o instrumento em mãos.

Daniela: O Bird in blue seria uma canção que se desdobrou da singela Passarinho Azul? O Bird é mais rascante né?

Cristiane: Não, olha que loucura, vou chegar lá. Não, era somente o Passarinho Azul, que dizia assim: fugiu da minha gaiolinha um passarinho azul/ que eu peguei na florestinha verde/ e eu vi bem lá no horizonte voando em plena imensidão tão triste/ pássaro azul/ pássaro is blue/ pássaro azul. Tem mais um restinho da letra, aí depois é que veio o Bird in Blue.

Daniela: Elas não teriam uma relação então?

Cristiane: Talvez até tenha, pode estar oculta essa ligação. O Bird in blue é um blues, mas o título não significa que eu queira dizer que a música seja um blues, mas é um blues, porque na verdade se eu quisesse falar que o Bird in Blue seria um blues, eu teria colocado Bird in Blues, mas não é, é Bird in Blue, ou seja, um pássaro no azul.

Daniela: E essa canção ganhou muito festivais ...

Cristiane: E eu comecei a compor, a fazer, e a coisa mais difícil para mim nesse processo de composição era ter parceiros, porque eu sou muito minha. Me enfio no meu quarto, no meu mundinho e crio minhas músicas, as minhas músicas saem assim. Faço a letra e a música, a maioria delas eu faço letra e música juntas.

Daniela: E parcerias, já fez?

Cristiane: Tenho alguns parceiros como Nilton Bustamante, que é um super parceiro, Claudio Massenas, de Belo Horizonte, Telma Tavares, do Rio, muito boa cantora e compositora, o Naninho que está em Nova York,o musicalíssimo maestro e arranjador Aécio Flávio, Dani Machado... Tenho muitas composições, mas a maioria na verdade são somente minhas.


Daniela: Você ficou quase uma década fora não é? Como foi essa experiência nos Estados Unidos?


Cristiane: Foi uma experiência fascinante para mim. Foi muito bom, primeiro porque eu saí aqui do Brasil contratada, não sai aleatoriamente, não aconteceu assim de : - vou fazer minhas malas e ir embora. Mesmo porque eu não pensava em sair do país, nunca pensei em sair do país, meu ideal era ficar aqui no Brasil e fazer minha carreira aqui no Brasil. Não falo nem de sucesso, pois nessas alturas do campeonato não sei mais o que é fazer sucesso, pois sucesso para mim é você estar se realizando como pessoa, como profissional. Minha visão de sucesso hoje é totalmente diferente. Se eu vou ali e canto para um pequeno público composto de cinco ou seis pessoas e eles prestam atenção no meu trabalho, isso para mim já é sucesso. O fato de ter ido embora contratada foi muito bom, pois eu já cheguei com infra estrutura. Eu tinha onde morar, onde cantar e tal. A princípio fui para ficar dois meses, não fui para morar e dali fui ficando, pois foi surgindo convite aqui, convite ali, e fui ficando, ficando, e acabei ficando todo esse tempo .


Daniela: E levando o repertório do Brasil?

Cristiane: Só Brasil, só cantava música brasileira. Depois é que passei a cantar certos hits internacionais, pois passei a fazer festas para americanos. O contratante me pedia: “Canta alguma coisa em inglês só para quebrar o clima.” E eu dizia, mas estou aqui para cantar música popular brasileira, é esse meu trabalho e tal. E ele falava que eu deveria cantar canções americanas para eles se sentirem mais em casa. Aí comecei a incluir os jazz que eu sabia cantar, hits de Elton John, George Michael, Madonna, tudo que eu sabia, que meu ouvido captava. Até coisas que eu não tinha o domínio, daí eu fui crescendo. Mas o meu trabalho nos EUA foi para divulgar a música popular brasileira.


Daniela: Me recordo da época quando te enviei o meu cd, e você muito gentilmente divulgou ele por lá na rádio em que trabalhava.

Cristiane: Sim, eu tive um programa na Rádio Brasil FM em Miami, que era uma rádio super incrível, muito legal, os diretores maravilhosos que me deram toda a liberdade do mundo para divulgar a música popular brasileira em todos os setores. Eu tocava de tudo, mas tinha à parte um programa em que eu lançava os músicos que eram independentes, que não tinham selo, gravadora, aqueles músicos que pegavam o próprio dinheirinho e investiam mandando ver no que queriam e acreditavam. Esse era o meu intuito, foi o que eu falei para a diretora Tânia Azevedo, que era a diretora da rádio. Sentei na sala com ela e falei: - Tânia, você me dá a liberdade de divulgar as pessoas do Brasil, mesmo as que estão aqui fazendo música independente? Ela falou: -of course. Então no meio do meu programa eu tinha uma hora em que dedicava as pessoas, e intitulei o programa de Os independentes do Brasil. Eu achei um barato esse título, pois me lembrava algo dessa independência do Brasil, emancipação da nossa música...E eu lancei muita gente, Paulinho Shoflenn, Douglas Souza, você Daniela Aragão, Lúdica Música, Marcela Lobbo, dentre tantos outros que agora não me vem a memória.


Daniela: E a recepção era boa?


Cristiane: Calorosa, essa rádio era uma rádio popular, ouvida mais por brasileiros, mas por muitos americanos também. Era uma rádio afiliada a uma outra chamada Love Nine four . Rádio puramente americana, smooth jazz, só toca Ivan Lins e o resto do mundo que faz smooth jazz. O jazz melódico. E fiquei um ano e meio nessa rádio até que fui participar do Primeiro Festival de Música Brasileira dos Estados Unidos. Eu fiquei em segundo lugar regional na Flórida e segundo lugar nacional, sendo eu a única mulher compositora neste festival. Ganhei com uma música minha, PESCADOR DE ESTRELAS, cantando em português. Um festival que tinha no corpo de jurados o Jayme Monjardim, que embora seja famoso como diretor de novelas, mostrou um olhar crítico e sensível para a música. O Bob do Valle, que é um cara muito fera também.

Daniela: Você dividiu o palco com Menescal e Hélio Delmiro também ...

Cristiane: Sim, daí começaram a surgir convites e mais convites, até convites para sair da Flórida e partir para Nova York. Ah pensei, vou sair da Flórida, desse sol, toda bronzeada. Olha o que eu pensava (risadas), que valor que eu dava para a minha música. Daí falei, ah não vou sair desse sol, vou ficar por aqui. Aí fiquei mais um tempo na rádio, cobri programações na rádio, também trabalhei como repórter de rua. Entrevistei muita gente, eu era repórter de rua, eu ia para os bastidores, eu era uma espécie de mil e uma utilidades nos meios da comunicação (risadas). Além do meu lado de cantora, desenvolvi o meu lado de comunicadora que eu amo. E acabei recebendo uma série de convites que me fizeram tomar uma atitude súbita, peguei meu carro com a carteira de motorista vencida, despenquei com ele da Flórida para Nova York, em plena Highway e fui embora, meti o pé na estrada e cheguei lá.


Daniela: On the Road

Cristiane: Quando cheguei lá já tinham vários trabalhos me esperando. Comecei a cantar em New Jersey, cantava em universidades, fazia festas fechadas em hotéis e cantava nos bares. Alguns brasileiros e muitos bares americanos. Cantava em muitos pubs americanos, fui cantar com os velhinhos do jazz, e lá foi a minha escola maior. Até quando eu recebi um convite para cantar numa das melhores casas que existe no Village, que se chama Café Wha?, que é uma casa americana, mas que dá o maior valor para a música brasileira. Cantei com uma super banda brasuca, com doze músicos no palco, todos eles muito bem situados aqui no Brasil. Um tocou com Gal, outro com Menescal, outro com Carlinhos Brown. Todos eles tem uma escola profissional, doze músicos em cima do palco. E foi uma experiência maravilhosa, casa cheia, e muitos americanos nos assistindo, uma noite brasileira. O repertório era Jorge Benjor, Sandra de Sá, Djavan, João Bosco, Chico Buarque, Caetano Veloso, e os americanos ficavam enlouquecidos. Cantei no Zinc Bar também, no Village. Zinc Bar é uma referência em Nova York.

Daniela: Entrevistei o Bernard Fines, que é um cantor francês radicado no Brasil, e ele falou bastante sobre a influência da Bossa Nova em seu canto e suas opções sonoras. Nesse seu tempo nos EUA aconteceram também muitas solicitações de repertórios da Bossa Nova?


Cristiane: Com certeza, a música brasileira é muito bem quista no mundo inteiro. Meu sobrinho acabou de voltar da China e estava falando sobre o tanto que os chineses amam a música brasileira. E não foi só na China que ele disse que viu a música brasileira ser tão adorada. Nos últimos tempos eu venho observando uma coisa muito engraçada, a invasão do forró e do sertanejo, e os americanos gostando muito.


Daniela: Não é o sertanejo Tonico e Tinoco, Xavantinho e Pena Branca, mas o sertanejo massificado, não é?

Cristiane: Pois é, justamente o sertanejo massificado. E que para mim nem é sertanejo, alguém deu esse rótulo para essa categoria errado. Foi algum crítico musical que não deve nem ter estudado música para falar que essa categoria de música é sertanejo, isso é um romântico sem sentido. Eu não posso falar que é o brega, sabe por que? Pois tem uma música do Bruno e Marrone que eu canto chamada Choram as rosas, ela é linda, mas não é do Bruno e Marrone, mas de um autor que eles gravaram, mas quem conhece a dupla quando me ouvir não vai saber que estou cantando a mesma música. Quando chega no estribilho aí é que as pessoas reconhecem. Eu não posso taxar de brega, pois se estou cantando, então estou cantando brega. Eu me considero uma cantora popular ao mesmo tempo, uma cantora de povo. Eu fiz o Brazilian Day em New Jersey para um milhão de pessoas. Elaborei um repertório para todo mundo cantar junto, a la Jota Quest (risadas). Cantei Tim Maia, Gostava tanto de você diante daquela multidão, um milhão de pessoas cantando junto comigo.


Daniela: O importante é a releitura, o que você consegue extrair de qualitativo de uma canção aparentemente banal. Revelar alguma beleza para os ouvidos viciados na falta dela né?

Cristiane: Por isso é que eu falo, fui convidada para cantar numa casa em Brasília, que creio que esteja até fechada hoje. Uma promoter das boas me perguntou se eu poderia fazer um show exclusivamente de Bossa Nova, eu disse que sim, que era a minha praia, que adoraria etc e tal. No meio do trabalho, lá pelas tantas, com aquele burburinho de conversas, sem ninguém prestar atenção, a promoter me chega com um bilhetinho dizendo: “- O povo está pedindo sertanejo”. Daí eu comecei a transformar todos os "sertanejos" que eu conhecia em jazz, blues, pop rock e fui inventando. Não deixei a essência se perder é claro, eles não entenderam muito bem, mas fui aplaudidíssima, apesar de algumas reclamações de pessoas insistindo para que eu fizesse um cover das gravações dos discos, arranjos chapados e tal. E daí quando peguei o sertanejo de raíz ( que o meu avô muitas vezes fazia) eles não conheciam nada a não ser Cio da Terra, Rancho Fundo e Luar do Sertão.


Daniela: E com relação as premiações, pode falar um pouquinho?


Cristiane: O que considero importante nos Estados Unidos foi o fato de eu ter participado de alguns prêmios que são importantíssimos para a comunidade brasileira nos EUA, que é o Press Award, grande prêmio que ocorre em várias categorias. Na verdade nunca participei concorrendo, mas sempre convidada para fazer os shows do evento. Participei de dois, um em homenagem ao Menescal, em que dividi até o palco com ele, e outro em homenagem a Alcione. Isso foi muito enriquecedor, pois fiquei conhecida como uma pessoa atuante no meio cultural, produzindo coisas, sempre em evidência na ativa divulgando a MPB. E o meu lado de comunicadora também foi reconhecido nessa ocasião, inclusive até recebi um prêmio como Celebridade do Sul da Flórida, por minha atuação cultural na comunidade brasileira. Não devo esquecer das minhas premiações no Brasil, é claro. Aqui obtive 47 prêmios de melhor intérprete com participações em 68 festivais da canção. Participei com composições de minha autoria e também de outros vários compositores, como Sueli Costa e Fátima Guedes.

Daniela: Quais são seus projetos atuais?


Cristiane: Estou ensaiando o musical "RELICÁRIO DE RITA CRISTAL", protagonizado anteriormente por Vera Fajardo.Fui convidadada para reviver esse musical pois Aécio Flávio e José Antonio de Souza, que são os autores, acharam que eu era a verdadeira "RITA CRISTAL". Mas tenho dúvidas (risos). Possivelmente me chamaram por eu ter trabalhos como atriz também. Sinto que mesmo sendo cantora, posso desenvolver esse lado de atriz. Tem me dado muita satisfação a parceria que estabeleci recentemente com o maestro Aécio Flávio, embora ele já me conhecesse dos velhos tempos de menina, só agora esse encontro se deu.Tudo acontece no tempo certo, eu agora uma mulher, já de fato amadurecida na música, com uma considerável trajetória percorrida, e ele um músico já amadurecido na vida. Pura satisfação!Tive também a honra de regravar a composição dele em parceria com Luiz Fernando Gonçalvez, chamada DE CORPO INTEIRO. Ela foi um sucesso nos anos oitenta na voz da cantora Jane Duboc e está para acontecer numa nova leitura.


Daniela: Te desejo puro sucesso, obrigada.


Cristiane: Eu que agradeço, adorei.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Talento


A cantora Cristiane Visentin retornou dos EUA em junho deste ano.Depois de 10 anos de experiência no exterior, ela nos presenteia com sua voz belíssima e com seu violão cheio de swing, que traz a força do legado jazzista. Suas interpretações exploram a emoção, aliada a sabedoria apurada dos meandros sonoros. Ouvir e cantar com Cristiane Visentin me emociona, sempre!

domingo, 13 de dezembro de 2009

Pode misturar


“Ah! Menina tonta/toda suja de tinta/mal o sol desponta!/Sentou-se na ponte, muito desatenta/E agora se espanta: quem é que a ponte pinta com tanta tinta...”. Ao me deparar com a super colorida capa do encarte de Partimpim2, de Adriana Calcanhotto, voltam-me a memória os versos do poema Tanta Tinta, de Cecília Meireles, que eu adorava falar bem alto e todo de cor, assim como os famosos versos de Bailarina : “não conhece nem dó nem ré/mas sabe ficar na ponta do pé./Não conhece nem mi nem fá/mas inclina o corpo para cá e para lá”. Guardo ainda em bom estado de conservação meu exemplar de Ou isto ou aquilo, que me acompanhou durante anos nos tempos de escola. Em formato A4 e com belas ilustrações de Eleonora Affonso, vou folheando o livro que traz poemas bem humorados e plenos de musicalidade. O violão e o vilão pareceu-me desde a leitura de menina pronto para ser cantado - o violão, Olivia, a viola e a vida se alternam num jogo sonoro rico em experimentações: “Não vive Olívia na vila,/ na vila nem na viola./o violão levou-lhe a vida,/levando o violão dela”. A profusão de cores e sons que jorravam dos poemas de Cecília inundou de lirismo uma parte de minha infância, assim como as canções da Arca de Noé, de Vinicius de Moraes.

Dando continuidade a poética Viniciana, começo a falar sobre Partimpim2 seguindo a ordem inversa das faixas do cd. As borboletas, poema de Vinicius de Moraes, musicado por Cid Campos, é a canção que fecha o disco em clima de pura contemplação do instante poético. Por ser encantada por borboletas, passaria um longo tempo aqui a tecer impressões sobre elas. Carrego em minhas retinas (ainda não fatigadas) a delicadeza de Walter Lima Júnior em Inocência, ao capturar com sentido de amplitude expressiva e plástica uma borboleta. Marisa Monte suave entoando a Borboleta do folclore nordestino: “Eu sou uma borboleta pequenina e feiticeira/ando no meio das flores procurando quem me queira.”A Grande Borboleta de Caetano Veloso: “A grande borboleta/Leva numa asa a lua/E o sol na outra/E entre as duas a seta”. Gravada na casa da Partimpim, na floresta, As borboletas reproduz o som de insetos in natura. A voz puríssima da cantora, acompanhada por seu próprio violão e pelo baixo de Dé Palmeira, destaca a seiva dos versos cromáticos de Vinicius: “Brancas/Azuis/Amarelas/E pretas/Brincam/Na luz /As belas/Borboletas/Borboletas brancas/são alegres e francas/borboletas azuis/gostam muito de luz”.

Bim Bom estabelece uma homenagem vigorosa a João Gilberto, ícone da Música Popular Brasileira. Depois de um longo período guardada no baú, a canção é regravada simultaneamente por duas cantoras da mesma geração: Calcanhotto e Bebel Gilberto. Ambas herdeiras da mesma tradição que incorpora Tom Jobim, João Donato, Chico Buarque e Dorival Caymmi. O diálogo entre Calcanhotto e Bebel frutifica faz tempo, em Maritmo Calcanhotto imprimiu sua marca ao gravar Mais Feliz, de Bebel Gilberto, Dé Palmeira e Cazuza. Bim Bom é bonita tanto com a Partimpim, quanto com Bebel: duas leituras singulares. A interpretação de Partimpim funde João Gilberto ao Olodum, em que a memória da marcação das batidas do violão de João se mantém na mistura com o samba-olodum-baião, afirmado no canto: “É só isso o meu baião/E não tem mais nada não/ O meu coração pediu assim, só”. Bebel já opta pela superposição de vozes ao dividir os vocais com Daniel Jobim, de tão jobiniana sua interpretação, o arranjo elaborado para a introdução rende homenagem ao maestro soberano, autor de Fascinating Rhytm.

Impecável a gravação de O homem deu nome a todos os animais, versão realizada por Zé Ramalho para a canção Man gave name to all the animals, de Bob Dylan. A levada cheia de swing do baixo de Dé Palmeira conduzindo a introdução, remete a famosa música da Pantera Cor de Rosa, super convite para a criançada. Introduzindo o afinado coro de crianças regido por Mariana de Moraes, Partimpim não perde o apuro técnico que seduz o público adulto e infantil. Partimpim2 é um cd mais amadurecido em relação a experiência inaugural do outro Partimpim, no atual a compositora/intérprete ousa mais nas experimentações sonoras, utiliza mais a informação da música eletrônica e dos apetrechos que compõem o universo de barulhos do mundo infantil: latas, tralhas, brinquedos. Calcanhotto fala sobre a Partimpim: “A Partimpim carrega objetos, ela gosta de acúmulo, guarda coisas. Ela guardou todos os bilhetes e brinquedos que ganhou das crianças, é o oposto da Calcanhotto. Ela leva tudo para o estúdio, convive com aquelas coisas, e as pessoas que estão trabalhando no projeto acabam contaminadas com isso. Quando me dou conta os músicos estão lá, cheios de ursinhos.”

Na massa, de Davi Moraes e Arnaldo Antunes é a música que melhor sintetiza a liberdade - make yourself, preconizada pela Partimpim. A letra de Arnaldo contempla a criatividade das crianças que “com a mão na massa” transam seus próprios figurinos, criando moda. Além dos detalhes da letra, vale atentar para as nuances experimentais sonoras, um pianinho que soa ali, um carrinho que arranha acolá, um assovio, um barulho não identificado: “pode ser de farda ou fralda/arrastando o véu da cauda/jóia de bijuteria/ lantejoula e purpurina/manto de garrafa Pet/tatuagem de chiclete/de coroa ou de cocar/pode misturar”.

Emociona na voz da Partimpim o registro de O trenzinho do caipira, composição de Villa Lobos com letra do poeta Ferreira Gullar. Ela se apropria da canção como se dela fosse, sua interpretação traz a segurança e leveza de quem já percorreu muitos trilhos. Os ruídos do trenzinho me trazem uma certa nostalgia da poesia e da delicadeza que pouco se vê/ouve hoje em dia, mas que se revive em Parimpim2.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Bernard Fines é luxo só


Bernard Fines é um músico francês que já se tornou brasileiro. Belíssimo timbre, bom gosto e sensibilidade são as marcas de Bernard. Batemos um longo papo sobre música brasileira, jazz e música francesa. Segue aí:



Daniela Aragão: Você é cantor e músico também? Qual é sua formação?


Bernard Fines: Eu sou músico. Minha primeira formação foi piano clássico, estudei na França. Estudei 5anos, piano, solfejo, teoria musical, aí depois fui desenvolvendo a música como autodidata. Depois estudei contrabaixo, voltei ao piano, enfim, pelo piano e pelo teclado montei uma banda de jazz na faculdade. A gente se apresentava em botecos de jazz no norte da frança. E aí vim para o Brasil, eu sou engenheiro. Estudei engenharia acústica e vim ao Brasil para fazer um estágio de mestrado, quando cheguei no Brasil fui trabalhar numa região isolada, que não tinha eletricidade e tal. A casa era de madeira, de pescador, de caiçara, não tinha como ter piano, teclado, e comprei um violão, fazia tempo que queria tocar violão, já arranhava e tal. Comprei um violão e fui aprendendo com os brasileiros, nas festas.


Daniela: Não falava nada de português?


Bernard: Muito pouco, era um português de Portugal, fiz aula de português, mas não entendia nada do que as pessoas falavam. Aí fui pegando pela necessidade assim. Comecei a aprender violão assim, comprei as revistas Coro de Cordas e os amigos brasileiros ajudando. Na França a gente tem uma inibição muito grande em relação a arte, enquanto a coisa não está super pronta, a gente não apresenta. Aqui simplesmente o pessoal botava o violão na minha mão e dizia: - canta. Aí eu falava, não sou cantor, não sou violonista, não sei nenhuma música, e acabava cantando. Em francês primeiro e em português depois.

Daniela: Você já conhecia a música popular brasileira?

Bernard: Sim, a Bossa Nova, João Gilberto, disco do João Gilberto principalmente. Daí, quando eu cheguei no Brasil, descobri o Caetano, que me chamou atenção pela letra. Descobri Caetano, Elis Regina, que na frança eu não conhecia.

Daniela: Estranho Elis não chegar lá, ela fez até o 13º Festival de Montreux. A maior cantora brasileira.


Bernard: Chega lá Elis, mas para um público mais específico. Mas realmente é a Bossa Nova que todo mundo conhece na França, Caetano, Elis, o Chico, já é um público mais específico.

Daniela: Interessante o Caetano ter te chamado atenção, pois é um compositor sofisticado e que escreve em português.


Bernard: Muito interessante na letra do Caetano é que por exemplo “Esse papo já tá qualquer coisa” (cantarola), eu pedia para os meus amigos brasileiros explicarem a letra e eles não conseguiam.

Daniela: Ah isso que faz parte do próprio feeling do brasileiro, são expressões que dizem respeito a nossa língua. Como tem coisas que são muito próprias dos Franceses, expressões da língua, que não tem tradução.


Bernard: É. Então isso foi fundamental para mim. E aí comecei a tocar nos bares MPB, principalmente Chico, Caetano e Gilberto Gil.

Daniela: Aí você cantou em português? Tem Joana Francesa do Chico, que é tão bonita e mistura o francês e o português

Bernard: Em português. Em 2005 eu apresentei Joana Francesa com uma banda em Curitiba no Teatro do Paiol. E hoje eu canto ela direto, no meu último cd gravei com participação do Leo Gandelman, bem bacana, uma delícia.


Daniela: Você tem disco solo gravado?

Bernard: O último disco que gravei, lancei pela Delira Música, que é um selo do Rio. Eu convidei um trio de jazz para me acompanhar, a gente está junto faz quatro anos. Eu não trouxe eles aqui porque é um festival de duo, mas sempre tocamos juntos. É um casamento, na verdade um trio instrumental brasileiro, que toca jazz com um cantor francês, esse é o espírito. O resultado é uma banda, um quarteto em que eu sou cantor, sou vocalista, mas cada um tem o seu espaço, tão grande quanto o meu, para improviso e tal. Por exemplo na hora do solo do contrabaixo o baixista vai para frente e é a vez dele.

Daniela: Pela condução do seu canto, deu para perceber que você traz toda uma concepção jazzística.

Bernard: Toda.

Daniela: Eu amo Speak low e nunca tinha ouvido em francês, com você agora achei o máximo. Já cantei muito essa canção numa orquestra de jazz e tal, mas em francês para mim é inédito.


Bernard: Na verdade eu sempre gostei de jazz, mas nunca morei na Inglaterra, nos Estados Unidos, não domino a língua inglesa. Tem o Claude Nougaro, que é um cantor-poeta que fazia versões, melhor, adaptações de Standards de jazz para a língua francesa. Ele morreu em 2004 e foi consagrado só depois que morreu. Editaram um cd que le gravou pela Blue Note, nos EUA, até aí ele era conhecido só na frança. Daí resolvi dar mais um espaço no trabalho dele através do meu. Então hoje eu apresentei bastante versões minhas, que é a uma forma de se apropriar da música, fazer como se ela fosse um pouco minha.


Daniela: Você se acompanha ao violão?

Bernard: Acompanho sim. Violão e voz, o que no jazz fica um pouco difícil, pois eu não tenho um nível técnico para tocar um violão com uma levada de jazz. Agora já toquei bastante em bar, em Curitiba primeiro, depois na região de Rezende, onde eu moro.Moro em Penedo, do lado Rezende


Daniela: Você continua com a profissão de engenheiro?

Bernard: Não, só músico. Eu comecei em 2003 violão e voz nos bares e aos poucos fui procurando o meu caminho, trabalhei com percussionista, mais um pianista. Depois eu encontrei um trio de Jazz que é o João Bittencourt trio, formação de guitarra, baixo e bateria.

Daniela: Você já participou de outros festivais de jazz?

Bernard: Em Ibitipoca, Penedo, Savassi em BH, alguns festivais de cultura francesa, o C’est si bon em São Paulo e no Rio, agora não lembro muito. No Rio está rolando também quarta feira, vou fazer no espaço cultural, sempre tem shows.

Daniela: Achei um barato a maneira como você assimilou a cultura brasileira e como funde com a sua. Traz um resultado muito interessante.

Bernard: Eu amo muito música brasileira, pois estudei música brasileira no conservatório de Curitiba, a partir daí comecei a apresentar minha primeira banda. A gente se apresentava em festas e o repertório era Luiz Gonzaga, Chico e tantos. Esse repertório ficou na minha história. As vezes as pessoas que acabam de me conhecer perguntam: - Você conhece Trem azul?. Digo que já cantei e tal.


Daniela: São quantos anos de Brasil?

Bernard: 17 anos

Daniela: Você fala muito bem português, traz sua marca nos erres é claro, mas é sua identidade.

Bernard: Sim, é minha identidade

Daniela: E entre os franceses: Jacques Brel, Piaf. O que você traz para o seu repertório?


Bernard: O último cd que gravei são só os clássicos da música francesa, jazz pelo trio brasileiro. Então é uma mistura bem interessante. O repertório é Ne me quitte pas, do Jacques Brel, La vie em Rose, de Piaf, quatro músicas de Charles Aznavour, C’est si bon, Yves Montand. Só os clássicos. Porque aí a gente faz uma outra leitura dessas músicas por dois motivos, primeiro porque eu pesquisei bastante para ver o que tinha sido feito, eu não vou fazer, por exemplo, La vie em rose em Bossa Nova, porque já tem três gravações assim pelo mundo. Então vamos fazer outra história, e mais, eu chamei o trio de jazz, a gente fez os arranjos juntos, foi uma coisa de criação mesmo. Eu mostrei violão e voz, uma coisa bem básica, e eles foram rearmonizando. Com todo o talento que os brasileiros tem. Graças justamente a eu ter conseguido deixar rolar solta a criatividade dos músicos brasileiros que estavam trabalhando comigo. Isso é que é o mais importante.

Daniela: E um próximo trabalho?

Bernard: Sim, agora vai ser um disco de parcerias. Estou trabalhando em cima de música do Nelson Faria, Gilson Peranzzetta, Márvio Ciribeli. Vamos lançar esse cd no ano que vem, muito brasileiro.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Entrevista com Alexandre Magno e Affonso Cláudio


Bate papo agradável, na hora do almoço, que rendeu muitos guaranás e assunto para prosseguir no próximo festival. O guitarrista Alexandre Magno e o saxofonista Affonso Cláudio me deram a honra do maravilhoso som e da simpatia.


Affonso Cláudio: Sou AC, saxofonista do Rio de Janeiro, minha formação musical é muito americana, me formei em saxofone pelo Berkley College of Music in Boston, fiz o mestrado em jazz na Califórnia Institute of the arts e mais recentemente, cerca de sete anos atrás, eu terminei meu doutorado em música pela UNIRIO. Meus principais professores de instrumento foram Joe Viola, Any Wats e Jordy Garzone. Estudei no Brasil também um tempo com Mauro Senise e tive outras influências tipo Paul Novus, Charlie Haden. Eu tive muito sorte, excelentes professores e pude estudar, música pra mim não é uma coisa fácil, é uma coisa extremamente difícil e tenho que me dedicar muito para alcançar um resultado que eu ache pelo menos satisfatório.


Daniela Aragão: Existe esse mito da idéia da inspiração, a música que brota, que surge assim do nada.



AC: Para mim a música nunca foi fácil, sempre foi fruto de muito estudo. Eu hoje em dia, além da minha atividade musical, dou aula na parte de tecnologia da Faculdade Estácio de Sá, dou aula de produção fonográfica no curso de cinema e de produção audiovisual. Isso deu início nos Estados Unidos, em que fiz uma especialização na área de concentração em music e technology, e desde então isso acaba sendo parte de meus interesses, das coisas que gosto de fazer. Aprendo muito com pessoas que eu toco, o tempo que eu deixo para a música é dedicado aos projetos que eu quero fazer.


Magno Alexandre: Ao contrário do Afonso, não tenho formação acadêmica nenhuma. Estudei teoria de música só, numa escola muito boa em Belo Horizonte chamada Fundação de Educação Artística e fui autodidata como instrumentista. Comecei a tocar aos 15 anos, já estou com 38 e continuo aprendendo. O lance que tenho em comum com o Afonso é o lance de aprender tocando com as pessoas, aprendi muito assim. Tirei muita música de ouvido, no estilo mais jazzístico mesmo. Até hoje vou conhecendo as pessoas. Dois anos atrás peguei pra acompanhar a Maria Schneider, maestrina americana, sob a regência de um grupo de músicos brasileiros. Aprendi com um baterista muito importante, o Nenê, importante para música mundial. Trabalhava com Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal. O Nenê é muito bom compositor e músico. Eu e o Enéas Xavier (contrabaixista) aprendemos muito com ele. Tocamos com ele uns 10 anos, e através dele a gente foi conhecendo os melhores músicos, do Brasil e do mundo. E sempre trabalhando com esse tipo de música instrumental, eu sempre trabalhei com isso. Eu tenho um cd que resume isso, de música brasileira só que com muita improvisação, o que é uma característica do jazz. Esse cd que eu fiz em 2004, com os músicos de São Paulo e alguns de Minas, deu um resultado bom, ganhei um prêmio como melhor cd de música instrumental. Tem participações do Toninho Horta, um quarteto gravado ao vivo, e daí eu fui colocando coisas por cima. Eu, Benjamin Talk, o Nenê e o Célio de Barros. Aí teve o André Mehmari, que conheci na época depois de gravar. Alguns músicos estrangeiros, uma celista da Suécia, uns arranjos de cordas. O Toninho Ferraguti, e com esse cd eu pude viajar para a Europa desde 2005. Eu viajo todos os anos para a Europa tocando as músicas desse cd, ele gostam. O estrangeiro gosta dessa música.


Daniela Aragão: São temporadas longas lá fora?

Magno: Um mês, dois meses no máximo. Mas dá pra tocar em muito lugar.


Daniela: E como é que vocês lidam com o mercado para a música instrumental?

Magno: Que mercado?


Daniela: Acho que esses festivais são uma oportunidade para vocês tocarem. Fora isso...



Magno: Mas não é nem em todos os festivais que entramos. Às vezes eu toco num, no outro não toco. Em Belo Horizonte estão tendo muitos festivais, com o apoio da Lei de incentivo. Esses projetos desse tipo. E no mais, eu toquei muitos anos em lugares fixos que ultimamente não está tendo mais espaço. Em Belo Horizonte, por exemplo, toquei 5 anos no Café com Letras, em outros lugares, toca um tempo, 2 anos toda quinta, aí acaba o lugar. As vezes não pode ter música num ambiente que não tem alvará. Tocar em lugares ao ar livre, era muito legal, enchia, era o point da cidade. Aí depois de um tempo chega a prefeitura e acaba com isso porque não pode. E aí, agora não tem muitas casas desse gênero em Belo Horizonte, mas a gente ainda trabalha, 2 a 3 vezes por semana. E no mais temporadas viajando.


Daniela: E com cantores?

Magno: Já toquei com Luiz Melodia, Milton Nascimento, participações breves com alguns cantores. Nada de trabalhar com cantor mesmo, Belo Horizonte não tem muito esse tipo de coisa. Cantores que estão no mercado atuando, como o Flávio Venturini que está lá em Belo Horizonte. Beto Guedes, a turma do Clube da Esquina ainda faz uns shows.

Daniela: Eu fiz essa pergunta porque não vejo você como um músico centrado exclusivamente em Belo Horizonte. Você e o AC são músicos do mundo.


Magno: O melhor dessa profissão acho que é isso, você poder tocar com várias pessoas em qualquer lugar do planeta. Hoje, por exemplo, foi a primeira vez que a gente tocou, eu e AC. E tocamos com um cara que nunca tínhamos tocado antes também, o Miltinho, baterista do Jô.


AC: Isso se permite, uma vez que você tenha um ponto de convergência de linguagens, essa interação é possível. Acho que essa questão do mercado, ou seja, todo o mercado de música está mudando, está sendo reformulado. Não está sendo reformulado porque eles querem reformular, está sendo reformulado pela própria realidade. Eu acho que no caso do que seria música instrumental, jazz. Acho que não existe uma subvenção oficial, como você tem da orquestra sinfônica. A orquestra sinfônica é uma subvenção oficial para a música clássica, como nas universidades se tem uma subvenção para a música clássica. A música instrumental, jazzística, não tem essa subvenção oficial, então ela fica meio que tentando pegar assim uma coisa marginal do mercado principal. Alguma coisa de Lei de incentivo, algumas iniciativas. Porque você não tem uma estrutura profissional que funcione, ou seja, uma pessoa que trabalhe, um agente, um produtor que trabalhe fazendo o book do Magno. Que ajude ele a fazer uma carreira, mandar projetos e tal. As pessoas que conseguem mais coisas, são pessoas que perdem mais tempo se dedicando a esse lado profissional, que é você ficar correndo atrás. O cara tem que se mesclar dessa função, já que não tem um business suficiente para atrair um produtor. Quem faz é que tem que fazer, daí vai depender da habilidade do cara e da capacidade dele empresarial, da capacidade dele de fazer conexões com outros produtores, outros festivais, é uma coisa ainda pré-simbiótica. Eu vejo coisas pontuais assim, nesses festivais as participações se restringem aos contatos pessoais. Não tem uma estrutura que suporte outras formas, tem pessoas que por contingências pessoais e de personalidade, são boas em fazer isso. Pessoas que passam um bom tempo de seu dia trabalhando esse lado empresarial, que é de mandar projeto, se inscrever em edital, mandar material. Tem uma hora do dia que a pessoa pega pra ficar ligando, enfim. Aí quando você vê a pessoa aparecendo em vários lugares diferentes, pode ter certeza que ela ou alguém ficou assim, na função. Aí batalha e a coisa vai, mas não acho que exista um mercado. Pra você considerar um mercado, teria que poder quantificar ele. Em 2000, quando eles dividiram o mercado musical em tendências, nem apareceu música instrumental. Nem sequer foi computado, o número do ponto de vista econômico era tão irrisório, que não chegou nem a fazer cócega. Entrou na categoria outros, que era três por cento.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Entrevista com o contrabaixista Dudu Lima



"Não pode parar nunca, a música não te espera, ela é uma mulher ciumenta e te exige o máximo. É muito bom poder tocar"


Daniela Aragão: Quando você começou a tocar?


Dudu Lima: Comecei com 11 anos e profissionalmente com 14. Caramba, as vezes você se lembra de você mesmo.


Daniela Aragão: Você está com quantos anos?


Dudu Lima: Estou com 37, faço 38 em janeiro.


Daniela: Começou com contrabaixo mesmo?

Dudu Lima: Sim, comecei com contrabaixo elétrico. Eu fui passar umas férias com uns primos que eram músicos e comecei a ouvir muito o som do contrabaixo e fui perguntando sem forçar a barra – que som que faz isso? E pedi um contrabaixo de natal, quando eu tinha 11 anos. Aí começou essa história, eles me ensinaram as primeiras músicas, fui tocando as coisas que tinham possibilidade, em que eu decorava o lugar do dedo. E isso é fundamental para você começar a entender o instrumento, que é um desconhecido total. A gente estuda o instrumento a vida inteira e ele continua um desconhecido, pois é infinito. Foi muito legal eu ter tido o suporte deles no começo, e depois em Juiz de Fora comecei a estudar na Pró Música com o Amaury, que era o baixista do Soma, uma banda de baile de Juiz de Fora. Ele tinha um ouvido muito bom, e estudei também com o César Tabet teoria musical. César foi um grande mestre para mim, me ensinou a ler música, eu era um analfabeto completo musical. Ele é uma pessoa maravilhosa pela qual tenho um carinho enorme.

Daniela: Você passou pelo conservatório?

Dudu Lima: Não. Eu perguntei ao César: - eu quero saber quando o acorde é aqui, o que ele fala. Daí ele falou que eu tinha que estudar harmonia, então fui. O Sylvio Gomes, maestro da Orquestra de Jazz da Pró Música, iria dar um curso em Juiz de Fora em 1988, foi a primeira ida dele para Juiz de Fora. Só que ele deu três aulas nesse curso e teve que parar por um motivo profissional, daí fui para o Rio estudar com o Ian Guest. Fiz escola de harmonia, tive aulas com vários professores, entre eles o Estevão Teixeira, estudei com o Adriano Gifoni, aprendi com ele sobre ritmos brasileiros, ele é um especialista. E em Juiz de Fora tive a oportunidade de tocar com músicos da pesada que considero os mais importantes como o Big Charles, Toninho Oliveira, Goianá. Então eu novo tocando com eles, e eles tinham muita paciência comigo. O Big me ensinou muito, o Fofinho.

Daniela: O Big é meio pai de todo mundo né?

Dudu Lima: É, pai de todo mundo. Juiz de Fora me deu essas oportunidades e principalmente o Jazz Club, eu devo a minha vida musical ao Jazz Club e falei com o Big que deveria ser feito um documentário sobre o Jazz Club. Nós tínhamos 15, 16 anos e eles deram abertura para a gente tocar lá. Eu tinha uma data toda semana lá. Eu tocava com o Fabiano, e o Fofinho era o baterista. O Fofinho é outro cara fundamental na minha vida, montou lá em casa as tumbadoras. O Fofinho tinha muita experiência musical, um dia levou uma pilha de vinis para gente ouvir, montou a tumbadora e começou a explicar tudo, “ _ a onda samba é aqui, você tem que ouvir isso, o swing é aqui e tal”... Eu tive então essa sorte.

Daniela: O Fofinho é um intuitivo né?

Dudu Lima: Claro, mas com uma cultura musical enorme. Falava:- “agora vamos ouvir a faixa três do lado dois, ali tem um solo”. Fofinho tem uma cultura musical impressionante. Então essa coisa fomentou e lá no Jazz Club tínhamos contato com o Nico Assunção, Arthur Maia, a Joyce, a Joyce dando canja com o Toninho Horta, depois do show no Teatro Solar, nunca mais esqueci. Ali que aconteceu mesmo.

Daniela Eu estava nesse show da Joyce, eu tinha 14 anos na época. Me lembro que o show demorou pracaramba para começar, se me recordo eles tiveram um problema com o acerto do som e tal...

Daniela: Nessa época você já estava com o baixo acústico?

Dudu Lima: Eu comecei a tocar o contrabaixo acústico em 91, por influência do Mauro Continentino. O Mauro mudou para Juiz de Fora e nós começamos a tocar de duo. Um dia ele levou um baixo acústico e falou: “-Nós temos agora um show de duo daqui a uma semana, você de baixo acústico e eu de piano”. E falei então tá bom, muito obrigado (risos). Eu tinha estudado um pouco de baixo acústico, mas não tocava. Tinha os princípios técnicos, mas a gente sabe que tem que viver com o instrumento o dia inteiro. Mas foi legal pois ele me deu uma agulhada, entrei de cabeça, fiz o show e me envolvi com o baixo acústico num amor assim pleno... é um instrumento fundamental na minha vida musical hoje. Me lembro bem que o Fofinho ficava no case do meu baixo elétrico, ele gostava de tomar uma cachacinha, com a feijoada, imitando no meu case o baixo acústico e dizendo: “- Você tem que tocar isso aqui, baixo acústico”.

Daniela: E o acústico te dá uma possibilidade muito maior de inserção no jazz né?

Dudu Lima: Ah claro. O elétrico também tem, mas no acústico estão as raízes, a madeira, a coisa orgânica, a origem realmente. Eu adoro o elétrico também, mas o acústico tem essas possibilidades todas.

Daniela: Você fez direito né?

Dudu Lima: Pois é, me formei em direito, sou bacharel em direito. Minha mãe, que foi uma figura muito inspiradora na minha vida, tinha o sonho de entrar na igreja comigo. E ela estava adoentada, realizei isso para ela. E foi legal porque ainda toquei no baile da minha formatura.

Daniela: E você conseguiu compatibilizar bem?

Dudu: Consegui compatibilizar na medida em que o direito me serve às vezes para contratos e tal. E vou te falar, o direito como ciência é muito bacana. Foi um estudo interessante, mas na prática ele é todo distorcido.

Daniela: Sueli Costa também fez direito e largou no último período.

Dudu: Sim, eu convivi muito com o Afrânio, irmão dela. Toquei muitos anos com o Afrânio, eles são uma família musical pracaramba. A mãe deles, Dona Maria, nem se fala.

Daniela: Pois é, Telma, Lisieux, dona Maria Aparecida, grande família. Em geral o contrabaixo vem como um instrumento que acompanha, compõe a banda. Seu contrabaixo mostra uma autonomia, como se ultrapassasse os limites do som do próprio contrabaixo.

Dudu: Uma coisa interessante, O Paulo César Barros, que é um baixista da pesada que tocou com Renato e Seus blue Caps, me deu uma fita de vídeo do Jaco Pastorius e falou: “-Vê isso aí garoto”. Eu ficava vendo aquilo, não entendia nada do que estava acontecendo, mas sabe que aquilo ali foi talvez a coisa mais determinante na minha vida. Eu pensava, queria entender isso um dia, só entender, tocar nem pensava.

Daniela: Você explora muitas sonoridades, às vezes seu contrabaixo é uma guitarra, um violão...

Dudu: O Pastorius me inspirou para trilhar esse caminho, ouvindo aquilo ali eu tive a audácia de pensar que eu também poderia adentrar nesse universo. E entrei de corpo e alma. Foquei meu trabalho autoral nesse desenvolvimento do contrabaixo, pensando nesse lado, como para expressar as idéias né? E fico muito feliz de fazer disso que era um obstáculo na minha cabeça, tornar-se uma coisa concreta. Uma sonoridade que busca uma outra coisa que a gente não sabe nem qual é. E não pode parar nunca, a música não te espera, ela é uma mulher ciumenta (com todo respeito ao sexo feminino, risadas) e te exige o máximo. É muito bom poder tocar.

Daniela: Você é um músico que transita muito pelo instrumental e que ao mesmo tempo interage com o público. Isso é lindo.

Dudu: Sempre pensei que o jazz não precisa de ser essa coisa hermética. Isso eu aprendi muito no meu trabalho com o Stanley Jordan. Foi fundamental isso, eu sempre percebi essa necessidade de interação. Ele tem muito isso, já tocou nas ruas. Desde o nosso primeiro contato, em 2001, fazemos agora a décima tourné juntos. Eu aprendi muito com ele, essa energia, esse respeito ao público não para conquistar e fazer merchandizing, mas um respeito genuíno pelo público. Como você está tão feliz tocando, vamos deixar todo mundo feliz, não vamos guardar isso. A gente tem um presente e tem que distribuir. Ele tem um carisma e sou admirador disso, percebi que esse carisma parte da verdade, tem que ser uma coisa verdadeira. Tem que ser você ali.

Daniela: Como está a recepção do jazz?

Dudu: Quando você está num Festival de Jazz como este aqui, teoricamente você já parte de um campo favorável. Você tem esse público e tal, mas de qualquer forma eu cheguei na verdade a conclusão de que é tudo igual. Uma vez tínhamos uma tourné patrocinada pela Companhia Força e Luz que começava em Manhuaçu, fizemos aquele circuito com o Fabrício Conde, que é de viola. Naquelas cidades pequenas: Leopoldina, Cataguases, Muriaé. Eu sei que a viola no interior mineiro tem um apelo total e saímos tranquilos com ele. Ali o trabalho era o trio servindo de base para a viola, fizemos um disco com ele, a direção musical era minha. Ali era bacana, o trio servindo de base para a viola, depois surgiu o convite para fazermos um circuito nosso, só o trio. Daí chegando em Manhaçu (eu tenho o retrato), quando passamos o som de tarde, entraram quatro criancinhas do interior, pé sujo, shortinho. Numa certa altura acabou a música e elas disseram: - Moço a gente pode dançar? Estavam eu, Leandro Schio e Dudu Viana. Falei: - claro, pode sim. Aí mandamos mais um som, era Miles Davis, e um deles falou: - de noite eu posso trazer minha turma aqui? O Márcio Bahia, batera me falou uma vez uma coisa: “- Quando a criança gosta da música é porque ela é verdadeira, se as crianças ficarem tristes quando você começar a tocar, tem que mudar alguma coisa”. Isso é teoria Hermetiana, deles lá. Daí eu me lembrei disso, e nessa noite dos meninos estava lotado. Foi uma lição para mim. A emoção é universal do ser humano, então esse mito do jazz tem que ser quebrado. E o Stanley falava isso : “Pô bicho, quando eu tocava nas ruas de Nova York eu tinha que agradar a todos, agradar o cara que morava na rua, o executivo que estava indo trabalhar, a senhora que estava passeando com a criança, enfim, a todos os que passam por uma rua”.

Daniela: Quais são suas maiores influências? Tem alguma coisa que atualmente está te perturbando, afetando digamos de maneira positiva os ouvidos?

Dudu: Eu ouvi muito jazz, como te disse o Jaco Pastorius foi uma de minhas maiores influências, o trio do Bill Evans, Ron Carter, a música do Hermeto me influenciou bastante - tive o privilégio de tocar com o Jovino, que é pianista dele. Acho a cultura Hermetiana o maior berço, sem qualquer patriotismo exagerado. Jobim, choros, Villa Lobos, Waldir Azevedo.

Daniela: Eu ouvi você tocar lindamente o Trenzinho do Caipira, o seu contrabaixo reproduzindo o som da locomotiva.

Dudu: É uma influência grande do erudito, Bach. Apesar de eu não ser um músico erudito, sempre estudei muito o erudito, acho o erudito o maior estudo técnico que existe. Claro que você vai estudar outros estudos técnicos como Waldir Azevedo, Jacob do Bandolim, Pixinguinha, Hermeto Paschoal, Charlie Parker. Todos esses mestres me encantaram. E tenho ouvido muito uma baixista que se chama Esperanza Spaldi, uma baixista americana de 22 anos que toca muito, canta muito também, faz um trabalho de voz junto com o instrumento. É uma baixista fantástica e tenho ouvido muito o som dela, é uma das boas surpresas.

Daniela: Tenho visto grandes músicos acompanharem cantoras, como é o caso do Grupo Pau Brasil, que acompanha Mônica Salmaso.

Dudu: É da pesada, Mônica tem um trabalho incrível. Nelson Ayres, Rodolfo Stroeter, Paulo Bellinati.

Daniela: O contrabaixo do Rodolfo também imprime muita personalidade

Dudu: Pois é, e ele toca com a Joyce também.

Daniela: E você roda o mundo e ainda tem o ponto fixo em Juiz de Fora?

Dudu: Tenho e faço questão disso. Hoje eu tenho filho, mulher que moram em Juiz de Fora, e a vida tranquila de lá, a proximidade dos grandes centros, a facilidade de locomoção, tudo isso me atrai. Juiz de Fora te oferece uma qualidade de vida muito grande, em uma hora e meia pego o vôo. Vou, mas a minha casa ta lá em Juiz de Fora. Eu gosto de ter aquele porto seguro ali que me deixa em contato com as raízes. As raízes é que me fazem não esquecer do que me levou a querer fazer isso.

Daniela: Além do seu talento, você me chama a atenção por ser um músico que toca tanto em Montreux como no Bar do Salim. Parece que você não faz distinção, tipo, agora que já toquei na Europa não vou mais tocar nos bares de antigamente. Acho que você se preocupa é com a qualidade do que vai fazer no momento né?

Dudu: Isso. O Mauro Continentino sempre falava, tocávamos de segunda a segunda. As vezes a gente tocava num lugar que tinham duas pessoas e ele dizia: “- duas ou cem é a mesma coisa”. Não importa o lugar, importa o que você está tocando. O barato está em mim, não no lugar. Ele tinha um sonho: “- vamos comprar um caminhão e sair viajando, atacando pelos cantos”.

Daniela: Meio Caravana Roliday (risos)

Dudu: Com o trio consolidamos essa filosofia, moramos juntos, tocando, tocando, tocando. Aquele exemplo hermetiano de tocar 12 horas por dia com um calor de quarenta graus. Moramos juntos durante oito anos fazendo isso. É uma irmandade musical, o grande lance é o grupo.

Daniela: Agora para terminar fale do disco

Dudu: Esse disco se chama Ouro de Minas em homenagem ao Milton Nascimento e João Bosco. O Milton gravou Cafuné na cabeça malandro eu quero até de macaco, parceria dele com a Leila Diniz, que ele escolheu. João Bosco fez o Ronco da Cuíca e nós gravamos além dessas Corsário, Bala com Bala, do Milton Cravo e Canela, Fé Cega faca amolada

sábado, 21 de novembro de 2009

Entrevista com o compositor e violonista Guinga




"caridade, justiça e humildade. Ninguém cresce se não preservar esses valores".




Daniela Aragão: Agenda apertadíssima não?

Guinga: Esse ano eu fiquei fora do Brasil praticamente o ano todo, foram oito viagens ao exterior. As vezes ficava 50 dias fora. Tenho vindo pouco aqui, estou desatualizado das coisas novas, mas vou tomar pé das coisas. Ainda tem duas viagens para fazer esse ano, mas depois eu vou dar uma meia trava, porque eu acho que isto que está acontecendo comigo é meio um excesso de viagem. Passando muitas horas dentro do avião, direto. Mas há a necessidade de ganhar a vida, expandir a música. Tudo tem um preço, enfim.

Daniela: Eu conheci o seu trabalho na sua parceria com o Aldir Blanc, o cd Catavento e Girassol, gravado pela Leila Pinheiro, somente com canções de vocês. E ainda continuam essa parceria?

Guinga: Sim, sempre, nós somos amigos. Isso vai ter a vida toda, enquanto a gente existir essa parceria é preservada, ecológicamente preservada (risos).

Daniela: Algum trabalho novo?

Guinga: Eu tenho uma série de músicas inéditas, inclusive duas em parceria com José Miguel Wisnik, que é um gênio. Estamos estreando uma parceria que vai aparecer num novo disco que pretendo fazer pela Biscoito Fino, que é a minha gravadora. Tenho disco para fazer também na Itália, pois pertenço a uma gravadora italiana. Quero fazer um disco com uma cantora italiana famosa lá e que tem um público imenso. Ela vai verter minhas músicas para o italiano, com arranjo, orquestra e eu participando do disco. Ela vai gravar um disco com músicas minhas, todas em italiano. Ela se chama Tosca, é uma grande cantora que mora em Roma, famosíssima na Itália. Isso para mim, um cara que nasceu em Madureira de uma família pobre, lutando pelo mundo aí, para mim é uma vitória. Como tocar aqui é difícil viu, é mais difícil do que tocar no auditório de Roma. Eu já toquei na sala Disney Hall Concert com a filarmônica de Los Angeles, a sala cheia com cinco mil pessoas e não fiquei mais nervoso do que hoje. Isso é experiência para um artista, aqui Deus me ajudou a crescer. Cantar com jogo ganho é fácil.

Daniela: O seu trabalho com Wisnik é um disco inteiro?

Guinga: Não, é uma parceria que estamos fazendo. Já temos duas músicas prontas, e com a graça de Deus essa parceria vai vingar. Nós somos muito amigos, eu sou admirador dele muito grande, e depois de ter feito com Chico Buarque, pensei, agora quero fazer com Wisnik que é meu ídolo também. Estou feliz por estar compondo com ele. Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro, Chico Buarque, José Miguel Wisnik e os jovens todos que eu tenho lançado, tenho feito parcerias com eles. Você vê como a vida não depende de nome e nem de fama, a música mais aplaudida hoje aqui é de um parceiro meu que ninguém conhece, que nunca gravou um disco, um menino de 25 anos.

Daniela: Uma questão que sempre me despertou uma certa curiosidade, ou seja, com cada parceiro vai implicar numa construção musical absolutamente diferente?

Guinga: Isso, é como um homem que se separa ou uma mulher que se separa e casa de novo. É lógico que um casamento nunca vai ser igual ao outro, se não a gente não repetia. Até porque a gente aprende e tenta não repetir os erros. Na vida, minha filha, eu acredito em três coisas, três valores no qual eu tento fundamentar a minha vida, e é difícil: a caridade, a justiça e a humildade. Ninguém cresce se não preservar esses valores.

Daniela: São quantos anos na estrada?

Guinga: 43 anos

Daniela: Continua dentista?

Guinga: Não, pois é. Sou dentista porque sou formado e exerci a profissão por quase 30 anos. Faz oito anos que não exerço mais, pois viajo e fico longe durante muito tempo. Esse ano fui sete vezes a Europa e uma vez aos Estados Unidos, em São Francisco. A última vez eu fiquei sessenta dias fora do Brasil, a última foi agora que cheguei na segunda feira com essa paralisia. Eu acho que foi excesso de ar condicionado, imunidade baixa, daí o vírus aproveitou e me pegou. Mas hoje eu já comi aqui duzentos quilos de torresmo, feijão pracaramba, couve, esse vírus vai ficar assustado comigo e vai embora (risadas).

Daniela: Essa pergunta não tem cara de pergunta de encerramento, mas vamos lá, pois eu perguntei para todos os músicos. Quais são as suas maiores influências?

Guinga: Eu adoro Tom Jobim, Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Jacob do Bandolim, Garoto, Badem Powell, Francis Hime, Edu Lobo, Milton Nascimento, Chico Buarque, Radamés Gnatalli, Ravel, Debussy, Stravinsky, Leonardo Berstein, Villa Lobos, Richard Strauss, Shoemberg, Bah, Vivaldi, Mozart, Bethoven, Wagner, Puccini, Noel Rosa. Tudo o que é bom eu gosto, eu procuro ouvir os bons pra tentar melhorar um pouco.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

João Carlos Assis Brasil: "O que eu mais gosto é criar"


Entrevista com o pianista João Carlos Assis Brasil na Fundação Oscar Araripe, em Tiradentes. Uma manhã de sábado do dia 14 de novembro de 2009.


Daniela Aragão: Quando você começou a tocar?

João Carlos: Comecei com 3 anos, eu ganhei um pianinho de brinquedo que me despertou. Aí com quatro anos comecei a estudar. Eu tinha uma única tia que tinha um piano de verdade e fui lá e comecei a tocar, compor, a improvisar e pronto.


Daniela: Já saiu sozinho?


João Carlos: É, desde criança que eu componho. É dom mesmo, nasci com isso.

Daniela: Sua formação é clássica né?

João Carlos: Totalmente clássica. Fui para Paris, Londes, Viena, fiquei muitos anos na academia de Viena. Estudei pra valer, ganhei prêmio internacional Bethoven. Da década de oitenta para cá que resolvi expandir para o popular.

Daniela: É interessante um pianista clássico do seu porte abrir espaço também para acompanhar cantores como Olivia Bygton e Ney Matogrosso.


João Carlos: Eu gosto, é para criar. O que eu mais gosto é criar. Por exemplo, no show de hoje eu faço isso, peço sempre ao público que me dê duas ou três notas e com essas notinhas eu faço uma composição na hora. Faço sempre isso. Então na Europa eles caem o queixo, pois eles não tem isso. E isso é o que eu mais curto fazer, criar mesmo. Esse concerto inteiro vai ser nessa base, menos as músicas de Villa Lobos que são originais. Do Villa Lobos vou tocar Prelúdio das Bachianas n 4, Alma brasileira e Impressões Seresteiras.

Daniela: Você está vivendo aqui no Brasil?

João Carlos: Estou, mas recebi um convite da Espanha, já toquei lá em Salamanca. Daí me convidaram para ser professor da universidade de lá. Ano que vem pretendo ir para lá e abrir uma Cátedra Villa Lobos, ou seja, para ensinar música brasileira, clássica e popular e tudo o que tenho direito. Não é uma coisa totalmente formalizada, mas vai rolar. Pelo que entendi vou ser uma espécie embaixador brasileiro na Espanha para ensinar a nossa música para eles.

Daniela: O mercado para a música clássica continua bastante complicado no Brasil, não é?

João Carlos: Continua muito complicado, não somente a música clássica, mas a popular também. Os valores que a gente estava acostumado acabaram. Hoje em dia vale o que vende, o que faz sucesso. E a gente que faz uma coisa mais elaborada, mais sofisticada, é como dar murro em ponta de faca. Difícil. Essa é uma das razões também porque eu estou querendo ir embora. Claro que vou voltar sempre para tocar, não vou abandonar nunca o meu público, minha família, mas pretendo ir.

Daniela: Manter um nível de qualidade para um público que não está habituado é complicado.

João Carlos: Sim, eles estão acostumados a ouvir o trasch,. Quer dizer, para fazer um nível de trabalho mais elaborado, mais sofisticado, não é de cara que esse público vai receber.

Daniela: Não tem educação musical nas escolas

João Carlos: Pois é, não tem, tem que ser uma coisa muito bem elaborada, feita com a cabeça, não pode ser imediato. Tem que ser uma coisa muito bem planejada, mas ninguém está nem aí, só querem ganhar dinheiro.

Daniela: E você já tocou aqui nas universidades de música do Brasil?

João Carlos: Já, em quase todas. Eu dou aulas na Escola Villa Lobos, no Rio. Na Academia Lourenço Fernandes. Já dirigi música na faculdade Estácio de Sá, quando tinha música.

Daniela: Acho que todo mundo acaba tocando nesse ponto, é inevitável.. Você e seu irmão gêmeo, o saxofonista Vitor Assis Brasil . Vocês dois são músicos talentosíssimos e com caminhos próprios.

João Carlos: Eu vou fazer junto com um saxofonista um concerto todo voltado para as composições do Vitor, terça e quarta no SESC. Eu sempre estou tocando as músicas dele, meu outro irmão Paulo que tem uma produtora sempre faz homenagem a ele, todo ano.

Daniela: Tem ainda coisas inéditas do Vitor?

João Carlos: Tem muita coisa inédita. Agora mesmo eu doei o legado dele para a escola, o xeróx. Formaram um quinteto de saxofone . Quanto mais gente conhecer isso melhor, nada melhor do que você doar isso para escolas.

Daniela: Ele deixou arranjos?

João Carlos: Deixou, quer dizer tudo não, pois no jazz algumas coisas você caminha. Essa é a magia da música popular. Agora a música clássica é dificílima no sentido de que você tem que acompanhar tudo aquilo que está ali e ao mesmo tempo colocar a sua personalidade em cima, e isso tudo com uma sutileza muito grande. Agora no jazz e na música popular a dificuldade não se encontra no que está escrito, é você criar. Porque no popular você tem que criar, você tem que ser um criador. Vai improvisar como, o que é improvisação se não criação. No popular o difícil é isso, a pessoa tem que ter esse dom.

Daniela: Você traz também. Tom recebeu muita influência de Villa Lobos né?


João Carlos: Tom era um homem culto, ele ouvia tudo, claro que foi influenciado. Villa Lobos que dizia, quando ele sentia uma influência ele se sacudia inteiro, tal a personalidade forte que ele tinha que queria ser ele mesmo, original. Ele era um cara incrível, fiz um concerto semana passada, só Villa Lobos. E eu sempre converso com o público, uma espécie de enterteinement, que é o que gosto de fazer. Então eu pincei umas frases de Villa Lobos que são extraordinárias, uma delas diz assim: “A minha música são como cartas que eu escrevi para a posteridade, sem esperar resposta nenhuma”.

Daniela: Essa fala do Villa bate com a conversa que eu estava tendo ontem a noite com o contrabaixista Dudu Lima, que é um músico de vertente jazzística. Ele estava falando desse lance de deselitizar a linguagem do jazz, trazer essa “música difícil”para o público. Então ele comunica, tenta tirar essa aura.

João Carlos: Pois é, tem uma coisa de dificuldade e sofisticação que torna difícil das pessoas compreenderem. Então é importante que você decodifique um pouco, abra outros códigos para o público.

Daniela: Isso é muito importante

João Carlos: Com certeza. É uma função didática.

Daniela: Mês passado a PUC-Rio realizou um evento de uma semana inteiramente dedicado a reflexão sobre a MPB. Com a parceria da gravadora Biscoito Fino estiveram por lá Francis Hime, Paulo César Pinheiro, José Miguel Wisnik, Maria Bethânia e outros. Tem se tentado abrir espaços para a música brasileira.

João Carlos: A Biscoito Fino tem desenvolvido um trabalho fantástico, eu fui um dos primeiros a gravar lá. Tenho uns dois ou três discos lá. Hoje em dia eles são a gravadora mais importante, todo mundo está lá. Olivia é uma pessoa extremamente artista, uma mulher extremamente culta, sofisticada, ela não põe nada que não seja de alto nível. Juntou ela e a kati, pronto.

Daniela: eu indiretamente acabei sendo uma divulgadora da gravadora ao escrever textos sobre os cds deles para jornais aqui de Minas.


Daniela: E agora o que você está fazendo? Compondo? Gravando?

João Carlos: Faz tempo que não gravo, eu estou com um projeto, mas ainda não pintou a oportunidade. Uma coisa que eu gostaria muito de fazer é gravar só canções brasileiras e americanas. Ainda não aconteceu, mas chega tudo na hora certa. Esse é um projeto que eu tenho muita vontade de fazer.

Daniela: E só com piano?

João Carlos: Só piano, uma coisa para você botar e viajar.

Daniela: E algum disco específico sobre o Vitor?

João Carlos: Pretendo sim, ainda não tenho nada pautado, mas pretendo. Tem muita coisa que ainda tem que ser gravada. Eu tenho várias missões a cumprir.

Daniela: Agenda cheia?

João Carlos: Tem ido bastante bem, dadas as circunstâncias. Agora eu agradeço muito ao Sérgio Costa e Silva, que é o diretor da Música no Museu, pois foi através dele que fui para a Europa, Portugal, Espanha, o maior sucesso. Tenho tocado sempre, desde que ele abriu a série Música no Museu. Então essa coisa do convite para a Espanha aconteceu através dele e possivelmente eu vá para a Índia e o Egito para fazer concertos lá, e tudo pela Música no Museu. Ele está fazendo um trabalho fantástico no Brasil todo e agora implantando no exterior. Se não me engano ele fez no ano passado 590 concertos. Ele tem dado enorme oportunidade a tudo o que é pianista jovem, músico jovem que não tem espaço. É um rapaz do maior valor.

Daniela: E algum trabalho com cantor?

João Carlos: Fiz com Bethânia agora dois, músicas do novo disco dela, o “Tua”. A primeira e a última faixa, eu abro e fecho.

Daniela: O trabalho da Bethânia está muito bonito e o que ela tem de sabedoria da palavra, da poesia...

João Carlos: É, ela é uma grande atriz além de cantora. Ela sabe lidar com a palavra e passa isso na música. Eu acho que ela e o Ney Matogrosso são hoje em dia os que tem mais veracidade e competência de todos.

Daniela: Acho que a gente tem que batalhar é por esse tipo de trabalho, é difícil, mas vale.

João Carlos: Sim, é um desafio e as vezes a coisa difícil te dá mais prazer do que a coisa fácil. Você tem que lutar mais.

Daniela: E quais você considera suas maiores influências?

João Carlos: Todo o repertório da música clássica e todo o repertório maravilhoso da música brasileira e americana. A americana eu digo dos anos 30 até os anos 60, que é um manancial maravilhoso. Alto nível! Então tudo isso conviveu comigo desde que eu sou pequeno. Ninguém cresce se não preservar esse valores.

Victor Biglione: o número 1


Do dia 13 ao 16 estive em Tiradentes a convite de Vicente Martins, diretor do Duo Jazz Festival. Foi um enorme prazer conversar com os músicos: Victor Biglione, João Carlos Assis Brasil, Rai Medrado, Dudu Lima, Tony Oliveira e Guinga. Segue abaixo o bate papo descontraído e alto astral com o talentosíssimo guitarrista número 1.



Entrevista com Victor Biglione no Restaurante da Vovó, em Tiradentes numa noite quente de sábado do dia 14 de novembro de 2001.


Daniela Aragão: Já que estamos com o livro aqui na mesa, nada melhor do que começarmos por ele que abrange toda a sua carreira. Como é que surgiu essa idéia?


Biglione: Eu estava andando na rua e um jornalista, acho que foi o Luiz Pimentel, do Jornal do Brasil, falou assim : “O Victor, presta atenção no que eu vou te falar, eu tenho a impressão que dos músicos que não nasceram no Brasil, você é o cara que mais trabalhou com a música brasileira, você já se tocou disso?” Eu falei uai (bem mineiro) não. A partir disso procurei o Instituto Cravo Albim e a Heloísa Tapajós me recomendou (a Losinha maravilhosa, irmã do Mú, do Dadi, que eu toquei na Cor do som) e apresentou o Ricardo Cravo Albim, que eu já conhecia, é lógico. Me indicaram esse menino, o Euclides Amaral, esse pesquisador (mostra o livro). Foram seis meses de pesquisa, um trabalho sensacional e eu sempre cuidei das minhas coisas, guardei o material fotográfico todo, tem mais de 70 fotos com artistas da MPB. Aí foi um presente, meus 50 anos, essa moda né, o cara que fez mais gol no brasileiro....Arrumei meu recordezinho, meu recordezinho de leve, eu fiquei felicíssimo pois para um cara que não nasceu aqui ser tão bem recebido de braços abertos pela MPB. Foi um negócio maravilhoso.

Daniela: Eu vou tentando retomar na memória uma série de discos em que eu vejo sempre o seu nome

Biglione: Exato. Tem um capítulo que se chama Victor Biglione de A a Z, são mais de 250 nomes da MPB. Eu ainda peguei o finzinho da fase de ouro da MPB assim, trabalhei com música brasileira mesmo.

Daniela: Você tocou com a Elis?


Biglione: Toquei. Não tem ninguém que eu não toquei. Quer saber o que eu gravei com a Elis? Para Lennon e MC Cartney, no Luz para as estrelas, limparam a voz dela e chamaram arranjadores que nunca tinham trabalhado com ela. O Wagner Tiso me chamou, o Gilson Peranzzetta. Fiz parte desse rearranjo. Com ela viva eu só fiz o especial do Daniel Filho, o Grandes Nomes, que ela faz com a Gal. Eu vi ela viva, tocamos juntos Vivendo e aprendendo a jogar, do Guilherme Arantes. Aí fizeram essa idéia maravilhosa da Som Livre, tem dois artistas que eu trabalhei depois deles já terem falecido, a Elis e o Tim Maia. Eu gravei um disco com o Tim Maia quando ele já estava falecido chamado Sou Tim, eu gravei o Lindo lago do amor, do Gonzaguinha e gravei Saigon, essa música é linda né?

Daniela: A que você atribui esse fato de tocar com todo mundo? A sua versatilidade que te faz ser esse número um...E você tem uma personalidade muito própria, tem uma identidade o seu tocar.

Biglione: Eu gosto da música toda: samba, jazz, bossa nova, blues baião, o que for. Eu trabalho com cinema também, fazendo trilha, eu tenho dois kikitos. Assinando trilha sonora mesmo, eu ganhei o Festival do Rio, o festival de conservatória. Adoro cinema, e vão entrar nesse ano dois filmes que estou assinando, o Elvis e Madonna e o Caçador de sonhos. E eu gosto de tudo, não vou me prender a uma coisa só, eu gosto da música no todo dela. Eu penso igual ao Vicente (idealizador e diretor do Festival) “programa tudo”, gosto disso que está tocando, só não gosto de coisa ruim.

Vicente: Ano que vem podemos programar um duo com suas trilhas de cinema. As imagens seriam exibidas ao fundo. Uma sugestão...

Biglione: Pô, legal, ótimo. E o fato de eu ter sido criado em Copacabana ajudou muito, é uma mistura muito grande e você recebe tudo o quanto é tipo de informação. Minha mãe estava me apresentando o Reginaldo Bessa, toda a turma da Bossa Nova, eu estava escutando Led Zeppelin, aí acordei Baile, com Zé Kéti. Tudo muito presente, muito verdadeiro.

Daniela: Você começou a tocar quando?

Biglione: Com 12 anos eu comecei a tocar, e como minha mãe era metida a moderninha já concordou que eu fosse músico.

Daniela: Desde pequeno você já sentiu que música era a sua praia?

Biglione: Não, eu queria ser jogador de futebol. Mas eu fiz teste para o Flamengo e fui reprovado, aí fui lá pra Marechal Hermes e fui aprovado. Aí meu pai falou, você foi aprovado, mas ele gostou de você para zagueiro. Falei - ah não, zagueiro não, nenhum garoto quer ser zagueiro. Foi um cara amigo da minha mãe, um hippie, que apareceu com o violão, me apaixonei por violão e nunca mais parei. E vi que tinha mais jeito pra tocar do que pra futebol, você percebe isso.

Daniela: Lembro de você no Cultural e também tocando na Pró Música com o Wagner Tiso. O que me impressionou foi essa sua capacidade de transitar entre os gêneros.


Biglione: Lá no Cultural eu estava tocando rock, eu adoro. Eu gosto de tudo o quanto é música e a MPB foi me levando a variedade de artistas, um recomendando para o outro da MPB, acabei gravando com quase todo mundo. Não tem ninguém que eu não gravei, toquei ou participei.


Daniela: O que você mais ouviu que te influenciou?

Biglione: O que eu mais ouvi e estudei sempre foi o jazz, a minha escola é jazzística. Eu estudei mesmo foi o jazz, as escalas, os acordes, a harmonia, a Bossa Nova, aquela coisa toda de acompanhar. Mas de ouvir eu ouço todo mundo. Não coisa ruim, é claro. Aqui no Brasil depois da gente ter Glauber Rocha, Edson Machado, Zé Kéti, Cartola, Sérgio Mendes, Chico Buarque, Egberto Gismont, Hermeto. É triste tanta coisa ruim hoje.

Daniela: O que você está gravando agora? Algum disco autoral?

Biglione: Esse ano eu fiz coisa pracaramba. Eu lancei um disco de guitarra, essas guitarras de jazz, só tocando Tom Jobim, chama Uma guitarra no Tom. Super cool, só tocando Tom Jobim. Depois lancei Tributo a Ella Fitzgerald, só Ella abrasileirado, arranjos brasileiros. Ainda lancei esse livro. Foi lançado dia 5 de novembro. E vou falar, morar no Brasil para mim é um sonho, é um país que eu adoro. Tem um monte de amigo meu que me pergunta: “você torce para quem, Brasil ou Argentina?”. Eu falo que torço para a Argentina, é lógico, mas não frequento a Argentina, esses amigos meus por qualquer dez merréis já vão para a Argentina, gastar lá. Eu falo, eu torço para a seleção Argentina mas gasto meu dinheiro todo, centavo por centavo no Brasil. O que que adianta, torce pro Brasil êêêêê e amanhã já está embarcando para Buenos Aires. Lindo é o Brasil, é o meu Rio de Janeiro. Buenos Aires tô fora. Já viajei muito, mas o maior país do mundo para mim é o Brasil. Você pode viajar, voltar com o dinheiro forte, euro, dóllar, agora morar eu sempre tive certeza que o lugar é o Brasil. Já recebi inúmeras propostas, mas morar eu moro no Brasil.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Duo Jazz em Tiradentes



Sempre adorei bastidores de shows, fossem os meus ou os de amigos. Neles é que rolam as melhores conversas, piadas, sugestões e conflitos. Dizem que Elis Regina durante toda a carreira nunca deixou de demonstrar certa ansiedade nos minutos antes de entrar em cena, na ocasião de sua participação no XIII Festival de Jazz de Montreux, a adrenalina era tão grande que a Pimentinha demorou a arredar os pés da coxia.

Neste último final de semana, Tiradentes foi agraciada pelo que de melhor se pode ouvir dentro do cenário do jazz produzido por artistas como Victor Biglione, Guinga, Dudu Lima, Enéas Xavier, Rai Medrado, A C, Big Charles, Tony Oliveira, Magno Alexandre e outros. A convite do idealizador e diretor Vicente Martins, passei cinco agradabilíssimos dias nesta cidade por conta de entrevistar essa rapaziada que entende tudo de música boa.

Entre sol, chuva e a presença do meu fiel gravador, aproveitava sempre a brecha do momento em que algum músico passava um som ou almoçava, para abrir espaço para uma boa conversa. Com o pianista Tony Oliveira, meu primeiro entrevistado, levei um longo bate papo que começou lá no tempo em que ele se apresentava na rádio Tupi, de São Paulo. Tony contou-me dos primórdios de sua carreira, no final da década de cinquenta, época do surgimento da Bossa Nova, quando tocava com o contrabaixista Manuel Gusmão e o baterista João Palma. Entusiasmado, revelou que foi o primeiro pianista que gravou com Jorge Ben no seu disco Mais que nada. O sorriso estampado nos lábios, não ocultava a satisfação pela experiência adquirida em espetáculos históricos como Pobre menina rica (Vinícius de Moraes e Carlos Lyra), no Maison de France. O contrabaixista Dudu Lima, após a realização de um show altíssimo astral ao lado do pianista kakinho Itaboray, abriu caminho para uma conversa agradável em que pudemos compartilhar alguns amigos e lugares em comum, visto que nós dois passamos a adolescência em Juiz de Fora e ainda transitamos por lá. Do contrabaixo acústico ao elétrico, Dudu falou com total despudor das limitações e amplitudes que envolvem o universo inesgotável da música: “A gente estuda o instrumento a vida inteira e ele continua um desconhecido, pois é infinito”. Victor Biglione, o argentino mais brasileiro de todos os músicos: “Lindo é o Brasil, é o meu Rio de Janeiro. Buenos Aires tô fora. Já viajei muito, mas o maior país do mundo para mim é o Brasil.” Com Biglione a conversa rolou solta, o humor cativante desse talentosíssimo guitarrista me fez dar altas risadas. Transitando entre o jazz, a música popular brasileira, o blues e outros gêneros, Biglione presenteou-me com seu recém lançado livro, escrito por Euclides Amaral. Inúmeras fotos ilustram a trajetória desse artista, que é considerado o músico estrangeiro que mais gravou com músicos brasileiros, o número um, brincou ele.

Guinga deu uma demonstração única de qualidade humana. Afetado por uma paralisia que tomou metade do corpo, inclusive a face, não descumpriu o compromisso com o festival. Ovacionado por uma platéia embevecida, Guinga tocou e cantou composições suas ao lado de outros parceiros. Embora cansado, expandiu-se em delicadeza e generosidade ao trocar algumas palavras comigo, falou da alegria que lhe traz a parceria estabelecida com José Miguel Wisnik e das parcerias estabelecidas com Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro e Chico Buarque.

Música, música, música, música. Foi o que mais respirei durante esses dias. Vou contando o restante aos poucos, para não perder o fôlego.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Trocando em miúdos



Recebi por email a programação do Seminário Música popular, poesia e memória, a ser realizado na PUC-RIO nos dias 28/02 a 2/10. Durante uma semana passariam pela universidade pesquisadores, musicólogos, jornalistas, escritores, poetas, letristas, compositores, cineastas, músicos e intérpretes. Manhãs, tardes e noites dedicadas a fruição do néctar de nossa música popular brasileira. Entre as mais recentes produções cinematográficas que abordam o universo da MPB foram exibidos A casa do Tom (documentário que reúne as últimas imagens do compositor, coletadas pela viúva Ana Lontra), Vento Bravo (documentário que aborda com riqueza de detalhes a trajetória artística do músico Edu Lobo) e Palavra Encantada (documentário que reflete com muita propriedade sobre as relações entre poesia e música). Os debates que aconteciam todas as tardes em duas sessões, colocou lado a lado Paulo César Pinheiro e Luiz Tatit, Bia Paes Leme, Tárik de Souza e Fred Góes, Zuza Homem de Mello, Arthur Dapieve e Santuza Cambraia, Ruy Castro e João Carlos Carino, Antônio Risério e Tom Zé, José Miguel Wisnik e Júlio Diniz, entre outros.

Não contrariando o hábito, mantive meu caderno de anotações full time ao meu lado, consciente da impossibilidade de apreender com palavras a riquíssima diversidade de inspirações poéticas e sonoras. Vencida uma semana, dou uma passada de olhos em meus comentários que mal reconheço, prefiro abandonar então a imprecisão do registro escrito e acessar minha memória.

Impossível não ficar extasiada diante da imagem de Francis Hime cantando e acompanhando-se ao teclado. Cenário cru, luz sem demasiados efeitos, um homem bonito, elegante e sereno no alto de seus setenta anos presenteia a platéia com suas antológicas composições realizadas com os parceiros Vinícius de Moraes, Chico Buarque, Olivia Hime, Abel Silva, Geraldo Carneiro e Ruy Guerra. Inicia a apresentação com um sorriso doce nos lábios e justificando a ausência da cantora Olivia Hime:”Ela está com problema de garganta”. Salve o compositor popular, Francis toca a primeira sequência de acordes e inaugura o retorno aos tempos de delicadeza: “Vim, cheio de saudade/Cheio de coisas lindas pra dizer/Vim porque sentia/Que nada existia fora de você/Nem a poesia, amor/Na sua ausência quis me receber”. Pra machucar meu coração, manda em seguida Minha, deslumbrante parceria com o cineasta Ruy Guerra, considero esta canção entre as mais belas de nosso cancioneiro: “Minha és e sou só teu/Sai de onde estás pra eu te ver/pois tudo tem que acontecer/Tem de ser, tem, tem de ser, vem/Para sempre,para sempre”. Francis interpreta-a lindamente com sua autoridade de compositor- os acordes cheios despontam na harmonia, que em nenhum momento cai no previsivel. Neste artista a informação da música erudita se funde ao jazz e o popular, resultando em criações de qualidade ímpar. A trilha sonora composta por ele para o filme Lição de Amor (Eduardo Escorel), adaptação da obra Amar verbo intransitivo, de Mário de Andrade, é de um lirismo singular. Perdi a conta de quantas vezes assisti ao filme fixada na cena final, em que Lilian Lemmertz com a face pálida segue seu caminho solitária, conduzida pela sinfonia de Francis. Com Geraldo Carneiro, um de seus parceiros mais assíduos nos últimos anos, Francis exercita levadas mais sincopadas que se casam muito bem com o feeling bem humorado do poeta. Francis ganhou definitivamente a platéia da PUC ao interpretar a melô da maça: “Quando musiquei este delicioso poema de Geraldinho, não sabia se adotava um ritmo binário ou ternário. Na dúvida fiz das duas formas, o que resultou numa mistura de salsa, rumba, valsa e pasodoble”.

Maria Bethânia acompanhada por seu arranjador, violonista e diretor musical Jaime Além, encerrou o evento. Sentada no chão ao lado de minha irmã e cercada por estudantes, fãs e curiosos, me embebi de poesia pura. A cantora ora lia, ora cantava textos, poemas e canções de Fernando Pessoa, Ferreira Gullar, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Waly Salomão, Caetano Veloso, Mário de Andrade, Dorival Caymmi, Capinam, Paulinho da Viola e tantos mais. O cenário sóbrio reproduzia alguns poemas manuscritos em preto sobre folhas brancas. Bethânia inteiramente vestida de branco parecia levitar: etérea, plena, sublime. Ela é a artista dos palcos por excelência, no pequeno espaço do auditório da PUC essa mulher resplandecia gigantesca. A manifestação de gestos contidos, porém espontâneos e certeiros, reforçavam a concentração na força da emissão das palavras. Ao fim da apresentação apertei as mãos de minha irmã e vi que seus olhos lacrimejavam, emudeci, emudecemos.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Slow music : arte maior de iniciados



Para quem conhece bem
Os caminhos
Do amor seu vai e vem
Quem conhece
Fernando Brant


Faz uns três meses que não escrevo nenhuma crônica sobre canções, discos, vislumbramentos sonoros. Não que tenha deixado de ouvir músicas que me tocassem, nesse tempo passaram por meu mp3 muito Francis Hime, Edu Lobo, Rosa Emília, Lobão e principalmente Joyce. Sou fã declarada de Joyce, sempre que posso vou aos seus shows e não deixo de colocar seus CDs para escutar. Há algum tempo não sai de meus ouvidos o antigo Passarinho Urbano, gravado pela cantora em 1976. Nele pode-se ouvir a Joyce dos primórdios, com um timbre consideravelmente mais agudo e o violão espetacular. Um disco que traz um repertório absolutamente nacional, com canções que condiziam com o contexto repressivo da época como Acorda amor, Radiopatrulha, Pesadelo e Pede passagem. O belo poema Passarinho, de Mário Quintana, musicado por Joyce e que dá sugestão ao título do disco, alegoriza a necessidade de cantar como uma das saídas existenciais: “Todos esses que aí estão/ Atravancando o meu caminho/ Eles passarão.../Eu passarinho!”.

Joyce canta com a leveza e suavidade de um passarinho, o teor denso evidenciado em algumas letras é suplantado pela interpretação da cantora, que valoriza interpretações delicadas e plenas de pulsação lírica. Acorda Amor, canção antológica de Chico Buarque, ganha a bela e enxuta leitura de Joyce, em que a voz de um agudo puríssimo é acompanhada pelas batidas precisas de seu próprio violão. A sedução toma o lugar da opressão, onde Eros se sobrepõe a Tanatos, e a força maior da vida clama por espaço, como em Pesadelo, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro: “Quando um muro separa/Uma ponte une/Se a vingança encara/O remorso pune/Você vem, me agarra/Alguém vem, me solta”.

Após Passarinho Urbano, Joyce gravou muitos outros discos de qualidade indiscutível como Tardes Cariocas, Saudade do futuro, Ilha Brasil, Tudo Bonito, Banda Maluca e tantos mais. Ela é uma artista completa: compõe, canta, faz arranjos e toca muito bem violão. Embora a música popular brasileira seja povoada por uma imensidão de cantoras, conta-se nos dedos aquelas que incorporam tantas qualidades, a exemplo de Joyce.

Celebrando quarenta anos de carreira, Joyce acaba de lançar Slow Music, seu tão sonhado disco: “Este é o projeto dos meus sonhos. Sonhei com ele pela primeira vez há 10 anos atrás, e agora, finalmente, ele se materializa em sons”. Slow Music é um cd primoroso da primeira a última faixa, em que o amor é tema onipresente. O título “Slow” sugere o andamento das canções, soft, cool, em homenagem a três grandes ícones do bom gosto e elegância no gênero: Shirley Horn, João Gilberto e Bill Evans. Em termos de condução rítmica, Slow Music soa até atípico no conjunto da obra de Joyce, que vem se consolidando cada vez mais, principalmente no mercado exterior, como uma cantora fast: “eu tenho um estilo que não é nada slow, na verdade é fast pracaramba. Eu sou mais conhecida até nos trabalhos internacionais pelas músicas de andamento rápido, pelo samba jazz, pelas coisas mais swingadas, até meio dançantes e tudo, então Slow Music pra mim é uma experiência nova no sentido de buscar esse caminho”.

“Música é alimento para alma”, diz a cantora, e a idéia do disco surgiu a partir do momento em que Joyce leu o manifesto do movimento slow food, realizado na Itália. O manifesto foi redigido a partir da inauguração da primeira lanchonete MC Donalds em Roma, causando imensa revolta na população. Contra o despejo desgovernado de junk food, comida de péssima qualidade, os italianos reinvindicaram o resgate e a valorização das qualidades essenciais da culinária italiana, como sabor e tempo de preparo. Assim como a junk food invade avassaladoramente os paladares dos cidadãos do mundo, a junk music também entorpece os ouvidos das pessoas, que são submergidas pela produção musical também de péssima qualidade. Joyce enfatiza que: “A gente ingere junk music pelos ouvidos e aquilo fica dentro de você o tempo todo, queira você ou não. Você está na rua, você ouve de tudo. Então a minha idéia em relação a isso era exatamente fazer um disco que pudesse ser colocado em situações de grande stress, por exemplo entrando em São Paulo pela Marginal Tietê”.

Com sua levada única, que explicita plena maturidade e domínio sobre a escolha do repertório e dos músicos que a acompanham -os três mosqueteiros - Joyce faz sua ode ao amor. O amor celebrado pela artista ultrapassa o furor do amor paixão, comumente entoado pelos representantes da junk music. Joyce canta acima de tudo o amor agridoce, vivenciado, saboroso e “madurado de carinho”, como descreve Fernando Brant nos versos de Fruta Boa.

De 1990, momento da idealização, até a gravação definitiva do cd, se passaram dez anos, tempo que Joyce alegou ter sido necessário para sedimentar com serenidade e sabedoria os amores vividos. As composições de Slow Music analisam vários aspectos do amor: amor com toques de ironia em Samba do Grande Amor (Chico Buarque), amor perturbado pelo ciúme na belíssima Medo de Amar (Vinícius de Moraes), amor sincero e por isso perigoso em Amor Amor (Sueli Costa e Cacaso), amor expressão pura de alegria em But Beautiful ( J. Burke e Van Heusen), amor separação, numa espécie de nova versão de Trocando em Miúdos em Sobras da Partilha (Joyce e Paulo César Pinheiro), amor pequeno, feito para aprendizes na delicada Valsa do pequeno amor (Joyce Moreno).

A concepção do disco ressalta a qualidade dos arranjos que primam por interpretações que dão ênfase ao caráter jazzista. O gabarito do trio de músicos composto por Tuty Moreno (bateria), Jorge Helder (contrabaixo) e Hélio Alves (piano) permitiu altos vôos sonoros. Ouvi inúmeras vezes canções como Slow Music e Valsa do pequeno amor, desfrutando de cada nuance dos improvisos. Valsa do pequeno amor é um exercício de delicadeza, inteiramente composta por Joyce a música fala dos pequenos amores que são vivenciados numa condição de prelúdio para o almejado grande amor. A Joyce menina-mãe-mulher dos tempos de Clara e Ana, agora é a mulher-senhora, dona de uma considerável bagagem artística e existencial: “O grande amor/arte maior de iniciados/predestinados são bem poucos os mortais/é tenebroso, é embriagador/ mas só se mostra inteiro em esplendor/ pra quem viveu/ quem teve o seu pequeno amor”.

Slow Music é preciosidade de gente grande.