`A memória de João Medeiros, que me ensinou a ouvir
O Brasil é conhecido como o país das cantoras, entretanto não se deve esquecer da diversidade de talentosíssimos compositores que preenchem o rico manancial da música popular brasileira. Neste caso específico a meta são os letristas, poetas em música, aqueles que escrevem versos para serem cantados. Embora seja normal chamar o letrista de poeta, há que se frisar uma diferença fundamental entre ambos: o poeta escreve versos para serem lidos, enquanto o letrista elabora a letra que só adquire sentido pleno quando ouvida em conjunto com a música. Letra e música são indissociáveis. Para tornar esta afirmativa evidente, basta analisarmos separadamente a letra de uma das mais belas canções da MPB, Pra dizer Adeus, parceria de Edu Lobo e Torquato Neto: “Adeus/Vou pra não voltar/e onde quer que eu vá/ sei que vou sozinho/ tão sozinho amor/nem é bom pensar/ que eu não volto mais/desse meu caminho (...)” Nota-se que a leitura crua dos versos de Torquato ocasiona um certo vazio no texto, a letra parece perder em qualidade e densidade, isso ocorre justamente devido ao fato de que ela foi feita para casar-se com a música.
É somente a partir da parceria entre Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes que se institui o verdadeiro paradigma qualitativo (letra & música) na MPB. Com Tom e Vinícius a música popular brasileira realizou a união perfeita, aliou na dose exata a sensibilidade poética e musical. A riqueza melódica e harmônica das composições de Tom se encaixavam nos versos altamente sofisticados de Vinícius. Tom e Elis, foi considerado na época de seu lançamento, há exatamente trinta e quatro anos, um dos mais importantes discos do mundo. Neste destaca-se a antológica interpretação de Elis de Por toda a minha vida (Tom/Vinícius), canção que impressionou o cineasta Pedro Almodóvar, que a utilizou para intensificar a carga dramática da plástica cena de uma tourada no filme Fale com ela
Analisando mais detidamente a safra de compositores da nova geração Bossa Nova e pós Bossa Nova, constata-se que alguns são essencialmente letristas como Fernando Brant, Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro, Abel Silva e Vítor Martins, enquanto outros como Tite de Lemos e Cacaso fazem letras que sobrevivem à música, textos poéticos de rara beleza e clarividência. Vejamos: “Mande notícias do mundo de lá/diz quem fica/me dê um abraço/ venha me apertar/ tô chegando/ coisa que gosto é poder partir/ sem ter planos/ melhor ainda é poder voltar/ quando quero (...)”. Como ele mesmo diz, constrói versos com palavras simples, boas de cantar. Brant traz em suas composições a marca de um movimento incessante, o artista demonstra estar continuamente num trânsito ininterrupto, um viajante que se desloca de seu território de origem, Minas, em direção ao mundo. A canção Vendedor de sonhos, em parceria com Milton Nascimento, é uma síntese do enunciado: “Vendedor de sonhos/tenho a profissão viajante/de caixeiro que traz na bagagem/ repertório de vida e canções (...)”. No contínuo percurso pelo país e pelo mundo o letrista reconstrói alegoricamente Minas, tanto que uma das palavras mais constantes em sua produção é quintal, justamente a representação de sua aldeia, Minas Gerais, que é sempre matéria de memória. O “quintal” está relacionado ao seu universo. É nele que Brant guarda todos os mistérios e segredos de sua existência. Os sonhos, as fantasias, as brincadeiras, as paixões, muitos sentimentos que ficaram fechados e protegidos nesse pequeno sítio particular. Fruta Boa, com Milton Nascimento, é um exemplo de extrema riqueza construtiva. Por seu destacável caráter literário sustenta-se sozinha na folha de papel sem necessitar de acompanhamento musical. A relação amorosa é tematizada com delicadeza e sensualidade. Ao comparar o amor maduro a uma fruta boa, Brant dá primazia as impressões sensoriais. A depuração poética se associa a depuração dos sentimentos, o amor se constrói e se enobrece na simplicidade do cotidiano: “(...) Saboroso é o nosso amor/fruta boa/coração é o quintal/ da pessoa/ é gostoso o nosso amor/ renovado é o nosso amor/ saboroso é o amor/ madurado de carinho/é pequeno o nosso amor/ tão diário (...)”.
Aldir Blanc é um compositor essencialmente carioca, transcreve cenas de bairros populares do Rio, seus dramas e conflitos, com o olhar do espectador atento e até mesmo participante. Suas letras são verdadeiras crônicas que traduzem o cotidiano da cidade, enfatizando o que restou dos trejeitos e costumes dos anos 50, por exemplo, o malandro, o bordel, o tragicômico, way of life suburbano. Este universo é tratado com maestria por Aldir que acentua pitadas de uma estética kitsch com delicioso toque de humor. São primorosas letras, em parceria com João Bosco, como Cabaré, Miss suéter, Latin Lover entre outras. É fácil identificar nos versos de Aldir afinidades com a cena temática de Nelson Rodrigues. Aldir, porém, não se limita apenas a ser o cronista dos tipos e maneirismos cariocas. Médico de profissão (psiquiatra), nunca exerceu de forma sistemática seus conhecimentos. Eventualmente atendia em hospitais psiquiátricos e públicos, levado naturalmente por sua sensibilidade artística que sempre norteou seu rumo de vida. O excepcional letrista também fez incursões nas crises existenciais de uma classe média alta. Registre-se Altos e baixos em parceria com Sueli Costa, onde vai ao limite da passionalidade diante de uma relação conflituosa: “Foi quem sabe/esse disco/esse risco/ de sombra em teus cílios/ foi ou não meu poema no chão/ ou talvez nossos filhos/ (...)foram discos demais/ desculpas demais/ já vão tarde essas tardes/ e mais/ tuas aulas/ meus táxis/ uísque, dietil, dienpax (...)”.
Transitando por outros temas, Aldir foi um dos principais lutadores pela volta ao estado de direito no país, com seus versos contundentes e esperançados. É dele, por exemplo, em parceria com João Bosco o clássico O bêbado e a equilibrista, mais tarde reconhecido como um verdadeiro hino da anistia: “(...) mas sei/que uma dor assim pungente/não há de ser inutilmente/ a esperança dança na corda bamba de sombrinha (...)”. Detecta-se, por outro lado, uma permanente preocupação em sua obra com o tempo em seus mais variados matizes. Ora em rememorações, ora em perplexidade, o ontem – hoje, o nunca mais. O espanto diante das incertezas do futuro. Inesquecível texto poético na canção Resposta ao tempo, em parceria com Cristóvão Bastos, onde Aldir, se necessário fosse, ratifica a sua condição de excelente poeta em música: “Batidas na porta da frente/ é o tempo/ eu bebo um pouquinho pra ter argumento/ mas fico sem jeito calado/ ele ri/ ele zomba do quanto eu chorei/ porque sabe passar e eu não sei”.
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