Suria está aí relaxando. Bem diferente do Vitório...
Fala-se que o cão é o melhor amigo do homem. Não sei se ele é a única espécie fiel e amorosa de fato, pois tenho amigos que dizem que seus gatos são tão ou mais amorosos e dedicados que os cães. Sueli Costa é encantada pelo seu Capuccino, um lindo gato de tom amarronzado e pêlos sedosos, tão sedosos quanto o daquelas mulheres que usam seda – o xampu das estrelas, as felinas. A sensibilidade de Sueli acabou transformando Capuccino em canção. Ao sentir esse clima de paixão entre Sueli e seu gato, nosso amigo comum, o poeta Ricardo Rizzo, fez um belo poema para a compositora: “Lua refletida em tudo/ lagoa, xícara/ café capuccino que o gato/ lambe/ na fúria vingada/ uma mulher/ menos que outras/ sabe sentar-se/ de braços/ rentes/ ao fogo da mesa/ estica-se um pouco,/ desliza as mãos/ no campo minado/ é como se pintasse/ qualquer coisa/ com muitos detalhes/ (quem sabe/ um rosto/ou uma faca/ sobre a mesma mesa/arredia)/um pouco de sua pele/ se molha na lua/ que o café derrete/e vai destilando/ no tecido/ branco/(como ar / num enforcamento)/ malvadeza de gato/ esse estio/ na mancha de lua:/ as mãos estão molhadas/ os olhos, lagoa/ molhados como o corpo.”
Ulla, minha enteada, não vive sem o Nero e a Maria, um casal de gatos gordos e bonitos que adoram ficar trançando entre a televisão e a estante de livros. Ana Paula e seu marido Pablo, meu outro enteado, cuidam do Mingau, o gato cor de caramelo mais comportado que já conheci. Fiz meu curso de letras ao lado da minha amiga Tereza, uma gata branca agregada à Universidade de Juiz de Fora, estudiosíssima e excelente parideira. Como a faculdade de letras da UFJF mudou-se para outro prédio, Tereza agora estuda filosofia, pois ela não gosta mudar de sala.
Acho os gatos sensuais, misteriosos, lindos e muito limpos, mas mesmo assim eu amo mesmo são os cães. Uma noite, há coisa de cinco meses, eu e Ronaldo voltávamos de carro da comemoração de seu aniversário, quando ele freou abruptamente, acreditando que quase atropelara um rato. Na verdade era um cão muito pequenininho, com a barriga enorme de vermes, como as crianças desnutridas da Somália. Resolvemos levar o bichinho para casa e cuidar dele, como se fosse nosso. Veterinário, vacinas, rações. Com nosso carinho e dedicação Vitório (esse “vitorioso” animal que derrotara a inanição) não negou o nome de batismo, a cada dia mais forte e heróico como os grandes vencedores da história. Da história humana, canina & etc etc.
Como qualquer cão de sua idade, Vitório era um vira-lata de estirpe, raçudo e muito do espevitado. A mistura de bassê com outra raça desconhecida dava-lhe a graça dos movimentos. Suas patas marcando sempre dez pras duas, ao estilo de um bailarino, como se em permanente “plié”, faziam dele um “cão artista”. Mas o artista fazia um catatau de firulas: latia alto, corria até o banheiro e desenrolava todo o rolo de papel higiênico, virava a lata de lixo da cozinha, comia os dicionários e os calçados, rasgava todos os pacotes de bombril e esfregava casa afora, dava saltos altíssimos como um malabarista de circo, fazia tudo que tinha direito embaixo da cama (às vezes em cima) e perto da televisão – e ainda exercitava um de seus maiores prazeres, que era morder os pés e arranhar as pernas de quem via pela frente. Por muito amor e solidariedade a tanta energia, eu deixava as minhas pernas arranhadas e acho que as pessoas que me viam chegavam a duvidar se eu seguia os preceitos de Nelson Rodrigues.
Como moramos em apartamento, não demorou muito para que recebêssemos um comunicado de advertência: Vitório passara dos limites. Não satisfeita, fui tentando arrumar saídas para cansar o artista, arrumava horário três vezes ao dia para levá-lo à rua. Qual o quê! Vitório se esbaldava “também” na rua e continuava a fazer em casa seus “esbaldeamentos”, suas “esbaldeações”, e tudo mais que possa lembrar grandes travessuras.
Após os fracasso de todas as tentativas de salvá-lo da hiperatividade – e também de aliviar os ouvidos da Solange, nossa fiel secretária e escudeira – acabei, entre lágrimas, dando o Vitório de presente para o Paulinho, porteiro do prédio. Foi doloroasa a cena de despedida: eu olhava da janela meu filhotinho, de coleira vermelha, partindo com seu novo dono.
Só o tempo cura tudo, dizem os mais vividos. Mas a saudade ainda dói! Dias desses, mais de mês sem Vitório, fui finalmente à casa de Paulinho para rever meu pomposo caõzinho, que felizmente ainda conserva o nome de batismo: “Eu cheguei em frente ao portão/ meu “ex” cachorro me sorriu latindo/ eu voltei”. Eu voltei, quase dizia pro Vitório. Eu e o Roberto Carlos. Vitório latia, chorava, pulava enlouquecidamente no meu colo como se quisesse recuperar nosso tempo perdido. Depois da festa de recepção, comprovei que ele era outro cão, muito mais tranqüilo. Na companhia de seus amigos cães e das galinhas e dos patos, Vitório encontrara o paraíso.Na casa de Paulinho o que não falta é espaço. Ele mora num bairro próximo a uma mata muito verde, com muitos micos, passarinhos, cobras e até lagartos. Desde que cheguei a Cataguases fico impressionada com a quantidade de lagartos que vejo nas ruas.
Alguns são enormes e se escondem nos canteiros que cercam as árvores dos prédios. Não pude deixar de perguntar ao Gabriel, irmão de Paulinho, se ali na sua casa apareciam muitos lagartos: “Aqui tem muitas largartixas. Agora, ´largato´, ´largato´ mesmo, a gente não pode comer de jeito nenhum no mês de agosto, pois eles falam que a cobra cruza com o ´largato´ nesse mês e passa o veneno todo pra ele. Se a gente come, morre por causa do veneno”.
O que eu chamo de lagarto, na verdade eles costumam chamar de lagartixa. O ´largato´, como eles dizem, é uma carne saborosa de um lagarto grande que se equipara a um jacaré. Naquela noite de lua cheia e muito luminosa, bati longo papo com o Paulinho e o Gabriel. A fala de Gabriel me lembrava o Riobaldo de Guimarães Rosa, uma sabedoria e uma pureza que não se vê mais no prolongamento do asfalto. O relógio bateu nove da noite, embora as patas de Vitório ainda apontassem dez para as duas. Descemos pela estradinha de chão acompanhados por Vitório e um de seus amigos. O ônibus chegou e nos despedimos. Vitório é um vitorioso. Um raçudo. Um vira-lata sim, mas de grande classe.
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