domingo, 6 de novembro de 2011

Olho de Lince


Encontro dedicado à poesia brasileira dos anos oitenta aos dias atuais na Puc-Rio. Na mesa central Júlio Diniz, Antonio Cícero, Eucanaã Ferraz e Ana Cristina Chiara discutiam a existência e o destino da poesia e dos poetas no mundo atual, alternando-se entre falas que misturavam múltiplas sensações como desencanto, exaltação, humor e surpresa. Uma moça sentada ao meu lado subitamente sussurrou: “Imagina se o Waly Salomão estivesse sentado agora nesta mesa”. Ambas tivemos vontade de rir, pois a presença de Waly naquele instante certamente consistiria numa quebra absoluta dos protocolos que regem o universo acadêmico. Despudorado, verborrágico, anárquico e visceral Waly pareceu ser/estar sempre no avesso, do avesso, do avesso, do avesso.

Conheci primeiramente o Waly das letras vibrantes e plenas de eros como Mel: “O abelha rainha faz de mim/um instrumento de teu prazer/sim, e de tua glória/Pois se é noite de completa escuridão/Provo do favo de teu mel/Cavo a direita claridade do céu/E agarro o sol com a mão”. Mais tarde tomei contato com sua produção poética que explicita o percurso de um criador que sempre foi consciente do poder da palavra, no espaço da folha em branco Waly mantinha um estranho equilíbrio entre a sabedoria e a experimentação.

Retiro da minha pilha de cds Real Grandeza, ótimo disco que reúne o repertório da dupla. Com a participação de Frejat, Luiz Melodia, Maria Bethânia e Adriana Calcanhotto o disco traz a seiva dos versos de Waly acrescida pela riqueza musical de Macal. Olho de lince, composição que inaugura o cd é no fundo o autoretrato do poeta e artista multicriativo Waly Salomão; “Quem fala que sou esquisito hermético/É porque não dou sopa estou sempre elétrico/Nada que se aproxima nada me é estranho/Fulano sicrano beltrano/Seja pedra seja planta seja bicho seja humano”. “Olho de Lince” abre o cd com classe, cujo piano minimalista de Cristovão Bastos impõe um toque de refinamento e expande o caminho para o ecoar das vozes de Waly e Macalé.

Sendo uma homenagem póstuma a Waly, o disco tem como mérito a atmosfera de frescor que dele exala, cuja participação de músicos de uma geração mais recente como Frejat e Adriana Calcanhotto, imprime nas canções um olhar contemporâneo marcado por um novo formato conceitual. Apesar de inserções modernas que vão além dos músicos convidados, o disco mantém a essência dos autores. “Anjo exterminado” interpretado pelas vozes e violões de Calcanhotto e Macalé é um belo registro que evidencia a inteiração sonora dos dois artistas, cuja voz da cantora impõe certa leveza e graciosidade cheia de swing aos versos de Waly: “Anjo exterminado/ Olho o relógio iluminado/ Anúncios luminosos/Luzes da cidade/Estrelas do céu/Me queimo num fogo louco de paixão”.

A força interpretativa de Macalé jamais me deixa passiva e indiferente, numa crônica inteiramente dedicada a ele fiz questão de registrar o quanto havia me tocado sua interpretação de Ne me quitte pas. Em olho de Lince ele regrava Rua real grandeza com o simples auxílio de seu personalíssimo violão. Sua voz é portadora também de uma marca única que deixa a emoção extravasar sem cair no melodrama. Entre movimentos de contenção e expansão Macalé fixa seu próprio eixo de condução e equilíbrio musical. Certamente uma alma irmã de Waly que lhe presta uma homenagem digna e emocionada.