Ultimamente tenho escutado quase todos os dias o último cd de Tom Jobim (“Antonio Carlos Jobim em Minas ao vivo piano e voz”), lançado pela Biscoito Fino. O disco resgata com impecável qualidade sonora o maravilhoso show “piano e voz” que ele realizou no Palácio das Artes de Belo Horizonte, em 1981. Tom toca e canta preciosidades como suas parcerias com Dolores Duran (“Estrada do sol”), Chico Buarque (“Retrato em Branco e Preto”) e Aloysio de Oliveira (“Dindi”). Emociona ouvir o som de sua respiração em cada pausa, em cada retorno. A grande beleza do disco está em sua “sofisticada simplicidade”. E vale o paradoxo, pois para Tom valem todos os paradoxos. Este é o grande legado que ele nos deixou.
Sua simplicidade e intenso refinamento são exaltados nas canções – aquele “only one finger”, o dedo mágico que executa a nota certa, precisa, sem enfeites desnecessários. O piano de Tom é inconfundível, inigualável. Essa simplicidade é o reflexo da alma de um ser iluminado, como disse Helena Jobim em sua biografia sobre o irmão. Antonio Carlos era brasileiro não apenas no nome – e muito antes de a ecologia estar na moda: ele amava os passarinhos do país, seus tatus, suas capivaras, os jerebas, os botos.
“Passarim quis pousar, não deu, voou/ Porque o tiro feriu mas não matou/ Passarinho me conta então me diz/ Porque que eu também não fui feliz” (Passarim), “Deixa a onça viva na floresta/ Deixa o peixe n’água que é uma festa/ deixa o índio vivo/deixa o índio” (Borzeguim), “Pétalas de rosas espalhadas pelo vento/ um amor tão puro carregou meu pensamento” (Chovendo na roseira).
É possível sempre sentir um Tom vivo, muito próximo, como se estivesse fazendo um concerto intimista, para cada ouvinte embevecido. Sua voz de tom muito grave nos leva e enleva, e vamos ao paraíso: “Céu, tão grande é o céu/ E bandos de nuvens/ Que passam ligeiras/ Pra onde elas vão/ Ah, eu não sei, não sei” (Dindi). E a infernos amorosos: “lá vou eu de novo como um tolo/ Procurar o desconsolo/ Que cansei de conhecer/ Novos dias tristes, noites claras/ Versos, cartas, minha cara/ Ainda volto a lhe escrever” (Retrato em Branco e Preto). Aos poucos a gente pode perceber ele se sentindo confortável e totalmente descontraído na terra de suas duas grandes paixões: Guimarães Rosa e Drummond. O maestro soberano reverencia os músicos mineiros, presentes no seu concerto: “Aqui tem uma moçada da pesada, Lô Borges, Beto Guedes, Ronaldo Bastos e também o Fernando Brant, gente fortíssima”.
Nada emociona mais que o autor interpretando sua própria canção. Tom dá ênfase à força poética de suas letras, muitas vezes pouco notada pelo público e pela própria crítica. Comenta-se muito sobre a harmonia, a melodia, os arranjos, mas quase não se fala do incomensurável talento de Jobim ao construir suas letras. Sem dúvida ele sempre se cercou de seus Chico Buarques, de suas Dolores Duran, de seus Vinicius de Moraes. Mas olha que nem era lá muito necessário: Tom se bastava por si mesmo.
Ouçam, por exemplo,“ Ligia”, uma canção em tudo anti-romântica - e extremamente irônica. Com a palavra o próprio Tom, com todos os tons de seu bom-humor: “Sempre troquei os nomes das musas e ainda dava a maior confusão. Porque se você chamar a musa por outro nome, aparece um outro marido para pedir satisfação. Naturalmente, a Lígia é um punhado de Lígias, de Lídias também. Os maridos ficam sobressaltados. Inclusive a letra de Lígia nega qualquer ligação: ‘Não gosto de chuva, não gosto de sol, não vou a Ipanema, não gosto de samba, não vou ao cinema. É uma Lígia sem contato físico’. É ascética, desligada, platônica, completamente.”
E Tom continua, descontruindo sua Lígia: “quando você me prender nos seus braços serenos (ela está sereníssima, naturalmente), eu vou me render, mas seus olhos morenos me metem mais medo que um raio de sol”. Pois é, ele está louco de paixão, supondo que, se a tivesse, teria se jogado pela janela. Esse negócio não tem importância. Muitas vezes, eu não boto nome de mulher nenhuma”.
Esse o tom do Tom. Que é tudo.
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