E nos tempos sombrios, também se cantará? Também se cantará sobre os tempos sombrios
Brecht
Transversal do Tempo
Em novembro de 77 Elis estréia em São Paulo o show Transversal do Tempo, um espetáculo denso com forte apelo político. É temático ao expressar a angústia claustrofóbica do mundo moderno, um universo de múltiplas ausências e carências. Elis canta a falta de perspectiva, de espaço, de ar e de reciprocidades. A temática do show foi extraída de uma experiência contundente e decepcionante vivenciada pela cantora. Dentro de um táxi a caminho de uma gravação, grávida de sete meses e dependendo de um guarda de trânsito para livra-la do congestionamento:
o que acabei presenciando, sem querer, foi o desrespeito generalizado por aí. Assisti, ao vivo, a falta de respeito que está solta pelo ar. A falta de respeito existe para com o rio, a pessoa, a árvore, o passarinho. ( Veja, 1978)
Transversal do Tempo é um trabalho de amadurecimento e lucidez. A sua arte demonstra um compromisso com os problemas brasileiros; são nuances de cor local que desaguam com intensidade no nacionalismo de Saudades do Brasil: "Resolvi que minha arte deve ter ligação com a realidade em que vivo". Cenários, figurino, repertório, tudo retratava o alto teor crítico do espetáculo. Acusado de panfletário, pretencioso, foi alvo das mais díspares opiniões, tanto que no texto da contracapa o letrista Aldir Blanc utiliza-se das palavras de Mário de Andrade em seu Prefácio Interessantíssimo: "... muitos entenderam e gostaram, muitos entenderam e não gostaram, outros gostaram e não entenderam, e alguns não entenderam e não gostaram". No espetáculo constam canções de Paulinho da Viola, Chico Buarque, João Bosco, Ivan Lins entre outros, quase todas de forte apelo social. Embora João Bosco e Aldir tenham composto a canção tema Transversal do Tempo com base na experiência vivenciada pela cantora no trânsito, Sinal Fechado de Paulinho da Viola é a que melhor sintetiza a razão do espetáculo: a incomunicabilidade, o drama Baudelairiano, a solidão do homem, sempre fragmentado, perdido em meio a multidão da cidade que o sufoca e o angustia. A ausência de comunicação é marcada pelo tempo acelerado; neste mundo caótico e corrosivo todos correm desordenadamente à procura de novos espaços, um frenesi incontido em busca de alívio, de um pouco de paz:
Tudo bem, eu vou indo correndo
Pegar meu lugar no futuro. E você?
Tudo bem eu vou indo em busca de um sono tranqüilo, quem sabe?
Em nosso país, sob o tacape da ditadura militar, reino de incertezas e inquietações, só era permitido aos artistas um tipo de manifestação formal e contida. A censura atazanava a vida de todos, cerceava a liberdade de criação. Mesmo assim os compositores usavam de artifícios e driblavam o obscurantismo com simbologia e metáforas. Elis era uma espécie de arauto da causa libertária. O sinal estava fechado, as portas trancadas, as bocas permaneciam caladas. Adélia Bezerra de Menezes define com clareza:
Podemos dizer que a canção de protesto exerce na sociedade uma função catártica, pois agenda ao nível da afetividade, provoca uma liberação de emoções, um certo alívio.
Percebe-se que a maioria das canções ilustra uma preocupação com a complexidade da organização social. De Saudosa Maloca de Adoniran Barbosa, passando por João Bosco em Rancho da Goiabada e desembocando em Deus lhe pague e Construção, de Chico Buarque, constata-se uma preocupação com os desígnios da classe operária:
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro pareses sólidas...
Os bóias-frias quando tomam
Umas birita espantando a tristeza ...
Pela piada no bar
E o futebol pra aplaudir
Elis Regina durante praticamente toda a carreira lutou e integrou-se a movimentos e partidos políticos destinados à defesa dos excluídos. Articulada, analítica e sempre polêmica ela esteve inúmeras vezes envolvida com associações de classes, movimentos operários e questões femininas:
Elis era muito articulada. Sabia propor e defender idéias. As vezes passava por profunda conhecedora de assuntos sobre os quais apenas tinha ouvido falar. Mas parecia estar sempre com antena ligada. No dia seguinte era capaz de ensinar ao mestre o que aprendera e com um despudor desconcertante. (Elis por Ela mesma, São Paulo, 1995)
Em virtude do caráter multifacetado e paradoxal de sua personalidade, Elis foi inúmeras vezes acusada, confundida, julgada. Quem não se lembra do episódio de sua participação nas Olimpíadas do Exército em 72? Elis chegou a se justificar:
Eu cantei nas Olimpíadas do exército, das quais o pessoal da Globo Também participou. Foram todos obrigados. E você vai dizer que não? Eu tinha exemplos muito recentes de pessoas que disseram não e se lascaram. Então eu disse sim.
As inúmeras justificativas e explicações dadas por Elis na época não amenizaram o clima de hostilidade que a envolvia. A esquerda a esconjurou, grande parte do público intelectualizado se revoltou contra suas atitudes. Daí podemos então compreender porque Transversal do tempo é de todos os shows de sua carreira o mais politizado, integrado à realidade brasileira. Elis desejava desfazer os mal entendidos apresentando um espetáculo sério, coerente e compromissado. No fundo queria mostrar a sua face inteligente e responsável diante da implacável ditadura. Elis rejeitava, portanto, o rótulo de alienada, anti-populista e direitista.
Chamam meu show de velho, de atado a 1968? Que descoberta! Pergunto a eles: as coisas mudaram tanto, mesmo, de lá para cá que possa me desatar de 68? O Transversal do Tempo, como Tranversal do tempo, inclusive se propõe a isso: ser jornalístico, destinado justamente a refrescar memórias entorpecidas.
Em Boto, de Tom Jobim e jararaca e Querelas do Brasil, de Aldir Blanc e Maurício Tapajós, identificam-se questionamentos sobre a identidade brasileira, a dominação/colonialismo cultural, as imposições mercadológicas:
O Brazyl não conhece o Brasil
O Brasil nunca foi ao Brazyl
O Brazyl não merece o Brasil
O Brazyl tá matando o Brasil
Interessante observar que em Transversal do Tempo há uma total uniformidade de repertório. Elis jamais se distancia da proposta central. Da primeira a última faixa estabelece-se um continuum em que letra, harmonia e ritmo não sofrem qualquer espécie de ruptura. Com o firme propósito de afirmar a identidade de seu trabalho, Elis jamais extrapolou inerentes potencialidades em prol de um exibicionismo inócuo, lugar comum em intérpretes iniciantes que fazem de seus repertórios um verdadeiro "samba do crioulo doido", uma salada composta de jazz, samba, bolerões, breguices e muito mais. Alternando a sua veia dramática e o humor caústico, Elis não perdia a autenticidade do canto.
Muitos cantores conseguem se manter absolutamente distantes de seu repertório. Podem cantar o amor na primeira faixa de um disco, louvar as verdes matas do Brasil na segunda, reclamar contra o preço do feijão na terceira e não se identificar com nada disso. Não é, nem de longe, o caso de Elis Regina. (Furacão Elis, 1994)
Transversal do Tempo antecipa a grande festa confraternizadora que acontecerá em Saudades do Brasil. Procurou-se transformar Tanatos em Eros onde o desejo permanecia ainda muito individualizado, não compartilhado. Indivíduos distintos perdidos no turbilhão das cidades: "quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí ...". Os diferentes níveis sociais (empresários, operários, bóias-frias) são tematizados em conjunto, porém permanecem individualizados. Em Saudades do Brasil Eros torna-se ágape, um grande banquete pleno de empatias. A cantora maior, os músicos experientes, os dfançarinos e os atores alegorizam a cordialidade do povo brasileiro:
Já disse numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade - daremos ao mundo o "homem cordial". A ilhanesa no trato, a hospitalidade, a generosidade, virrtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro. ( Hollanda, Sergio Buarque de)
Em Transversal do Tempo o elenco não tem a grandiloquência dos espetáculos Falso Brilhante e Saudades do Brasil. Como Elis pretendia excursionar pelo país, leva-lo às praças públicas, participar de campanhas beneficentes e políticas como o espetáculo que fez a pedido do então presidente do Partido dos Trabalhadores Luís Inácio Lula da Silva.
Mesmo com toda postura audaciosa e desafiadora, Elis de certa maneira temia a censura, obedecendo, sem subserviência é claro, os limites impostos. Transversal do Tempo foi apresentado sob forte clima de tensão:
Eu morro de medo. Faço todos os espetáculos me borrando de medo todos os dias. Faço, mas com medo todos os dias. Faço, mas com medo. E se me mandar parar eu paro, porque tenho medo.
Um comentário:
Muito bom, Daniela!
Belo trabalho de pesquisa, com valiosas informações e "pareceres" importantes.
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