quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Dnar Rocha: a pintura com sofrimento


Resolvi dia desses mexer nos meus guardados, a arrumar minha estante, abarrotada de livros e papéis. Demorei a constatar que tenho tendência ao acúmulo: guardo cartões postais de amigos, cartas, matérias de jornais que acho importantes, programas de shows, folderes de exposições de arte e fotos que não acabam mais.


Vamos construindo ao longo da vida um arquivo de vivências. Releio a frase, com ar de déja vu, e na verdade constato: vamos mesmo é amontoando com o tempo um cabedal de ocorrências que nos (de)formam. Nos fragmentos de palavras e imagens transcorrem os estilhaços da memória e quando recolhemos, selecionamos e organizamos essas partículas, estamos de certa maneira procurando uma saída do caos.


Sempre me chamaram atenção as pessoas que fazem coleções. Quando criança era moda colecionar papéis de carta com minhas colegas da escola. Comprava blocos lindos de papéis de carta perfumados para trocar na hora do recreio. Já vi coleções de latinhas de cerveja, chaveiros, moedas, selos, cartões de telefone, revistinhas em quadrinhos, canetas, figurinhas, batons, relógios, corujas, óculos e cds. Perguntei a alguns colecionadores o que os incitava a colecionar, um deles me falou que o maior prazer é mostrar a coleção para as pessoas.


Entre tantos papéis amarelados e envelhecidos dispersos na estante encontrei algo bem raro: uma entrevista de oito páginas que fiz há dez anos aqui em Juiz de Fora com meu amigo, o artista plástico Dnar Rocha, morto ano retrasado. Não por acaso as folhas estavam guardadas dentro do livro do pintor italiano Morandi, uma das maiores influências de Dnar.


Foi um bate-papo descontraído, que aconteceu na casa do pintor, lá no alto da rua Passarela. Levei comigo apenas um gravador, embora tenha lamentado muito a ausência de uma filmadora que registraria em som, cores e formas nosso encontro. A casa de Dnar era o retrato de sua simplicidade: no quarto um armário e uma cama, na pequenina sala um sofá antigo, uma mesinha redonda com muitas tintas e papéis espalhados e, bem encostada no canto da parede, uma estante meio desequilibrada cheia de livros, um aparelho de som e um violão.


Dnar adorava música, costumava me dizer que na próxima encarnação queria vir músico. Conectado com tudo, comentava sobre os cantores e cantoras do momento e sempre tecia sua crítica mordaz. Sugeriu-me que fizesse uma releitura das composições gravadas pelos reis da voz, Francisco Alves e Orlando Silva. Recordo-me que eu cantava e tocava “Boa noite amor” enquanto ele ia contando detalhes da carreira de Francisco Alves: “Boa noite amor/ Meu grande amor/ Contigo eu sonharei/ E a minha dor esquecerei/ se eu souber que o sonho teu/ foi o mesmo sonho meu”.


Ele vivia intensamente o presente e seus olhos muito vivos percorriam tempos e espaços. Mesmo tendo lido “Cartas a um jovem poeta”, de Rilke, foi somente com Dnar, artista de alma plena e pura, que consegui entender o verdadeiro sentido da vocação de um artista: “Já tentei abandonar a pintura várias vezes, mas a pintura me persegue. Agora, por exemplo, já estou desenhando você na cabeça, seus cabelos, a cor dos seus olhos, a sua blusa. Pra dizer a verdade eu não queria pintar, eu vou à pintura com sofrimento”.


A pauta da entrevista era um de seus quadros, que se encontrava em exposição no Museu Mariano Procópio. Optamos por deixar a conversa rolar sem freios enquanto eu ia pontuando com algumas questões. Dnar mostrou-me então seus trabalhos mais recentes. Havia muito amarelo na tela inacabada sobre o cavalete, e abrimos um parêntese para Van Gogh e seus girassóis.


Lancei a questão da natureza morta, um dos motivos predominantes em seus quadros, e ele concordou de imediato: “Essas coisas de mesa, comida, falam muito pra mim, têm muito a ver comigo. Eu sou pintor de natureza morta não por acaso, mas porque gosto muito disso. O momento que mais me comove no ser humano é quando ele está comendo. É nos restaurantes que vejo o ser humano em sua essência terra- a-terra.” Dnar comentou sobre os amigos pintores de sua geração, como Rui Merheb e Carlos Bracher. Numa mistura de emoção e saudosismo relembrou os tempos de juventude quando freqüentava a escola de artes Antônio Parreiras. Aos seus olhos ainda existia muita criatividade nos artistas, mas no geral as pessoas estavam ficando menos interessantes.


Recentemente, assisti comovida ao belo documentário “Dnar – Pelos caminhos da arte”, de Éveli Xavier, que consegue dar toda a dimensão do homem/artista Dnar Rocha. Éveli fez um filme sensível e emocionado com a presença de amigos de infância, parentes, artistas e admiradores. Ali Dnar conta sua própria história, enriquecida por tocantes depoimentos como o de Aída, sua segunda esposa, e o do amigo Waldyr Abzaid: “A gente sonhava transformar o mundo num grande abraço. Esse foi o grande sonho da nossa juventude. E nessa época o Dnar sempre despontava pela mansidão que ele tinha, por sua paz, tranqüilidade. O bem-querer que ele transmitia a todos nós, pela sua paciência, pela sua resistência, pela não-violência”.


Éveli leva à cena alguns personagens da infância de Dnar como o barbeiro e o maestro da banda de Tabuleiro. Todos falam sobre o talento nato do artista para o desenho e a pintura. Dnar conta de seu ofício com tamanha simplicidade que abafa o glamour dos deslumbrados com a “vida de artista”.


Ele não esconde a angústia permanente que o assola nos momentos de criação, o rigor com que constrói suas obras: “A minha relação com a pintura é muito complicada. Preferiria que não tivesse esse tipo de relação. Mas penso que é uma coisa, um carma. Acho que a pintura estava de certa forma na minha vida. Tenho uma relação difícil, rejeito os quadros, como um pai educa uma criança. Fico tentando torcer meus quadros, o destino das linhas, o comportamento das cores. Muito complicado.”.


O Dnar do filme de Éveli e aquele do encontro na tarde fria são os mesmos ­– profundos, intensos e simples. O que mais me impressionava nele era sua extrema generosidade e desprendimento. Dnar ia ao cerne da pessoa e da criação, sem máscaras. Simplificava mas agudizava a vida, com pinceladas fortes que deixou eternizadas – sua marca inconfundível.

Um comentário:

AHR disse...

Daniela, boa noite. Que postagem maravilhosa. Digna de uma coluna num desse jornais de domingo. Sou de São Paulo e amo as obra do Dnar, aqui em SP pouco divulgadas e portanto, pouco conhecidas. Se souberde alguma exposição dele aí em JF por favor me avise. Parabéns pelo blog e pela forma de pensar. Abraço, Alexandre Herculano Ribeiro (www.pelomelhordavida.blogspot.com)