sábado, 16 de outubro de 2010
Curtindo a gafieira de Cristovão Bastos
Fim de tarde no estúdio em Copacabana, o violonista João Lyra risonho e todo despojado chama: “- Vai maestro, passa a canção do Vinícius pra gravar”. Denso e compenetrado Cristovão Bastos se dirige ao piano enquanto aproveito para me sentar no sofá de frente para o vidro que nos separa, momento de sublime apreensão. Uma emoção indescritível me toma no instante em que o vejo-ouço tocar as primeiras notas, seus dedos deslizam delicados e precisos pelo piano extraindo o belo em sua essência mais pura. Um momento de delicadeza ímpar que me remete ao instante em que ouvi pela primeira vez Resposta ao Tempo na voz de Nana Caymmi.
Cristovão Bastos é música pura que ressoa por todos os poros, no toque minimalista e jobiniano de seu piano, na feitura dos arranjos elegantes, na sua fala repleta de nuances de sóis, bemóis e sustenidos. Qualquer frase que joga assim descompromissadamente traz no fundo um arranjo repleto de notas coloridas.
Tomei contato com a obra de Cristovão Bastos por meio da audição de suas composições em parceria com Paulinho da Viola, Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro e Chico Buarque. Sua música transcende gêneros e rótulos e traz uma marca de intensa brasilidade como explicita a belíssima Mandacarú Sertão do Caicó, que extrai o lirismo árido e quente de um Brasil de Glauber e Graciliano. A riqueza dos arranjos jamais suplanta a essência genuína de um artista que se apega aos pequenos detalhes, miudezas da vida que aos seus olhos e ouvidos se transformam em poesia.
O aprendizado construído de forma quase autodidata incorpora o percurso pelos bares e teatros da vida acompanhando conjuntos, orquestras e cantores. Vencedor de inúmeros prêmios entre eles oito prêmios Sharp, compôs trilhas inesquecíveis para o cinema como as dos filmes Mauá, Zuzu Angel e O imperador e o rei. As composições de Cristovão trazem sempre sua assinatura elegante em que o piano desponta econômico, preciso e sutilmente delicado.
Chegou-me ontem enviado pelo maestro o excelente Curtindo a gafieira que reúne o repertório que Cristovão desfilou pelas gafieiras do Rio de Janeiro. Cheio de swing e certa sensualidade envolvente que nos convida a dançar, ou ficar quietinho num canto recolhido ao lado de um par. Sérgio Cabral enaltece: “Cristovão Bastos, um grande compositor e um dos nossos melhores arranjadores musicais, evitou, neste trabalho, ceder à vaidade nada rara em músicos do primeiro time de pretender um brilho maior do que aquele que o próprio gênero sugere. Em outras palavras, ele não quis “renovar” a música de gafieira. Foi assim que, em vez de competir com o gênero, contemplou-o como a melhor gravação já feita, em todos os tempos, da música de gafieira.”
Curtindo a gafieira é música em estado de enamoramento, “Vamos dançar/ou ficar abraçados/sei lá”, como me aquece a memória os versos do meu saudoso amigo João Medeiros, que neste momento ouviria esse som em plena ebulição lírica. Ouço Partido da canja, e por essas associações inexplicáveis despontam os ecos da tocante trilha de Gato Barbieri para O último tango em Paris, de Bertolluci. A música tem essa propriedade sensorial, e bom mesmo é nos deixar levar por seus meandros e recônditos. Curtindo a gafieira é sobretudo um som que se faz com a alegria e o prazer de tocar, cujo desempenho de músicos do porte de Jorge Helder, João Lyra e Dirceu Leite dão grandiosidade e estilo. Nas gafieiras sobrevive um pacto em que ninguém pode recusar se for chamado para dançar, nesse caso as composições de Cristovão são mais do que convidativas - envolventes, instigantes e acolhedoras. O piano jobiniano dialoga com o sax, que dialoga com a bateria, que dialoga com a guitarra, que dialoga com o contrabaixo, que dialoga com o bongô e que resulta num verdadeiro casamento musical. Som que transforma qualquer um num bom pé de valsa, vamos dançar?
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10 comentários:
Ótimo texto, querida! Beijos.
Daniela,
parabéns pela crônica, muito bem escrita!
É importante dar espaço através do seu blog para divulgação de trabalhos como o apresentado por Cristóvão Bastos.
Beijos.
Como já postei no facebook, adorei! O texto é lindo...sutilezas, delicadezas e sabedoria!
Beijos
Lúcia Menezes
Como já postei no facebook, adorei! O texto é lindo...sutilezas, delicadezas e sabedoria!
Beijos
Lúcia Menezes
Dani,
um texto sensível e delicado como a música de Cristovão. Vale a pena ler e ouvir coisas bonitas.
Beijos
Juliana Esperança
Que coisa linda Dani!!! Parabéns!!!
Linda Dani! Acabo de ler sua crônica, estou extática com tamanha beleza! A maneira como você esplana sobre a obra de Cristovão Bastos, suas palavras têm o poder da credibilidade, quando você fala: " Composições convidativas, envolventes, instigantes e acolhedoras", você instiga o leitor a querer ouvir a música conhecer a obra. Quando você diz: " Vejo-ouço tocar as primeiras notas, seus dedos deslizam delicados e precisos pelo piano extraindo o belo em sua essência mais pura. Um momento de delicadeza impar..." Dani! Suas palavras contêm música!!!!
E mais adiante, " Cristovão Bastos é música pura que ressoa por todos os poros (...) na feitura dos arranjos elegantes, na sua fala repleta de nuances de sóis, bemóis e sustenidos.Qualquer frase que joga assim descompromissadamente traz no fundo um arranjo repleto de notas coloridas." Linda Dani! Seus argumentos são tão fortes com palavras tão suaves!!!
"...o piano desponta econômico, preciso e sutilmente delicado"
Querida poeta!!! Concluo meu comentário te parabenizando por mais uma crônica tão bem escrita e inteligênte! Salve... salve os poetas... a alegria está no ar... na lua... nas estrelas... nas flores... no ponto final. Nas esclamações!!! Nas reticencias...
Poeta! Suas palavras exalam poesia!!!
" Cheio de swing e certa sensualidade envolvente que nos convida a dançar, ou ficar quietinho num conto recolhido ao lado de um par."
Linda!!! Vc é maravilhosa!!!!!!
Com o seu texto eu me permiti viajar e estar ali na gravação. Seu texto é muito bom. Quase ouvi a música. Aliás...que vontade!!!
Belo texto poético carregado de lirismo pra se falar de boa música! bj
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