quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Fragmentos amorosos de Rosa Emília




Para o meu amor
com gosto de sol sustenido



As relações de amor têm suas diversas facetas e desdobramentos, me pego aqui neste momento pensando por meio das reflexões amorosas reunidas em Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes. Do encantamento idílico, passando pela euforia, exuberância e exasperação, Barthes fala de amores próximos e distantes, milenares e atuais, vivências que certamente cabem no meu arquivo confidencial. O escritor francês configura o quadro da solidão amorosa enaltecida de um brilho fosco: “saber que não escrevemos para o outro, saber que essas coisas jamais me farão amado de quem amo, saber que a escrita não compensa nada, não sublima nada, que ela está precisamente ali onde você não está – é o começo da escrita”.

Por falar em arquivo, acabei de retirar dos meus guardados o tão belo CD “Álbum de Retratos” de Rosa Emília, que recebi da própria em meados de março do ano passado. Falar sobre Rosa Emília e Cacaso é transportar-me para um universo de profundo lirismo, musicalidade e delicadeza. Tomei contato primeiro com as letras de Cacaso, em seguida mergulhei em seus poemas repletos de poesia e de certo tom de coloquialidade : “Meu verso é profundamente romântico/Choram cavaquinhos luares se derramam e vai/ Por aí longa sombra de rumores ciganos/Ai que saudade que tenho de meus verdes anos!”. Tanto vivenciei Cacaso que acabei transformando minha paixão em dissertação de mestrado em 2004, e num cd inteiramente dedicado a suas letras em parceria com a compositora Sueli Costa. Respirei, li, cantei e absorvi Cacaso por uns bons anos dessa minha pequena-longa estrada da vida.

Álbum de Retratos é um trabalho que exala emoção da primeira a última faixa, Rosa Emília selecionou composições pouco difundidas pelo grande público, mas que saltam aos ouvidos e demais sentidos por sua profunda beleza. Parcerias com Novelli, Sueli Costa, Nelson Angelo, Joyce, Sérgio Santos e Olivia Bygton ganham nova estatura com a voz suave e simultaneamente personalíssima de Rosa, acompanhada por alguns dos respectivos parceiros de Cacaso.

Álbum de retratos é uma ode aos encontros, estes que trazem legados de sonhos e deslumbramentos. Desponta suave e com gosto docesalgado a poética das águas de um mineiro que se emaranhou pelas ondas densas e perturbadoras do amor inundado de entrega, toca fundo a canção título que traz a voz de Rosa acompanhada pelo piano jobiniano de Sueli Costa: “Lá vou eu perseguir os seus passos/Lá vou eu/Insistir em seus fracassos/Lá vou eu/Machucado e iludido/Ser de novo envolvido/Pela mesma solidão”.

Perfume de cebola, composição em parceria com Filó Machado traz toda a leveza bem humorada de Cacaso cujo frescor dos versos emana a atmosfera de um eu poético ligado as coisas simples da vida, como inscrevem as palavras: “Quando o beijo é sincero/Tem perfume de cebola/Escutei da pomba gira/O que ouvi da pomba rola/Meu amor foi me deixar/Pela questão mais tola”. O violão sincopado e cheio se swing de Filó Machado se emaranha com a voz plena de eros de Rosa Emília, “Feito flecha, feito fogo, feito raio,/sabor de fruta madura/Amor de mulher madura”. Cacaso entendia as miudezas da vida, sobretudo as mulheres.

Fazendeiro do mar, poema que dialoga com o antológico Fazendeiro do ar de Drummond consiste no momento sublime do disco onde a mineiridade de Cacaso se funde ao deslumbramento pela poética das águas. Mar instável e perturbador como quer também a belíssima “Amor Amor”: “Quando o amor tem mais perigo /É quando ele é sincero”. Ouvi “Fazendeiro do mar” inúmeras vezes e sem conter as lágrimas, apreciando cada nuance do violão expressivo de Sérgio Santos que reproduz a sugestão do ondular das ondas entrevistas pelo olhar de Cacaso. Rosa Emília canta viceralmente, não perde uma nota - densa, emocionada e precisa essa mulher mergulha tão fundo que faz doer: “Mineiro tem mar de cio/Mineiro tem mar de fonte/Mineiro tem mar de rio/Mineiro tem mar de monte/Mar de mineiro é horizonte”.

O humor que retoma o ideário poético da geração mimeógrafo se realiza com maestria na parceria com Nelson Angelo em Deixa o barraco rolar. Nelson foi um dos parceiros mais assíduos de Cacaso, seus arranjos permeados de lirismo e sofisticação estabeleceram um equilíbrio perfeito com a poesia de Cacaso. Em Mar de mineiro, cd de Nelson Ângelo exclusivamente dedicado a parceria com Cacaso salta aos olhos o doce bilhetinho do poeta: “Nérsim/Você é uma referência pra mim/Como é Vila Lobos, como é Tom Jobim:/se eu fosse músico gostaria de compor como você:/por agora e pelo sempre”.

Nas demais canções como Eu te amo, Lua de Vintém, Dona Doninha, Dito e feito e Eu te amo também subsiste a atmosfera romântica e envolvente em que os versos sugerem outras modalidades de encontros amorosos. O resgate delicado do legado da infância retoma novamente o diálogo com a poética drummoniana nos versos sensíveis de Dona Doninha: “Meu avô chamava Juca/Minha avó D. Doninha/Ele dava pra sinuca/Ela dava pra santinha”. Poesia pura em cada entoar de uma nota, em cada soar de uma sílaba. Minha vontade é ir cantando junto perseguindo cada meandro da poesia sutil e grandiosa de Cacaso. Vou pensando nos amores, no meu amor com gosto de sol sustenido.

Um comentário:

Rosa Emilia disse...

Daniela, obrigada por essa dupla homenagem- Obrigada por mim e pelo Cacaso. Deus abençoe a sua delicadeza. É uma honra receber uma crítica de uma artista inteligente e sensível como você.
Beijos, Rosa