terça-feira, 30 de julho de 2013


Imunização irracional



Acabo de ler a derradeira página da biografia de Tim Maia escrita por Nelson Motta. Um relato sincero, vigoroso e muito bem humorado sobre as peripécias que envolveram a vida e a arte do dono de uma das mais belas vozes da música popular brasileira. Tim Maia foi um artista peso pesado em várias instâncias, não exclusivamente por sua forma física avantajada que chegou a acumular 130 kg. Tim era grandioso, excessivo, hiperbólico em sua fome descomunal que abrangia o apetite incontrolável por guloseimas, drogas, garotas de programa, festas e tudo o que lhe desencaminhasse rumo a uma postura “gauche” diante de tudo o que se relacionasse a regras e leis.


“Vale, vale tudo/ Vale, vale tudo/vale o que vier/Vale o que quiser/ Só não vale/dançar homem com homem/Nem mulher com mulher/o resto vale”. Tim Maia era uma espécie de bufão hedonista que jamais fez nenhuma concessão aos seus desejos e crendices. Rei da alegria, da ironia e do despudor conseguiu como poucos artistas atingir todas as classes sociais sem ceder um milímetro nem do seu gênio “difícil”, nem de seu gordo talento musical.

Nasceu no Rio de Janeiro na Tijuca em 1942, e aos dezesseis anos seguiu numa caravana de padres num vôo rumo os Estados Unidos sonhando em se dar bem na terra do Tio Sam. Chegou a Nova York com apenas 12 dólares no bolso, sem falar uma palavra em inglês e sem saber sequer em que lugar poderia se hospedar. Tim tornou-se a princípio uma espécie de Iracema na America, conforme descreve belamente Chico Buarque na canção que alegoriza o drama de inúmeros imigrantes “Iracema voou/ Para a América/Leva roupa de lã/E anda lépida/Vê um filme de quando em vez/Não domina o idioma inglês/Lava chão numa casa de chá....” 


Nos Estados Unidos aprimorou seu potencial rítmico e assimilou com facilidade gírias e comportamentos da camada periférica composta em sua maior parte por negros moradores do Harlem. A influência do swing norte americano se faz bastante evidente a meu ver em “Tim Maia racional”, um de seus melhores trabalhos.   Lançado em 1975, este disco ficou marcado pela devoção do artista à cultura racional, uma seita filosófico-religiosa que consistia na redenção por meio do equilíbrio com as origens extraterrenas. A conversão a seita implicou uma mudança significativa na vida conturbada de Tim Maia, que por um período largou as drogas, bebidas e comidas gordurosas em prol da salvação pessoal. É notável neste álbum a qualidade vocal do cantor, um canto límpido que permite destacar a beleza e singularidade de seu timbre, que transita com total desenvoltura entre arranjos repletos de ondulações rítmicas. Esses arranjos soam até hoje atuais e inventivos, embora as letras meio ingênuas sirvam quase que exclusivamente como alicerce das músicas, sem adquirirem nenhuma contundência temática de cunho social ou lírico. 

Com uma anárquica mistura de audácia, coragem e inconsequência Tim Maia conduziu sua vida e carreira conforme seus próprios desejos. Pagou certamente um preço alto pelo uso abusivo de álcool e drogas e por suas atitudes iconoclastas. Faltou a inúmeros shows deixando produtores e diretores aflitos, sem nenhum retorno: “retorno, mais retorno, mais agudo, mais grave”. Inverteu e subverteu ordens hierárquicas, como no dia em que numa estréia num grande teatro distribuiu vários ingressos para mendigos, faxineiras e porteiros, deixando a elite compartilhar as primeiras filas desfrutando junto o “perfume da miséria”. 


Ouvindo sua impecável gravação de “A bela e a fera” para o disco “O grande circo místico”, que reúne a parceria de Chico Buarque e Edu Lobo realizada para um espetáculo de ballet, penso o quanto Tim Maia era de fato essa doce-ácida-engraçada, gorda e inofensiva fera:   “Recebe o teu poeta oh bela/ abre teu coração/ abre teu coração/
  ou eu arrombo a janela”.