Alguns nomes femininos foram agraciados pelos compositores brasileiros. Ana Luiza, Luiza, Marina, Doralice, Cristina, Maria, Maria Luiza, Rita, Beatriz, Bárbara, Iracema, Ligia, Lia, Madalena, Sandra, Isabela, Dora, Gabriela, Irene, Renata Maria, Carolina, Geni e tantos mais compõem o imaginário do cancioneiro nacional. Tom Jobim, Chico Buarque e Dorival Caymmi são mestres no lirismo que se constrói em torno de nomes de mulheres, a canção Ângela do maestro soberano é uma criação de sublime beleza que traz a figura feminina como alvo de contemplação epifânica: “Ângela/ Porque tão triste assim/ Agora/E tudo quanto existe chora/Teu rosto na janela/Daquele avião/ Lá embaixo a terra é um mapa/Que agora uma nuvem tapa/Não tentes evitar a dor...”.
Vou separando meus antigos encartes que acompanham uma sequência não muito extensa de vinis da cantora e compositora Angela Rô Rô e penso sobre o quanto a música de Tom lhe serviria como epígrafe: “A face singular de Ângela/Enquanto nos surpreende o amor/ Oh Ângela”. Abro um dos encartes em capa branca do disco “Nosso amor ao armagedon ao vivo”, com destaque para o desenho dos olhos (oceanos não pacíficos) acompanhados pelos lábios bem abertos, que aludem a um coração rosado. Esse disco me acompanha há quase duas décadas, impecável no repertório fino trato que abrange Cole Porter, Gershwin, Chico Buarque, João Donato, Jacques Brel, além de composições de Ângela com parceiros como Ana Terra, Antônio Adolfo e João Bandeira. Seu timbre de um colorido único, que tende a expressividade de notas mais graves traz o auxílio de um brilho caloroso na emissão de cada verso. Ângela imprime sua assinatura marcada por uma compreensão plena de cada filigrana da melodia e da palavra. Ela é uma artista que se entrega visceralmente em cada interpretação e emociona muito, muito mesmo.
Seu primeiro LP lançado em 1979 mostra o quão madura já se encontrava Ângela como compositora e cantora. “Gota de sangue” de sua autoria é uma música de considerável magnitude que transcende os limites do tempo. Recordo-me neste instante de Caio Fernando Abreu, que na abertura de seu conto “Os sobreviventes”, do antológico “Morangos Mofados” escreve: “Para ler ao som de Angela Rô Rô”. Certamente Caio com sua argúcia já guiava o leitor sonoramente para um universo rico e complexo de emoções que se fundiam em entrelaçamentos de dores, amores, encantos, frustações, delírios e deslumbramentos. Talvez Caio por uma fração de segundos mencionasse Ângela como uma alma irmã, e mano Caetano bem entende disso: “Oh, doce irmã, o que você quer mais/Eu já arranhei minha garganta toda atrás de alguma paz/Agora nada de machado e sândalo/Eu já estou sã da loucura que havia em sermos nós/Também sou fã da lua sobre o mar/Todas as coisas lindas dessa vida eu sempre soube amar/Não quero quebrar os bares como um vândalo/Você que traz o escândalo irmã luz”.
Ângela mistura a elegância de um legado que traz a força poética de Jacques Brel em “Ne me quitte pas” e de Cole Porter em sua inesquecível “Night and day”, canção esta que lhe trouxe nos recônditos alguma inspiração em “Amor meu grande amor”. Tive a honra de entrevista-la no ano passado na ocasião do lançamento de seu DVD “Feliz da vida”, vibrante e em pleno ritmo de criação, a singular Ângela me confessou que está entre seus planos a gravação de Standards do jazz : “Penso um dia gravar samba e jazz, que seria a mistura de grandes sambas com o melhor do Jazz das décadas de 40, 50 e 60.Ou um cd só com Jazz com repertório do Frank Sinatra, Billie Holiday, Sarah Vaughan, por aí...!
Embora Chico Buarque já tenha sido homenageado por quase todas as cantoras, vale ressaltar a categoria com que Ângela relê cada canção deste autor. “De todas as maneiras”, “Gota d’água”, “Vida” e “Bárbara” ganham o vigor visceral da assinatura Rô Rô. Em “Bárbara” a cantora alimenta a fogueira da paixão desmedida entre duas mulheres, num canto exacerbado de beleza: “ Vamos ceder enfim à tentação/Das nossas bocas cruas/E mergulhar no poço escuro de nós duas/ Vamos viver agonizando uma paixão vadia/Maravilhosa e transbordante, feito uma hemorragia”. O arranjo amalgama a pungência da voz de Ângela ao lirismo das cordas ao fundo envolvidas pela levada do acordeon, que retoma em seu desenho melódico a atmosfera de Piazzola. Tangos aliás parecem estar entre as predileções da artista, um gênero que ela explora com interpretações dramáticas e tocadas também por pitadas de ironia que propositalmente exploram certa performance “kitsch”, como um facho de luz difusa no abajour lilás.
João Donato é outro compositor “par” que se alinhou em sintonia plena com Rô Rô: “Amar é sofrer/ eu vou te dizer/ mas vou duvidar/ querendo ou não/ o meu coração/ já quer se entregar” . “Simples carinho” (João Donato e Abel Silva) tornou-se uma das mais bem sucedidas apropriações da cantora, como nas palavras do mestre Donato: “ela canta o “Simples carinho” assim como ninguém consegue, tento várias vezes mas desisto, só ela que sabe”.
Ângela seduz na medida em que flerta permanentemente com abismos e céus. O doce e o amargo perfuram não somente uma pequena “gota de sangue”, mas se espalham por camadas às vezes suaves de leveza poético-romântica como em “Cheirando a amor”, ou densas como no tão belo bolero “Mistério”: Minha boca que eu amo/ eu mordo até sangrar/ e meu corpo que é tão doce/ Se esfria e quer doer”.
Ouvi inúmeras e inúmeras vezes seu registro primoroso do poema “Ode descontínua para flauta e oboé” de Hilda Hilst, musicado por Zeca Baleiro. Ângela flutua como uma deusa dionisíaca entre um naipe de flautas, alinha-se em sua falange de demônios e querubins e enternece com sua rouquidão que frequenta abismos e céus. Delirantes formas de amar na face singular de Ângela.
segunda-feira, 1 de julho de 2013
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