quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O compositor me disse

“Nem o gato/ nem o rato/ nem Patativa do norte/ só o ato/ só a vida/ é mais ativa que a morte”. Esses versos de Capinam andam me tomando todo o tempo, sopram nos meus ouvidos com a recordação da voz suave de Nara em contraste com a levada pulsante e cheia de swing da música de Edu Lobo. Às vezes as músicas me agarram, ou eu que delas me aproprio tentando por meio de versos alheios me traduzir? A paisagem nublada de Vila Rica em pleno verão chuvoso é de um encantamento meio gris, como sopram os versos de Geraldo Carneiro musicados por Francis Hime: “A esfera mundo perde a atmosfera noir/E ganha um encantamento meio gris/E eu sinto a estranha sensação/De que serei feliz”. Ontem conclui a pintura em tom de vinho de uma das paredes de minha sala, talvez para contrastar dionisiacamente com minha alma que estranhamente se sufoca com a vista vasta de uma das janelas, que me aponta uma profusão de verdes que me trazem ao longe um pedacinho do Pico do Itacolomi.

“Que surpresa/beleza/luz acesa/certeza/que saudade/verdade/já chegou/então vem cá”, os versos de Caetano que sintetizam um lirismo conciso com a música de Donato, são apenas uma tentativa de fixação no instante. Ando vagando demais em pensamento e preciso fazer as pazes com meu pinho tão sozinho ao lado da janela que me dá a vista para a vastidão verde. Dia desses ao telefone com Cristovão Bastos, meu mestre absoluto do som me dizia: “Toque menininha, que a vibração da música vai te tocando e você se sintoniza com outros sons e outros sons, que vão muito além das montanhas de Vila Rica”. Como fui educada desde menina a fazer as lições de casa, obedeci, mas com muita dificuldade a receita meio mágica me confidenciada por Cristovão.

No primeiro dia apenas uma brincadeira com acordes, tentando resgatar harmonias meio perdidas na memória. No segundo uma vontade de tocar algo que me trouxesse a tal expressão do inexpressivo, será que me faço entender? Gilberto Gil me aponta sua receita de compositor “O compositor me disse que eu cantasse distraidamente essa canção/E que eu cantasse como se o vento soprasse pela boca/Vindo do pulmão/ E que eu ficasse ao lado pra escutar o vento jogando as palavras pelo ar/ O compositor me disse que eu cantasse ligada no vento/Sem ligar/Pras coisas que ele quis dizer/Que eu não pensasse em mim nem em você/Que eu cantasse distraidamente como bate o coração”. Dizem que Gil a compôs especialmente para Elis Regina, uma espécie de recado-receita que sugeria talvez um mais leve cantar ao furacão Elis, que a entendeu como um exercício de contenção. Há muitos embates entre o cantor e o compositor, ai daqueles cantores que como eu passam anos e anos tentando um encontro pleno com a obra de um criador. Cacaso e Sueli Costa me custaram muitas audições, uma dissertação de mestrado, alguns textos esparsos e finalmente a coragem de cantá-los. Para que eu chegasse a cantar ligada no vento sem ligar, ascendi antes mil turbinas e confesso que entrei no estúdio com medo de titubear em “Amor amor”: “Quando o amor tem mais perigo é quando ele é sincero”. Quantas vezes paralisada me fixava sobre a visão dos dedos do pianista Márcio Hallack, literalmente com medo da imensidão da música. “A voz de alguém que canta/a voz de um certo alguém/ que canta como que pra ninguém”. Coloquei a voz em “Labaredas” de Sueli e Cacaso num sábado de fim de verão radiante de sol, e tentava loucamente associar sua quentura a chama da fogueira sugerida pela canção. Ah os mistérios da música... Recordo-me que logo após, abri rapidamente a porta do “estúdio aquário” e pedi ao Sérgio Lima Netto que me deixasse ouvir o resultado. Deitada sobre o chão de cimento logo na entrada do estúdio, fechei os olhos e fui tateando minha música no vento, ligando muito, é claro. Uma atitude sádica? “Louca me chamam/se sou louca/louca de amor serei”.

E vou pegando meu pinho com a tentativa de introduzir a doçura dos versos de Cartola “Ah essas cordas de aço/esse minúsculo braço/do violão que os meus dedos acariciam”. Toco sem parar um dos versos de “Lágrimas negras”, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina: “Belezas são coisas acesas por dentro/Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento/Lágrimas negras, caem, saem, doem”. Uma licença poética ao meu poeta solidário em acuada mineiridade “Eu não devia te dizer/mas essa lua/mas esse conhaque/botam a gente comovido como o diabo”. Ando aguda demais.




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