sábado, 30 de julho de 2011
Entrevista com o compositor Márcio Itaboray
Daniela Aragão: Como começou a música em sua vida?
Márcio Itaboray: Eu não consigo saber isso porque a música acontecia dentro da minha casa, meu pai era músico de tocar no rádio, compositor. Nasci em Juiz de Fora e me mudei muito cedo para São João, lugar em que meu pai costumava levar os artistas. Ele levava lá a Angela Maria no auge, Gregório Barros, Jackson do Pandeiro e a Almira, todos acompanhados por ele. Eu era muito novinho, mas me lembro que a música acontecia por lá direto. Meu avô era músico e farmacêutico prático, ele montava uma banda numa cidade e uma farmácia, teve onze filhos sendo que nenhum nasceu na mesma cidade. Todas essas cidades que ele percorria ganharam uma farmácia e uma banda montados por ele, ele tocou na banda do Ari Barroso em Ubá. Então a música na minha vida é isso e as pessoas costumam falar que pelo fato de eu ser médico a música acontece na minha vida como válvula de escape, não é nada disso. Se não fosse a música eu não existiria, não é válvula de escape, é um prazer. Eu gosto muito de uma frase dita pelo Yamandú Costa, várias vezes ele chegou no lugar de fazer o concerto e na hora do show percebia que tinha esquecido o instrumento. Daí perguntavam a ele: “- você não tem cabeça não?” E ele respondia: “- Para mim faz parte do meu corpo”. Então a música para mim é isso aí. Meu pai por ser também representante comercial viajava muito e eu lhe fazia companhia, via ele compor no volante muitas vezes e consequentemente comecei a compor também desde novinho. Fiz música com sete, oito anos, música de boemia que era o estilo que meu pai fazia. Ele cantava essas músicas para mim e me lembro disso, uma que se chamava Triste Boêmio: -Sou um triste boêmio, vivo nas noites de sereno esperando meu amor/ há dias que ela não vem . Essa foi a primeira letra que fiz com oito anos, então a música em minha vida é junto com absolutamente tudo, para mim ela é tudo, eu não fui músico profissional, não quis ser, músico instrumentista eu não seria, eu queria ser compositor, queria ser não, o que sou é compositor, se as músicas são boas ou ruins cabe se julgar, mas eu sou compositor. Para mim a coisa com música é compor e tem o fato de eu adorar música, não vivo sem música, Nietzche tem uma frase que diz que a vida sem música seria um erro e para mim a música é exatamente isso, um sentido para minha vida.
Daniela Aragão: Você se mostrou desde pequeno tocado pela palavra, pelos versos.
Márcio Itaboray: Sim, claro. Meu pai cantava uma música que dizia assim: “Quase que eu disse agora o nome dessa mulher”, não me lembro bem dos versos, mas o cara vem falando de uma mulher que ele na verdade não quer dizer o nome, a história de uma mulher que deu uma sacaneada no cara e que ele coloca no final da canção assim : “da magoa que me de devora quase que eu disse agora o nome dessa mulher”. Eu era pequeno e perguntei ao meu pai o que era aquilo e ele falou que só tinha uma explicação para aquilo, o fato da mulher se chamar Débora, da magoa que me devora quase que eu disse agora o nome dessa mulher. Isso vinha na cabeça dele. Daí eu provocava o meu pai com isso e eu tinha uns sete anos.
Daniela Aragão: A importância da palavra para você é muito explícita tanto que você não dá ênfase ao som de imediato, mas a palavra musicada, ou melhor, a palavra cantada.
Márcio Itaboray: Ah sim, a palavra musicada, a palavra cantada, por isso que acabei te contando sobre essa música em que me chamava atenção a palavra “devora”, que poderia ser talvez uma intenção camuflada do compositor em dizer o nome da amada Débora, foneticamente devora não é Debora até porque as sílabas tônicas são outras, mas é interessante.
Daniela Aragão: Suas composições revelam uma densidade existencial, nunca ficam na superficialidade. Você também se une a parceiros que possuem essa marca da carga existencial densa, como a Sueli Costa por exemplo. Certamente o legado de seu pai resultou em influência até no substrato de suas letras,pois você não abandona de certa maneira a tradição da canção “dó de peito”, os grandes dramas que assolam pequenos recortes do cotidiano. Esse fascínio que você alimenta também por histórias de vida.
Márcio Itaboray: É isso mesmo, me lembro que essas músicas que ouvia na infância eram com meu pai mesmo, o rádio pegava menos e como não tínhamos televisão meu pai tocava todas essas músicas daquela época e tinham músicas extremamente tristes que davam vontade de chorar e eu chorava. Ele cantava de uma forma tão forte, me lembro dele cantando uma música que o Orlando Silva cantava : Nosso senhor me perdoa. Essa música era de uma tristeza, as músicas então no geral eram muito tristes, vinham de dentro e os caras sofriam muito. Fico imaginando que como quase todos aqueles músicos eram boêmios e não tinham uma estrutura de vida muito boa, eram rapidamente trocados pelas mulheres. Então é só música de abandono, fiz a música Lupicínio que foi gravada no meu disco pela Sueli Costa exatamente por isso, na época que a compus eu era namorado de uma moça e percebi que não estava tão feliz naquela relação e o Lupicínio já falava “ah esse moços ah se soubessem o que eu sei”, tanto que a Sueli fez a introdução da canção em menor, pois com Lupicínio era em maior, ela joga no ar “Esses moços”. Vinicius de Moraes já veio com uma postura diferente em relação a Lupicínio, o poeta dizia que é melhor sofrer junto que viver sozinho. Daí falei que deveria ter ouvido muito mais Lupicínio e não Vinicius. Então é assim, como diz o Cacaso com Edu: “- Só que no amor quem perde quase sempre ganha veja só que coisa estranha saia dessa se puder”. Essa densidade acho que vem dessa formação que adquiri ouvindo as músicas com meu pai, era só porrada, não tinha meio termo não, como Roberto Carlos: - daqui pra frente tudo vai ser diferente. Não tinha nada disso não, se você não gosta de mim eu vou morrer. Meu pai cantava assim: “- Se Deus um dia olhasse a terra e visse o meu estado na certa compreenderia o meu viver desesperado, é doloroso mas infelizmente é a verdade”. Então o cara cantava a alma dele, tem uma música que o Milton Nascimento gravou, Tito Made e Agostinho dos Santos também e que dizia: - a noite está tão fria chove lá fora e a saudade sua. As coisas eram sofridas, então acho que para mim não faz sentido fazer uma música de brincadeirinha, mas eu faço muito jingle. Os jingles da prefeitura são quase todos meus, da Unimed. Agora uma música minha não tem como ser superficial. Como falo numa música: quero ter pouca saudade, quero ter muita alegria. Eu quero, mas não consigo. É difícil.
Daniela Aragão: As vezes uma nostalgia, um desejo, mas sem ser puramente melancólico.
Márcio Itaboray: Eu acho que o que me move é uma angústia permanente, vi recentemente um filme chamado “A falta que nos move”, sensacional. Brinco que quando faço meus projetos para o ano seguinte, são todos iguais a mais de dez anos e não projetos de grana, projetos de como lidar comigo mesmo. Um é que não consigo tirar férias de mim, o álcool diário para poder tratar da angústia permanente. A medicina me fez muito bem, pois eu lido com isso, a dor do outro. Tem muita coisa que já compus inspirada nessa minha vivência como médico, todo mundo que te procura na verdade quer é salvar a alma, não o corpo. Quando você não está doente você não pensa no seu corpo, mas pensa na sua alma o tempo todo. Você só sabe que tem dente quando dói ou quando está mastigando. A doença ameaça o seu eu, estou dizendo alma mas não sei qual a melhor expressão para falar, todo mundo tem medo de morrer na verdade por causa da alma. Se a pessoa quer enfeitar o corpo, quer na verdade enfeitar a aparência dele, que a alma seja mais apresentável.
Daniela Aragão: E essa característica da pulsação da “ânima” em suas composições aparece como falamos nas sua canções em parceria, como fica esse compartilhar com os parceiros?
Márcio Itaboray: Isso começou da seguinte forma, aos quatorze anos ganhei um festival no colégio João XXIII e nessa época conheci o Chico e o Bilinho Teixeira e chamei-os para tocar comigo no Festival da Cidade, que ganhamos com uma música minha. Em 72 montamos um grupo para tocar no Festival Intercolegial, nós ganhamos e o prêmio era participar do festival da cidade que era aquele grande festival, quando o Mamão fez “Tristeza pé no chão”. Nesse festival tinha o Guarabira, Maurício Maestro e tantos outros. Decidimos fazer um show nosso em 75 e foi o primeiro show de música popular do Pró Música, estimulei os parceiros a compor comigo que foram o Guto Gomes, Márcio Hallack e o Bilinho, por incrível que pareça eu fazia letra, comecei como letrista. Depois conheci o Mamão e o pessoal do Beco, eu era guitarrista do show do Mamão. Em 76 fiz um samba com o Mamão, em 77 ganhamos o show em Boa Esperança, começamos a fazer várias coisas. Comecei a sacar que o barato da parceria é primeiro pelo fato de que você divide, se for a solidão você divide com o seu parceiro. Fiz com Serjão também algumas músicas, essa parceria surgiu no momento em que a Pá foi embora. Depois me tornei também parceiro do Rodrigo Barbosa, Pestana e Gerrrô. Eu tenho até condições de fazer um disco sozinho em uns dois anos, mas não vejo a menor graça se eu não envolver um monte de gente, quando chamo os meus amigos que gostam de música e que estão em condições de fazer parte é muito bom. No dia do lançamento do meu livro Assuntos de vento tinha muito gente mesmo.
Daniela Aragão: Pois é, eu também estava lá (risos). Me recordo do Sérgio Ricardo, Milton Nascimento, Sueli Costa, Fernando Brant, Jaime Além..
Márcio Itaboray: Foi tudo feito meio artesanalmente, o dia do lançamento do meu cd no Bom Pastor foi um momento que reuniu todo mundo, vários cantores e músicos de ontem e de agora. Falando então na parceria acho que é isso, essa troca, o Zé Renato vem gravar na terça feira uma música que é minha com letra do Rodrigo Barbosa, agora numa música minha feita com o Márcio Hallack a Sueli virou parceira mudando o andamento, então se tornou uma tríade. É esse que é o grande barato, caso contrário não teria sentido, eu pagava um disco, vou trabalhando e concluo em dois anos, e aí? Tenho grandes parceiros, o Rodrigo por exemplo, posso confessar também que eles estão aprendendo comigo, pois sou um compositor que adoro letras que tenham uma densidade existencial, como você disse. O Chico Buarque quando brinca de mudar as rimas que poderiam ser chamadas de fracas, quando ele rima toca com vodka, essas preocupações meticulosas. Então ele diz que gosta de música que a primeira rime com a oitava, mas que a segunda rime com a sexta pois senão vai se perder em Brama, ama refrigerante e amante.
Daniela Aragão: A capacidade que você tem também de identificar a própria musicalidade inerente ao verso que te aparece de forma crua.
Márcio Itaboray:O Pestana fez um samba para o Flavinho da Juventude que é de uma beleza!
Daniela Aragão: Mas retomando a questão dessa irmandade que você faz questão de celebrar e proclamar, jamais posso me esquecer do momento em que gravei sua canção Tempo passado no cd Olhares Cruzados. Era uma noite fria de inverno e o estúdio fervia de gente, tanto entre os que participavam efetivamente do disco como técnico de som, fotógrafo, até os simplesmente amigos. A canção que eu e Márcio Hallack tínhamos a incumbência de gravar era de muito lirismo e conduzida num clima cheio de sutilezas que aparentemente não combinava com a atmosfera meio atribulada do estúdio. Eu e Márcio Hallack atacamos juntos e repetimos mais uns dois takes, quando fui ouvir já mixada e masterizada no cd fiquei comovida com o resultado pela carga de emoção e a limpidez, possivelmente um resultado dessa sua irmandade musical.
Márcio Itaboray: Reafirmo que o grande barato da parceria é dividir, mas com pessoas afins. Também não chamaria pessoas que não tem compreensão da minha música.
Daniela Aragão: Fale desse disco novo, é uma espécie de continuidade do Olhares Cruzados?
Márcio Itaboray: Ele é diferente, pois pensei que o Olhares Cruzados seria o único disco que eu iria fazer resultando então num songbook. Esse é um disco só de músicas recentes, só tem um contraponto que eu fiz com o Gerrô em 78, é um disco que tem uma cara e nasceu de uma idéia que surgiu de um acontecimento que vivi, eu estava com os meus filhos no carro e um amigo me convidou para visitar uma exposição de carros antigos e isso gerou uma conversa e tal e um de meus filhos de repente fala: “- Pô pai você coleciona o que ?”, fiquei pensando, pensando e na verdade coleciono coisas que são artigos impalpáveis, o disco se chama Artigos impalpáveis e iria se chamar Colecionador de artigos impalpáveis. Como é que eu vou colecionar a dor, o arrepio, a febre, a saudade, tudo impalpável. Colecionar coisas materiais é interessante, mas uma boa prova do valor das coleções imateriais é que você se liga muito mais as emoções imateriais, quando por exemplo se destrói uma casa que você morava vai ficar muito mais uma lembrança do lar que você morava do que da casa que foi destruída. O artigo impalpável é o que habita a minha vida, sobrevivo de artigos palpáveis mas eu vivo de artigos impalpáveis que são a matéria viva da minha existência.
Daniela Aragão:Em Olhares Cruzados é muito nítida a riqueza de suas músicas que se dá por meio desses vários olhares que se entrecruzam. A Rosana Brito por exemplo tem uma leitura única.
Márcio Itaboray: Neste novo disco terão outros convidados como o Zé Renato, Edinho Leão.
Daniela Aragão: Muito interessante a entrada do Edinho que é um cara do rock.
Márcio Itaboray: O Edinho me convidou para participar daquele evento que ele faz, a noite dos compositores e eu nunca fui e ele no entanto me mandou uma carta sobre o Olhares Cruzados que me emocionou, e ele é um cara do rock. Me recordo de um acontecimento em que eu e o Fernando Brant fizemos no museu ferroviário, consistiu num debate sobre a ditadura em setembro de 2009 e o Edinho foi lá. Tinha muita molecada nova e tal, daí o Fernando fala para tocar uma música e chamei o Edinho para cantar Feira Moderna comigo e ele ficou louco. Eu gostaria também que o Mamão participasse do meu disco, se ele tiver condições. Estamos no começo da gravação.
Daniela Aragão:Uma curiosidade, os interpretes estão escolhendo as músicas ou você distribui? A Sueli por exemplo escolheu a música?
Márcio Itaboray: A Sueli não escolhe nada (risos), o Chico Buarque falou que o Bituca manda nele e a Sueli falou que nesse ponto eu mando nela. Ela gravou uma música do meu pai com apenas quatro versos, gravou o Lupicínio que também era a cara dela. Essa atual também é a cara dela, ela fala: vou amar, vou sofrer, vou cantar, vou voltar e a cada vez que ela fala eu vou amar é de um jeito, vou sofrer de um jeito, vou sorrir e ela sorri e o sorriso da Sueli é um sorriso que não me lembro bem exatamente o verso da canção que traduz, mas um verso da própria música dela com o Abel Silva, Canção Brasileira deixa claro.
Daniela Aragão: E essa nova canção ela já conhecia?
Márcio Itaboray: Eu mandei para ela e falei que tinha dez dias para poder decorar e gravar. Lupicínio já foi diferente, ela chegou e eu mostrei a música no violão, seguimos para o estúdio e não teve ensaio. Eu e Sueli somos carne e unha, pois ela me conheceu muito novo, quando nos conhecemos ela já estava no Rio e a Bethãnia e a Nara já tinham gravado suas músicas. Ela me pegou lá no Beco e falou; ‘-Esse cara é doido”, eu estava tocando Milagre dos peixes que tinha acabado de sair, ela me pediu para tocar umas duas, três vezes e daí ficamos amigos.
Daniela Aragão: Mas voltando ao livro Assuntos de vento, você acha que ele mereceria uma continuidade?
Márcio Itaboray: Dá vontade de contar tudo o que aconteceu por causa do Assuntos de vento porque aconteceram tantas coisas depois do evento, seria um Assuntos do evento. Depois do livro gravei um disco inteiro com músicas do meu pai, fiz um show com Fernando Brant no Faisão Dourado no dia que o Brizola morreu, voltei a fazer samba enredo que eu não fazia. Então valeria registrar o que me proporcionou esse livro. Mas no fundo aquilo foi uma brincadeira que acabou virando coisa séria. O disco atual está me deixando muito animado, estou muito feliz por estar fazendo de novo.
Daniela Aragão: E o Gustavo Barbosa continua como produtor?
Márcio Itaboray: Sim, sem ele não tenho a menor chance de fazer esse disco. Eu acho que essa sua idéia de reunir depoimentos de músicos da cidade é brilhante, pois não se faz isso mais. Murilo Mendes falou que Juiz de Fora era um vale cercado de pianos por todos os lados e isso tem tudo a ver com esse potencial enorme que a cidade revela para a música. Acho que Juiz de Fora está vivendo um momento musical muito legal, tem muita gente fazendo muito mais coisa do que se fazia naquela época. A época que estou falando não é a época dos festivais, mas na minha geração eram poucas pessoas que faziam. Hoje você abre o jornal e encontra na agenda cultural uma diversidade de opções. Não conheço todo mundo, mas tem o Salim que desenvolve um trabalho muito legal no seu bar, o Thiago Miranda, Dudu Costa, enfim, eles estão fazendo. Mamão durante seis anos ficou fazendo shows permanentemente todas as quintas feiras, é coisa rara um compositor local vivendo de música. Atualmente tem vários instrumentistas na cidade com uma qualidade musical muito maior do que tínhamos. Existe um movimento mais intenso do que havia naquela época. Então a nossa música está bem.
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