terça-feira, 6 de julho de 2010

Todo amor que houver nessa vida


“ O tempo dá voltas e curvas/O tempo tem revoltas absurdas/ Ele é e não é ao mesmo tempo”, quando ouvi esta bela canção do Zé Miguel Wisnik passei um longo tempo pensando na delicadeza e profundidade contida nos versos preenchidos por uma melodia também suave e pontuada por sutis cortes, como o próprio movimento da vida. Ontem me deparei com um exemplar da revista Bravo inteiramente dedicado a Cazuza, vinte anos de sua partida. Não resisti e trouxe-o para casa. Com a capa em preto e branco e os escritos numa tonalidade de rosa, contemplei a imagem de um Cazuza ainda muito belo e vigoroso. Fui folheando vagarosamente a revista que traz imagens e textos diversos sobre a carreira do artista e também percorre uma diversidade de pessoas e acontecimentos que marcaram substancialmente os anos oitenta, período que envolveu a criação intensa e veloz de Cazuza.

Recordo-me que era uma tarde fria de julho quando recebi por um amigo a notícia de que Cazuza havia morrido. Embora já fosse esperada a sua partida num trem para as estrelas, engoli em seco a dor. Não fiz parte propriamente da geração do Cazuza, pois no início dos anos oitenta eu começava a ensaiar meus primeiros passos no mundo. Conheci o exagerado em Bete Balanço, filme de Lael Rodrigues responsável pela projeção nacional da canção homônima. Tudo me encantou em Bete Balanço, a voz meio rascante do intérprete, a letra e a levada repletas de sensualidade, e uma certa dose de humor escrachado que correspondia a personalidade desbundada de Cazuza: “Quem tem um sonho não dança/ Bete Balanço/Por favor/Me avise quando for embora”.

Bete Balanço foi um cartão de visitas que Cazuza abriu para mim. Desse momento em diante fiquei atenta as canções compostas por esse carioca que trazia no fundo de sua postura rebelde e inconformada um lirismo ora comovente, ora arrebatador. Sua alma de poeta bebeu na fonte de outros poetas transgressores como Kerouac e Guinsberg. Sua alma romântica mergulhou fundo na tradição da canção “dó de peito” de Dolores Duran e Cartola: “Um dia ainda chamo o Nelson Gonçalves para cantar uma música com o Barão. Se isso chocar algum roqueiro, é sinal que ele precisa se libertar desse trauma”. Dialogando com o legado bossanovista Cazuza compôs Faz parte do meu show: impactante, estranhamente bela sua imagem na TV, despido da postura de roqueiro, sentado num banquinho, rosto sereno, cabelos ralos e voz afinada e sem excessos. Faz parte do meu show foi uma das primeiras músicas que aprendi a tocar no violão, simples e bonita em sua concepção harmônica e na carga poética registrada nos versos. Me emociona cantar especialmente este trecho: “Vago na lua deserta das pedras do Arpoador/ Digo alô ao inimigo/Encontro um abrigo no peito do meu traidor”.

Outras canções de Cazuza foram se incorporando ao meu repertório, é sempre com renovada emoção que canto o compositor romântico de Preciso dizer que te amo, Mais feliz e Todo amor que houver nessa vida . Mais de vinte anos se passaram desde a primeira execução pública dessas músicas e elas ainda conservam certo frescor, não se desgastaram com o tempo. Guardei entre meus derradeiros vinis um exemplar de Burguesia, o último trabalho de Cazuza. Confesso que na época não lhe dei a atenção devida, achei-o muito baixo astral, quase inaudível. Ouvi umas três faixas e abandonei-o. Com o passar dos anos fui conhecendo o repertório de Burguesia por meio de outros intérpretes, a “poetriz” Elisa Lucinda numa performance pra lá de bem humorada cantou Manhatã: “Eu andando pela neve/ Em pleno Central Park/ Com as estrelas do cinema/ Faço cenas no metrô/ Com meu tênis All Star/ Deixando as louras loucas/ Com meu latin style/ Não sou mais Paraíba, Sou south American/ Aqui em Manhatã”. Adriana Calcanhotto estourou nas rádios com sua versão de Mulher sem razão, canção que traz estampada a assinatura Cazuza: “Caia na realidade, fada/Olha bem na minha cara/Me confessa que gostou/Do meu papo bom/ Do meu jeito são/ Do meu sarro, do meu som...”. Hoje entendo porque não fui capaz de receber e assimilar Burguesia aos quinze anos de idade – é explícita a dor que perpassa o álbum do começo ao fim. Acometido pela doença, muito frágil, pesando pouco mais de quarenta quilos, Cazuza tentava dar seu último grito abafado pelo sofrimento. Devido à extrema fragilidade gravou quase todas as faixas deitado numa cama, um fio de voz conduzia ainda com garra Quando eu estiver cantando, uma emocionante canção de despedida: “Porque eu só canto só/E o meu canto é a minha solidão/É a minha salvação//Porque o meu canto é o que me mantém vivo”.

O filme de Sandra Wernek em homenagem a Cazuza me tocou profundamente, a excelente atuação de Daniel Oliveira emociona. Ainda tenho bem nítidas na memória as cenas que mais me comoveram, ainda me inundo da água salgada do mar que embalou o último mergulho do menino, que no fundo era doce: “amor é o ridículo da vida. A gente procura nele uma pureza impossível, uma pureza que está sempre se pondo. A vida veio e me levou com ela. Sorte é se abandonar e aceitar essa vaga ideia de paraiso que nos persegue, bonita e breve, como borboletas que só vivem 24 horas. Morrer não dói”.

2 comentários:

Neuza Mª de O. Marsicano disse...

Oi Daniela,
Gostei muito da Crönica " Todp amor que houverf nessa vida" Saudades do Cazuza...
Parabéns!
Neuza

Ada Fraga disse...

Daniela fiquei emocionada com a sua crônica sobre Cazuza, ele era arte pura, alma de poeta e rasgava o verbo quando lhe era conveniente.

Inteligente, belo, escrachado!

Nota Mil pra você!

Beijos