sábado, 31 de julho de 2010

Entrevista com o pianista, compositor e arranjador Márcio Hallack


Daniela Aragão: Como apareceu a música em sua vida?

Márcio Hallack: Na verdade eu nem sei dizer como surgiu a música na minha vida, eu me lembro que um dia eu sentei no piano e comecei a tocar. Tinha um piano em minha casa, eu morava na Rua Marechal Deodoro 171, até o nome é engraçado (risos), apartamento dez. Tinha um piano lá, era muito comum ter piano em casa naquela época. Quando eu tinha cinco anos de idade uma tia minha chamada Bia, que mora em São Paulo, irmã da minha mãe, me levou para assistir ao filme Suplício de uma saudade. Acho que já cheguei a comentar isso com você uma vez. E isso é verdade, porque isso é um fato da minha infância que eu lembro mesmo. Me lembro de ter sentado e tocado o piano, mas a coisa começou no filme que tem a música “Love is many explendored thing” (cantarola). Eu pedi para ver mais um pouquinho o filme, a sessão seguinte eu queria ver. Ela perguntou: “- mas porque você quer ver de novo?” Eu disse que queria ouvir a música. Cheguei em casa com o dedinho e toquei a música, eu me lembro direitinho disso, da sala onde ficava, do piano, tudo. Daí para frente começou esse lance de estudar, estudar, não música, o colégio normal. Eu tinha uma ansiedade de tocar de qualquer maneira e ninguém me deixava estudar direito. Eu arrumava um professor aqui, ali, mas não dava certo. Aos dezoito anos resolvi assumir a música, fui atrás de professor particular para estudar música, para escrever como eram as notas, então eu comecei a estudar direto e deu um boom assim violento. Depois que nos mudamos para a rua Tiradentes eu ficava no meu quarto estudando para o vestibular e ao mesmo tempo debruçado horas no piano. Meu piano ficava dentro do meu quarto, em frente a minha cama. Eu levantava e tocava piano, antes de dormir tocava piano, parava de estudar e tocava piano. Minhas irmãs não aguentavam mais e falavam: “- Você não fica cansado sentado aí nessa cadeira com o piano..” E eu não parava.

Daniela: Então a partir dos dezoito anos você assumiu de fato a música, e partiu então para o conservatório?

Márcio: Fui para o conservatório estadual, no estadual fiz um pouco, não cheguei até o fim. Quando eu tinha dezenove ou vinte anos fui participar de um concurso de piano em Barbacena, mas era o conservatório brasileiro e eu tinha estudado no estadual França Americano.

Daniela: Você se sentiu um traidor (risos)

Márcio: Uma espécie de traidor, mas eu vi que era um concurso. Fui lá e toquei o Noturno de Chopin, Apanhei-te cavaquinho, do jeito que era mesmo, normal, rápido demais (gesticula) e toquei uma outra que foi Dança Negra, do Guarnieri. Guarnieri é um dos meus ídolos, maravilhoso. Grande Camargo Guarnieri. Ganhei primeiro lugar, não acreditei nesse negócio. Aí voltei com o troféu todo empolgado e me lembro de um fato interessantíssimo, eu estava com um amigo na rua, agora não me recordo quem era, comecei a falar de saxofonistas, cheguei a falar do Coltraine e o cara não sabia quem era Coltraine naquela época, devia ser setenta e poucos oitenta. Aí esse colega meu não sabia quem era o Coltraine, passou um cara, um transeunte na rua e ouviu a conversa e virou para trás e falou: “- Ele não vai saber quem é, você tem que começar pelo Stan Getz”. Isso me marcou muito. Que loucura isso, aqui em Juiz de Fora na Rua Halfeld. Nessa época eu me apresentava também muito no Pró-Música como pianista solo, eu era muito louco, chegava lá e tocava. Como eu não tinha estudo formal, eu era cabeça independente, então o que vinha na minha cabeça eu tocava. Acho que tem que juntar tudo na verdade, conhecimento, técnica. Hoje eu voltei muito a esse lance de sentar e deixar a inspiração solta.


Daniela: E nessa época já começou a florescer o lado compositor?

Márcio: Demais, era o que mais tinha pois eu sentava e tocava qualquer coisa que vinha na minha cabeça. Então para mim aquilo era música que eu inventava, mas isso me deu um up grade muito grande. Quando as pessoas falavam, vamos tocar free, eu já sabia. Eu faço isso há mais de quarenta anos, já sei direitinho o que é essa história. Tivemos um grupo aqui também chamado A Pá, depois chegou o Milton Nascimento, o Milton vinha na cidade, andava com a gente para cima e para baixo de carro. Ainda nem estava no Clube da Esquina. Ele andava no meu carro, eu tinha um Fusca. Ele gostava de ficar vendo paisagens no morro, tínhamos o grupo A Pá que era formado pelo Guto, Bilinho, Xico. A Pá começou na minha casa. O Bilinho acabou até vindo depois, o Xico Teixeira era um dos primeiros integrantes.

Daniela: E o Milton tinha um envolvimento com o grupo de vocês?

Márcio: Tinha demais, vinha para cá e saía direto conosco. O Marcinho Itaboray depois chegou, depois também o Ronaldinho irmão dele. Tinha o Genival que tocava flauta, o Helinho que tocava contrabaixo. Tínhamos outros grupos junto com A Pá, fazíamos som aberto na Academia, na Universidade. Todo mundo barbudo, com calça boca de sino, hippie. Hipão mesmo, com todos os credenciais dos hippies da época. Todo mundo louco demais naquela época, todos estudando, uns estudavam engenharia, outros administração, outros medicina, mas a música não acabava nunca. Eu tocava muito sozinho, mas o grupo A Pá participou de muitos festivais. Depois veio um outro chamado Lando Magog, esse grupo foi muito importante, um grupo de música experimental mesmo.

Daniela: Nesses dois grupos vocês tocavam mais composições autorais ou releituras?

Márcio: Tinham autorais, a maioria era autoral, releitura era uma ou outra. Eu tinha muita música. Na Pá tinha música de todos, no Lando Magog tinham mais músicas do Kim, o Kim aliás que criou essa idéia da música experimental. Era eu, Kim, Big Charles, Bilinho, não lembro mais quem estava de contrabaixo.

Daniela: E vocês têm algum registro?

Márcio: Alguma coisa em fita cassete, mas era fantástico. O Lando Magog rompeu fronteiras, fomos fazer show em Florianópolis no teatro mais importante, fizemos um show lindo lá.

Daniela: Você mencionou o Milton, sei que tem envolvimento musical com outros mineiros também como Nelson Ângelo, Toninho Horta...

Márcio: Sim. Daí foi surgindo. O Bilinho foi embora para o Rio e se profissionalizou como violonista, o Guto se voltou mais para a medicina, assim eu segui paralelamente tentando conciliar a medicina e a música. Consegui até gravar o meu primeiro LP com direção do Nelson Ângelo, que foi o Talismã. Foi importantíssima a participação do Nelsinho, fizemos shows juntos. Ficamos amigos mesmo, combinamos de nos encontrar no Rio, no extinto Luna e ele falou: - “Doutor Hallack vamos fazer o seu disco”. E acabamos fazendo o meu primeiro LP, ficou bonito, com a participação da Telma Costa. Acho que vou colocar essa música no meu cd novo que está para sair, não posso deixar de fora, ela se chama Música. Telma, Nelsinho, Fernando Leporace, Novelli, Nelson Ângelo, Robertinho, Mauro Senise. É um disco que não consegui lançar como deveria e nem transformar em cd. Fiz um remix por minha conta, tenho ele em casa em cd, mas quero ainda pegar o LP e passar para cd pois vale a pena, tem arranjos lindos do Nelson Ângelo, participação do Jacques Morelenbaum. Depois disso, estudando medicina e tendo um disco gravado com essas grandes feras, você fica meio maluco, será que eu faço isso, faço aquilo, fiquei meio maluco. As pessoas costumam me perguntar, de que você gosta mais, quem nasceu primeiro, acho uma besteira isso, uma pobreza muito grande. Se você não gosta de uma coisa você larga, você continua fazendo os dois ou porque gosta ou porque precisa. De alguma forma todos os dois me dão subsídios para alguma coisa. Ou para o sustento, ou relacionamento, ou ambos. Então eu nunca desgostei e sempre brinquei, são as duas, a música e a medicina, as duas são femininas. E nem uma das duas tem ciúmes uma da outra. Isso responde uma porção de coisas, daí eu comecei a me especializar, convivi com muita gente no Rio, com Luizinho Eça, tocava lá na noite, fugia sempre de Juiz de Fora para estar em contato com novidades. Fiz grandes amizades com todo mundo que você pode relembrar da música instrumental. Depois veio a época do Hermeto, quando o instrumental já estava pegando fogo e o Hermeto veio com aquele som novo dele. O Hermeto e o seu grupo formado pelo kakau, Jovino, ficaram uns dez dias lá em casa. Itiberê, Márcio Bahia, o Pernambuco tocando percussão. Convivemos muito, depois estendemos essa convivência para fora daqui e isso foi uma coisa maravilhosa pois começou a juntar a parte mineira, com a parte instrumental, com a parte erudita. Eu estudava clássico, enfim, tive milhões de informações que me ajudaram muito. Isso contribuiu para que eu me transformasse num arranjador hoje. São vários segmentos da música que pude ter contato profundo, música erudita me trazia uma série de informações, o jazz outras, o Bill Evans que até hoje é um dos maiores fenômenos em termos de harmonia, da maneira de tocar piano, todo o pianista que se presa adora o Bill Evans. Depois com isso aliado a chegada também do Egberto na música instrumental, e aí falo em Pixinguinha, Ernesto Nazareth e tudo isso misturado com os mineiros. Tudo isso foi fundamental para a minha formação.

Daniela: O erudito, o jazz e a Bossa Nova que influenciaram uma geração inteira né? Tom Jobim e João Gilberto.

Márcio: Você citou uma coisa que estava passando batida aqui, uma das coisas mais marcantes. É impossível não deixar de falar do Tom, Tom sintetizou tudo, tanto do instrumental, quanto do erudito, até de Minas vamos dizer um pouco. Ele conseguiu traduzir isso tudo nas harmonias com a Bossa Nova, aí fecha o ciclo todo.

Daniela: Não dá para conversar sobre tudo isso sem passar por Tom e João

Márcio: De maneira nenhuma (cantarola a canção Boto de Tom Jobim)

Daniela: Eu acho visível essa influência jobiniana em sua obra, no De manhã, certo caráter minimalista seu, a evidência de notinhas.

Márcio: Aquela música: A praia de dentro tem areia... Como chama?

Daniela: Boto, é linda né?

Márcio: Você vê que a melodia é lindíssima e notas uma do lado da outra, coisas simples. O Tom conseguiu isso tudo. Considero Nelson Ângelo um dos maiores compositores dessa fase dos mineiros, de uma linha mais purista talvez, mais orquestral talvez.

Daniela: Sim, ele gosta muito de cordas. Me recordo de um arranjo de cordas lindo que ele fez naquele cd que reúne parcerias com o Cacaso, o Mar de Mineiro, acho que era a canção Quando eu vi o mar. Já fizemos ela juntos.

Márcio: Sim. Esse disco de canções que eu vou fazer agora estou animado. Gravei uma série de canções minhas apenas piano e voz, eu mesmo cantando.

Daniela: Lançaram pela Biscoito Fino um espetáculo que o Tom Jobim fez em Belo Horizonte somente Piano e Voz.

Márcio: Eu acho que independente de cantar bem ou não o importante é o registro do autor. Eu vou fazer isso ainda. Agora chegando aos tempos atuais, comecei a fazer festivais de jazz com formação de trio: piano, baixo e bateria. Acabei ganhando alguns prêmios, ganhei como compositor e instrumentista o BDMG por duas vezes, ganhei 2002 e 2007. Antes disso eu ganhei o terceiro lugar na Rodada Brahma de Música Popular Brasileira, com arranjos do maestro Gaia, tocando um choro meu chamado Presente para o titio, o Mamão na época tocava bateria na orquestra. Um arranjo lindo com orquestra completa. Violinos, sessão de cordas e de sopros, mais o trio composto por piano, baixo e bateria, isso aconteceu no Hotel Nacional. Ganhei o prêmio também de Jovem Pianista em Barbacena. Participei de duas sessões do Free Jazz também e tudo isso morando aqui em Juiz de Fora e sendo médico, já estava casado, com filhos e tal. Uma confusão. Minha vida sempre foi essa coisa tipo assim: vamos lá.

Daniela: Frenética

Márcio: Pois é, acho interessante que você sempre consegue traduzir as minhas coisas (risos). Frenesi, meio Hitchcock, e meio Woody Allen, dá certo, não dá certo, de repente dá no final. Comecei a fazer alguns arranjos e fiz o nosso também, que achei maravilhoso poder fazer esse trabalho com você e contar com a participação de grandes nomes como o Paulo Russo e o Affonsinho, que tocou com o Gato Barbieri na trilha do Último Tango. Depois fui arranjador de um outro compositor chamado Avelino Atála, em que você também fez uma participação, achei que os disco dele ficou lindo, os arranjos, as introduções. Digo a ele que quero roubar para mim todas as introduções que eu fiz. Ele me deu aquilo cru, simploriamente, apenas com o violão. Isso é que eu acho um trabalho de arranjo.

Daniela: Esse trabalho de concepção de arranjo foi o que pudemos desenvolver em nosso disco sobre a obra de Sueli Costa e Cacaso, por exemplo a música mais evidenciada é Amor Amor e a que tínhamos a maior responsabilidade, pois tinha sido gravada por Maria Bethânia. E essa foi a que levou uma releitura mais original, mais nossa, mais clean, mais minimalista. Sempre recordo de você ter dito que sonhou com suas mãos sobre as águas.

Márcio: Eu tive realmente essa visão.

Daniela: Você demonstrou essa sensibilidade no movimento, o ir e vir da água, meio flutuante.

Márcio: Eu acho assim e eu brinco muito com isso, tenho meu quartinho de estudo com meu piano em casa que você conhece muito bem, as pessoas me perguntam com quem estudei e tal. Eu sempre procurei estudar com várias pessoas, fiz algumas aulas, a pouco tempo com o Vitor Santos, trombonista. Nunca tive muito tempo para continuar as coisas até o fim. Estudei com o André Pires aqui em Juiz de Fora, então sempre fui muito elétrico até pela situação de ter que fazer outras coisas para sobreviver. Compromisso com família, compromisso pessoal, compromisso com a música. Então não consegui parar e dedicar a uma só coisa até o fim. Eu gostaria de ter feito um estudo mais acadêmico, mais sistematizado. Mas não sei se esse academicismo total poderia me prejudicar, quando faço algum arranjo mesmo escrevendo para uma sessão de cordas como fiz, sem conhecer tecnicamente as coisas sou capaz de fazer lindos arranjos. Fiz uma arranjo para Linda, um quinteto de flautas com piano e tal, mostrei para o Nivaldo e ele adorou. Eu não sei de onde vêm essas idéias, acho que elas vêm de dentro e de muita experimentação que fiz desde aquela época quando eu não tinha estudo nem nada e sai experimentando. Eu descobri atualmente um pianista americano que faz worshop justamente do que eu poderia dizer música espontânea. Aquilo de você sentar e tocar, vi ele tocando e parece que ele fixa o olhar em um lugar e a mão vai indo espontaneamente num lance até meio espiritual. E se realmente você pensa numa música, isso é um exercício e surgem coisas maravilhosas. Eu acho que a música realmente vem da alma, vem de dentro. Você tem que ter os conhecimentos técnicos mas se você deixar fluir aquilo que tem dentro de você, rápido ou não, acho que vai ter uma beleza profunda.

Daniela: E você tem uma entrada no cinema

Márcio: Exatamente. Eu fiz o Rei do Samba, depois fiz uma outra participação com o Zé Sette também no Janela do Caos, inspirado na vida do poeta Murilo Mendes. E recentemente participei de um curta chamado Rochedo de Minas, esse eu participei tocando e como arranjador. Esses filmes rodam por aí. Lembro que certa vez você comentou comigo que tinha conversado com o Sarraceni que fez o Crônica da casa assassinada do Lúcio Cardoso, então, fiquei satisfeito pelo comentário dele. E venho tocando, aprovei um projeto na Lei Estadual, Piano solo: choros e canções com releituras do Ernesto Nazareth, Pixinguinha, João Pernambuco e composições minhas também. Gravei junto com isso uma canção chamada Lua inquieta, com letra do Murilo Antunes. A Carla Vilar gravou, o primeiros disco dela foi só Toninho Horta. E o Toninho gravou também duas sessões comigo, Iuri Popov, foi muito legal.

Daniela: E os trabalhos atuais então?

Márcio: Tem o meu disco de canções que mistura a coisa brasileira do choro mas que vem para uma linguagem bastante moderna, romântica, erudita, misturada, nem eu sei te explicar. Mas digo que mexeu comigo em termos de sentimento. Um cara que tem me incentivado muito atualmente é o Nivaldo Ornellas, um grande saxofonista que tem um sopro próprio, o Wayne Shorter é lá e o Nivaldo Ornellas aqui. Eu estive em Belo Horizonte fazendo o festival de Jazz da Savassi e tive a honra de ter a participação do Nivaldo comigo, ele tocou Canto de Recordação que é um choro canção lento, o Nivaldo tocando aquilo, soprando, mudou completamente a acentuação da música, eu arrepiava e chorava no meio da música. Um troço impressionante. Eu mostrei para ele as canções do disco que pretendo fazer agora e quero trabalhar junto com ele nesse cd. Se uma pessoa dessa admira o meu trabalho, eu que vim de tanta conturbação, ele reconheceu seriedade no meu trabalho, profissionalismo, então penso que estou no caminho certo.

Daniela: Tem trabalhado com cantoras? Você trabalhou comigo, Fernanda Cunha, Telma Costa, Lívia Lucas

Márcio: Sim o disco da Fernanda que também fiz os arranjos lá em Cleveland e depois a Lívia, Telma, você, a Carla Vilar. Agora quero deixar registrado aí, já convidei mas perdi o telefone dele. Ele é um dos caras que eu considero que tem uma das maiores vozes do Brasil, ele sozinho com o violão e não precisa mais nada. Se ele cantar uma ou duas músicas minhas eu vou me sentir realizado plenamente. Deixo o convite para o meu grande amigo Tadeu Franco. Fecho aqui.

Daniela: Marcinho muito obrigada, adorei.

sábado, 17 de julho de 2010

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Entrevista com o arranjador e maestro Aécio Flávio Rêgo



Março de 2010 na varanda do Vinicius Piano Bar


Daniela Aragão: Quando e como apareceu a música em sua vida?

Aécio Flávio: O meu pai era escriturário e músico amador, tocava em banda de música no interior de Minas. Quando foi para Belo Horizonte ele começou a integrar uma banda de baile e ele vivia ensaiando dentro de casa. Ele chegava da fábrica e ficava pelos cantos da casa tocando tudo quanto é pedaçinho de música. Daí fui entender que era partitura para orquestra, ele ficava procurando uma acústica boa nos cantos das paredes. Isso me marcou bastante. Um dia fui a um aniversário em que tinha um cara tocando Baião Delicado, fiquei impressionado, achei tão bonito aquilo. Mas o marco mesmo aconteceu quando eu descia a rua para ir a escola e encontrei um mendigo chamado Raul e ele mendigava por aí tocando uma gaita de boca, fiquei fascinado olhando esse cara. Fiquei abismado como ele tirava música daquele pedaçinho de lata. Daí chegando eu casa falei com meu pai: - Não quero presente, não quero brinquedo esse ano, eu quero uma gaita. Aí ele me deu uma gaita, acredita que ele me deu uma gaita de manhã e a tarde eu já estava tocando duas músicas?

Daniela: Intuitivamente você já saiu tocando

Aécio: Sim, eu ouvia as músicas no rádio, uma das músicas se chamava Porteira Velha e a outra Adios Pampa Mia, eu ouvia muito isso na rádio e acabou ficando. Eu pegava a gaita até ficar tonto de tanto soprar, mas saía. Lá em casa acontecia o seguinte, o filho fazia dez anos de idade e tinha que trabalhar. Meu irmão mais velho trabalhava numa lapidação de rubis, ele arrumou para mim um trabalho numa colchoaria, num tal de seu Juca. Lá fui eu ficar enchendo travesseiro de pano. Um dia depois do almoço, eu estava recostando e encostei na parede quando esbarrei num violão que soou o som das cordas soltas. Eu fiquei fascinado por aquilo, pensei, o que é isso? Peguei aquele violão e comecei a mexer. Fiquei mexendo, mexendo, no dia seguinte eu já estava colocando um, dois dedos, daí fiz um sol maior. Pedi um vizinho nosso que me ensinasse a tocar, ele tinha um trio que imitava o trio Los Panchos. Ele me ensinou uma, duas posições, eu cheguei em casa e ensinei para o Rubinho, meu irmão mais novo. Daí depois descobri o cavaquinho, descobri que a afinação eram as quatro cordas mais agudas do violão, daí passei para o cavaquinho. O violão era o cavaquinho com mais dois baixos, o mi e o lá.

Daniela:Você foi transitando pelos instrumentos...

Aécio: Meu irmão mais velho gostava de cantar e tocar pandeiro, não demorou para que tivéssemos um conjuntinho dentro de casa. O mais novo, hoje engenheiro, quando tinha seis anos tocava Waldir Azevedo, Brasileirinho, Pedacinho do céu, as coisas que eu passava para ele tocar no cavaquinho. Fomos com esse conjunto tocar na rádio Guarani, o programa chamava-se Gurilândia, saíamos, pegávamos o bonde, isso nos anos cinquenta. E meu pai ficava todo orgulhoso de nos ver tocar, o conjunto era composto por gaita, violão, cavaquinho e pandeiro. E ele tinha aquele orgulho, aquela vaidade de fazer tocarmos na rádio. Meu pai insistia para que tocássemos no bonde, nós tocávamos morrendo de vergonha do bonde. Meu irmão mais velho ficava puto de ter que tocar no bonde.


Daniela: E como surgiu o piano? Ele é o seu instrumento oficial?

Aécio: Não elegi um instrumento, meu instrumento é a partitura. Eu me especializei em fazer arranjo, sou arranjador. Por eu gostar de tudo o que é instrumento acabei descobrindo que ao fazer arranjo você pode tirar sarro de todos eles. Eu faço por exemplo partitura para piano em que eu não toco, faço partitura que não sou capaz de tocar. Sou meio autodidata no piano, passei do acordeon para o piano. Voltando a gaita, comecei a perceber que tinham certas notas que ela não tirava, os sustenidos e bemóis. Então chegavam determinadas músicas em que eu tinha que pular a nota. Aí me mostraram uma gaita de chave e comecei a tocar.

Daniela: É interessante como você falou dessa sensação de que a gaita não dava conta da sonoridade que você queria, ela era de certa maneira limitada em termos de recursos. Você passou da gaita para o acordeon e do acordeon para o piano. Esse é o percurso do João Donato também né? Essa necessidade de amplitude sonora que o piano é capaz de suprir. E você não elegeu um instrumento específico.

Aécio: Daí fiquei tocando acordeon e meu pai foi me levando para os bailes para tocar. A orquestra tocava e no intervalo em que o músico trocava de partitura ficava aquele branco, daí eu entrava e tocava de ouvido. Eles só tocavam escrito e eu tocava de ouvido, eu tinha um ouvido de tuberculoso, ouvia e saía tocando.


Daniela: Você teve alguma formação básica de música, passou por conservatório?

Aécio: Fui tocando tudo de ouvido. Eu ouvia um cara chamado Mário Genaro Filho, um paulista descendente de italiano. Montei então o meu grupo para fazer os bailes. Eu tocava acordeon até que um dia meu instrumento foi roubado. Depois comprei um vibrafone e comecei a tocar, pintou uma chance e ganhei um troféu em Belo Horizonte chamado O melhor da noite. Fiz depois um disco com a maioria das faixas em vibrafone. Depois cheguei ao piano.

Daniela: Olha só, todo um percurso para chegar ao piano, quantos anos você tinha quando iniciou com o piano?

Aécio: Eu tinha 21 anos. Eu tirava muita coisa no violão e transpunha para o piano. Até hoje faço muita harmonia que é de violão. Um dia fui fazer o exame no Conservatório Brasileiro de Música e senti que eu tinha chegado num ponto em que não tinha mais saída, eu não estava satisfeito com o que eu fazia. Aí pensei, meu pai tem razão, preciso estudar música. Tomei pau no exame, você tinha que ler oito compassos à primeira vista, escrever um ditado em primeira audição, acompanhando o que a pessoa tocava no piano. Eu levei ferro, não passei. Daí o Helvius Vilela, que faleceu faz poucos dias, me comunicou que estava tendo concurso na Universidade mineira de arte. Fiz o exame, me preparei e passei com dez. O pianista da boite em que eu tocava nos intervalos parava e me dava uma aulinha de teoria. O Helvis ficou lá três meses e eu fiquei cinco anos. Helvius tocava muito bem de ouvido, achou que não era preciso e parou. Lá aprendi teoria, solfejo e harmonia.Harmonia básica e superior. Então com seis meses de teoria lá, já tínhamos um grupo com sax alto, trompete, baixo, bateria e guitarra. Eu já tirava músicas de discos para tocar no grupo.


Daniela: Já nascendo o arranjador

Aécio: Começou assim. Eu escrevia o trompete, o saxofone e começava a dar certo. Eu aplicava esse aprendizado nos bailes já que eu tinha um conjunto na mão. Um dia no ponto dos músicos eu encontrei um nego chamado Figo Seco, foi o cara que montou uma banda chamada Alma Brasileira e que fez o maior sucesso, ficou onze anos com essa banda na Alemanha. Certa vez ele me perguntou: - “Você não usa grade para fazer arranjo” e eu perguntei o que era grade, ele me mostrou que era para escrever um compasso para cada instrumento, o que facilitaria muito na hora de copiar. Daí passei a usar a grade e procurei ler coisas a respeito, peguei com um amigo que estudava na Bercley algumas lições. Aprendi muita coisa.

Daniela: Esse início se deu em Belo Horizonte, mas você tem uma carreira construída longa no Rio de Janeiro. Como foi a mudança para o Rio?

Aécio: Em BH eu consegui ter meu grupo, fazer um disco pela Philips. Era um disco em que trabalhei como arranjador. Daí os caras começaram a vir para o Rio, apareceu o rock, então os caras com três quatro elementos faziam uma festa enquanto na minha banda tinham doze.

Daniela: Você é de Belo Horizonte e contemporâneo do pessoal do Clube da Esquina

Aécio: A turma do Clube na verdade ensaiava em minha casa. Como ninguém tinha piano eles iam ensaiar lá em casa, o Helvius, o Wagner, o Nivaldo, Paulinho Braga. Mas eu nunca fui de panela, sempre fui traçando meu caminho. Um dia o Chiquito Braga, que era o guitarrista que tocava comigo, foi para o Rio e eu ainda em Belo Horizonte. Eu conheci o Toninho Horta desde quando ele tinha quatorze anos, ele ficava na sala corujando o ensaios meus com Chiquito. Um cara chamado André Carvalho que inaugurou uma gravadora chamada Bemol, me chamou para fazer uma coleção de discos infantis. Falou: - “Estou com uma história de bicho e gente, você quer trabalhar comigo?”. E ele me cobrava direto isso, até que fiz quinze músicas de uma só, num fim de semana. Pra essa gravação chamei o Toninho, foi a primeira vez que ele entrou em estúdio e gravou. Isso foi na década de sessenta. Vim para o Rio em setenta e um. E no Rio trabalhei na Globo e com várias pessoas.

Daniela: De repente entra um quarteto de pagodeiros e nossa entrevista fica impossível. Uma pena, pois Aécio ainda contou grandes historias de sua trajetória musical. O gravador não teve alcance.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Todo amor que houver nessa vida


“ O tempo dá voltas e curvas/O tempo tem revoltas absurdas/ Ele é e não é ao mesmo tempo”, quando ouvi esta bela canção do Zé Miguel Wisnik passei um longo tempo pensando na delicadeza e profundidade contida nos versos preenchidos por uma melodia também suave e pontuada por sutis cortes, como o próprio movimento da vida. Ontem me deparei com um exemplar da revista Bravo inteiramente dedicado a Cazuza, vinte anos de sua partida. Não resisti e trouxe-o para casa. Com a capa em preto e branco e os escritos numa tonalidade de rosa, contemplei a imagem de um Cazuza ainda muito belo e vigoroso. Fui folheando vagarosamente a revista que traz imagens e textos diversos sobre a carreira do artista e também percorre uma diversidade de pessoas e acontecimentos que marcaram substancialmente os anos oitenta, período que envolveu a criação intensa e veloz de Cazuza.

Recordo-me que era uma tarde fria de julho quando recebi por um amigo a notícia de que Cazuza havia morrido. Embora já fosse esperada a sua partida num trem para as estrelas, engoli em seco a dor. Não fiz parte propriamente da geração do Cazuza, pois no início dos anos oitenta eu começava a ensaiar meus primeiros passos no mundo. Conheci o exagerado em Bete Balanço, filme de Lael Rodrigues responsável pela projeção nacional da canção homônima. Tudo me encantou em Bete Balanço, a voz meio rascante do intérprete, a letra e a levada repletas de sensualidade, e uma certa dose de humor escrachado que correspondia a personalidade desbundada de Cazuza: “Quem tem um sonho não dança/ Bete Balanço/Por favor/Me avise quando for embora”.

Bete Balanço foi um cartão de visitas que Cazuza abriu para mim. Desse momento em diante fiquei atenta as canções compostas por esse carioca que trazia no fundo de sua postura rebelde e inconformada um lirismo ora comovente, ora arrebatador. Sua alma de poeta bebeu na fonte de outros poetas transgressores como Kerouac e Guinsberg. Sua alma romântica mergulhou fundo na tradição da canção “dó de peito” de Dolores Duran e Cartola: “Um dia ainda chamo o Nelson Gonçalves para cantar uma música com o Barão. Se isso chocar algum roqueiro, é sinal que ele precisa se libertar desse trauma”. Dialogando com o legado bossanovista Cazuza compôs Faz parte do meu show: impactante, estranhamente bela sua imagem na TV, despido da postura de roqueiro, sentado num banquinho, rosto sereno, cabelos ralos e voz afinada e sem excessos. Faz parte do meu show foi uma das primeiras músicas que aprendi a tocar no violão, simples e bonita em sua concepção harmônica e na carga poética registrada nos versos. Me emociona cantar especialmente este trecho: “Vago na lua deserta das pedras do Arpoador/ Digo alô ao inimigo/Encontro um abrigo no peito do meu traidor”.

Outras canções de Cazuza foram se incorporando ao meu repertório, é sempre com renovada emoção que canto o compositor romântico de Preciso dizer que te amo, Mais feliz e Todo amor que houver nessa vida . Mais de vinte anos se passaram desde a primeira execução pública dessas músicas e elas ainda conservam certo frescor, não se desgastaram com o tempo. Guardei entre meus derradeiros vinis um exemplar de Burguesia, o último trabalho de Cazuza. Confesso que na época não lhe dei a atenção devida, achei-o muito baixo astral, quase inaudível. Ouvi umas três faixas e abandonei-o. Com o passar dos anos fui conhecendo o repertório de Burguesia por meio de outros intérpretes, a “poetriz” Elisa Lucinda numa performance pra lá de bem humorada cantou Manhatã: “Eu andando pela neve/ Em pleno Central Park/ Com as estrelas do cinema/ Faço cenas no metrô/ Com meu tênis All Star/ Deixando as louras loucas/ Com meu latin style/ Não sou mais Paraíba, Sou south American/ Aqui em Manhatã”. Adriana Calcanhotto estourou nas rádios com sua versão de Mulher sem razão, canção que traz estampada a assinatura Cazuza: “Caia na realidade, fada/Olha bem na minha cara/Me confessa que gostou/Do meu papo bom/ Do meu jeito são/ Do meu sarro, do meu som...”. Hoje entendo porque não fui capaz de receber e assimilar Burguesia aos quinze anos de idade – é explícita a dor que perpassa o álbum do começo ao fim. Acometido pela doença, muito frágil, pesando pouco mais de quarenta quilos, Cazuza tentava dar seu último grito abafado pelo sofrimento. Devido à extrema fragilidade gravou quase todas as faixas deitado numa cama, um fio de voz conduzia ainda com garra Quando eu estiver cantando, uma emocionante canção de despedida: “Porque eu só canto só/E o meu canto é a minha solidão/É a minha salvação//Porque o meu canto é o que me mantém vivo”.

O filme de Sandra Wernek em homenagem a Cazuza me tocou profundamente, a excelente atuação de Daniel Oliveira emociona. Ainda tenho bem nítidas na memória as cenas que mais me comoveram, ainda me inundo da água salgada do mar que embalou o último mergulho do menino, que no fundo era doce: “amor é o ridículo da vida. A gente procura nele uma pureza impossível, uma pureza que está sempre se pondo. A vida veio e me levou com ela. Sorte é se abandonar e aceitar essa vaga ideia de paraiso que nos persegue, bonita e breve, como borboletas que só vivem 24 horas. Morrer não dói”.