sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
Beatriz Azevedo abraça o sol
Muito cedo me encantei pelos meandros poéticos e sonoros, numa de minhas crônicas mais recentes, dedicada ao cd PartimpimII, de Adriana Calcanhotto, tirei do baú o antológico livro de poemas de Cecília Meirelles Ou isto ou aquilo, uma ode ao esplendor lírico extraído das miudezas do mundo infantil. A musicalidade ecoa intensa de poemas que utilizam uma linguagem permeada de referências a elementos da natureza - o vai e vem que conduz o ritmo das águas dos rios, como A Correnteza de Tom, as aquarelas luminosas e multicromáticas que seduzem as crianças no prosseguimento de um percurso infindo: “Olha a chuva molha a luva/cada gota de água/como um bago de uva”. Estou no processo de escrita de minha tese de doutorado sobre Calcanhotto, e continuamente me pego desenrolando novas idéias sobre essa artista, até mesmo no circuito alternativo, não acadêmico. Escritos de “fã fanática”, devem pensar alguns, contudo esclareço que o que mais me atrai no seu trabalho transcende a limitação do enquadramento mercadológico, o ponto diferencial que me toca é o apuro estético e a relação densa que ela estabelece com o universo poético. Quando se analisa a totalidade da obra de um cantor e compositor, deve-se abrir o leque de abordagens, visto que a criação não envolve somente o aspecto da composição, mas também do desempenho performático que implica na concepção e modulação do canto, assim como da expressão corporal.
A palavra elevada as suas múltiplas possibilidades poéticas é alvo de um minucioso trabalho desenvolvido não exclusivamente por Calcanhotto, mas também por outros de sua geração como Arnaldo Antunes, Zeca Baleiro e Beatriz Azevedo. Certamente poucos ouvintes tiveram acesso ao trabalho de Beatriz, pois ele não é veiculado pela grande mídia. Tomei conhecimento da existência de Beatriz Azevedo por acaso, quando me deparei numa livraria com o seu ótimo cd Bum bum do poeta.. Confesso que fui seduzida de imediato pelo atrativo da capa, que em fundo inteiramente vermelho mostrava sobreposta em destaque a foto da artista em pose a là Marlene Dietrich em O anjo azul.
Cantora, compositora, poeta e performer, Beatriz Azevedo é uma artista que celebra a “tradição da invenção” ao seguir a linha evolutiva do riso e da alegria transgressora e erótica de Gregório de Mattos, Oswald de Andrade e Zé Celso. A palavra que sob a mira dessa artista é alvo de depurada lapidação, desponta ácida, irônica ou eroticamente insinuante, como em Querelle, canção composta por ela, inspirada no filme do excêntrico cineasta alemão Rainer Fassbinder, que adaptou para o cinema a obra homônima de Jean Genet: “Querelle eu quero sua pele/Quero querer Querelle/Em mim sua boca mais que a de Marilyn seu corpo forte/Quero gemer como James Dean/Numa noite triste tudo que existe tem um fim/Tem um filme”.
Alegria, disco primoroso lançado pela gravadora Biscoito Fino, dá prosseguimento a pesquisa estética e literária evidenciada em Bum bum do poeta, mas com o acréscimo de um evidente amadurecimento revelado no desempenho sofisticado e preciso da direção musical e dos arranjos do pianista Cristóvão Bastos. Gravado entre São Paulo, Rio de Janeiro e Nova York, Alegria traz a marca da diversidade correspondente ao conceito proposto por Beatriz Azevedo, que em sua verve cosmopolita jamais perde os laços estreitos com as raízes nacionais. Apropriando-se do impulso deglutidor do antropófago Oswald de Andrade, Beatriz nomeia no encarte todas as devorações realizadas nas músicas. Põe música em Coco de Pagu, poema do modernista Raul Bopp, dedicado a musa do movimento antropofágico Patrícia Galvão, a Pagu: “Devoração de Coco e Embolada com Patrícia Galvão. Devoração de Raul Bopp, poeta da Amazônia. Devoração de Augusto de Campos que nos deu este poema de Bopp no seu Pagu vida-obra.”
Alegria, faixa inaugural que dá título apropriado ao cd, é uma parceria entre Beatriz Azevedo e Vinícius Cantuária, músico brasileiro radicado nos Estados Unidos há mais de vinte anos. Alegria traduz o estado de espírito verde amarelo através da devoração miscigenada de Cesária Évora, Ernesto Nazareth, Beethoven e Shiller: Segundo a cantora: “O mote da alegria tem a ver com os ritmos brasileiros, ela é uma característica não só minha, mas da história do Brasil”.
Speak Low, antológica canção de Kurt Weill e Lotte Lenya, recebe uma interpretação magistral, em ritmo de maracatu a música ganha o toque afro-brasileiro do berimbau enriquecido por um naipe de sopros e alfaias bem graves. Esta canção explicita a habilidade com que Beatriz Azevedo devora, desconstrói e reconstrói a cultura alemã que engloba Nietzche, Brecht, Peter Stein, Pina Bausch, Sacha Waltz e Fassbinder. Envolvendo sensualidade e fragmentos de sonhos cinematográficos Bertollucianos-Fellinianos-Kusturicanos, a atmosfera sonora criada por Beatriz Azevedo nos envolve tão sedutoramente que às vezes parece que retrocedemos a um cabaret parisiense. O diálogo com a cultura francesa é enternecedor em Savoir par coeur, um delicado souvenir poético: “Si je sais par coeur/Le rythme de ton coeur/Tu sais pourquoi/La musique de mon coeur”.
Beatriz Azevedo em Alegria presenteia os ouvintes com poesia, bom gosto e criatividade. É uma alegria saber que em meio a tantas banalidades existe uma artista como Beatriz. À massa que ainda comerá de seus biscoitos finos ela entoa: “Mas eu vou fazer tudo que eu quero, bem do meu jeito. E deixa prá lá essa gente com despeito.”
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010
O vôo intenso de Cristiane Visentin
Murilo Mendes em A idade do serrote disse que Juiz de Fora era um trecho de terra cercado de pianos por todos os lados. Muitos anos se passaram desde a manifestação do poeta, e nossa cidade ainda permanece com uma intensa vocação musical. Se os pianos não reinam mais absolutos e onipresentes por todos os cantos, eles dividem agora o espaço com flautas, violões, contrabaixos, baterias e vozes. Percorrer a história da música popular de Juiz de Fora é deparar com talentosos músicos, compositores e sobretudo cantores. Nossa cidade ultimamente anda ficando popular no cenário nacional pela quantidade de cantoras que tem lançado no mercado. Não se trata de novidade afirmar que as vozes femininas cada vez mais suplantam as masculinas no universo da MPB, os cantores em sua maioria são compositores que cantam, enquanto as cantoras prevalecem como intérpretes e em número consideravelmente maior.
Adolescente em meados de noventa, eu começava a dedilhar os primeiros acordes e arriscar a interpretação de algumas canções na solidão do meu quarto, enquanto borbulhavam pela cidade as cantoras Raquel Silvestre, Miriam Alvarenga, Tânia Bicalho, Cristiane Visentin, Rosana Britto, Marcela Lobbo e Isabella Ladeira. Essas vozes singulares dividiam o cenário local e não faltava espaço para o bom gosto, ousadia e originalidade. Não conferi o trabalho de todas na época, mas não deixava de ler as matérias divulgadas nos jornais e na televisão.
Mais de uma década se passou, e ao ouvir nesse instante “Bird in Blue” resgato a emoção indescritível que me tomou quando vi e ouvi Cristiane Visentin pela primeira vez: “Tudo que estava em minhas mãos voou e o pássaro do amor também não quis ficar/não quis”. Numa tarde de domingo, na Praça Jarbas de Lery Santos, uma multidão aguardava a chegada da cantora Cristiane Visentin acompanhada pelo guitarrista Salim. Um círculo médio delineado com pedras portuguesas no chão delimitava o palco improvisado, em que adentra inquieta uma moça muito bela de longos cabelos louros e cara de “anjo sapeca”. “Eu já estou com o pé nessa estrada/qualquer dia a gente se vê”, Cristiane canta visceralmente a canção de Milton Nascimento, que anunciava sua sede de cantar movendo o dom pelas estradas da vida. Impossível ficar indiferente diante de uma performance marcadamente intensa, que na voz trazia uma mistura rara de contrastes acentuados pela fusão aparentemente dicotômica e absolutamente harmônica entre suavidade e acidez, inocência e densa carga emocional-existencial. Cristiane Visentin cantava com tamanha entrega como se aquela fosse sua última tarde, a movimentação do corpo pleno de sonoridades, pulsava na recepção de cada nota entoada pela guitarra de Salim. A falta de acomodação e o calor excessivo não impediu que idosos se misturassem a jovens e crianças e permanecessem atentos até o final da última música. Minhas impressões hoje soam difusas mediante o transcorrer de longo tempo, mas não se apaga o quadro composto pela imagem dos raios luminosos incidindo sobre os cabelos de Cristiane, enquanto ela exasperava como uma cantora negra aos moldes de Bessie Smith: “Desde os meus onze anos que escuto Etta James, Sarah Vaughan e Ella Fitzgerald”.
A força interpretativa é uma das características mais evidentes no canto de Cristiane Visentin. A voz poderosa, acentuada pelo vigor de um timbre único, revela uma articulação perfeita que não dispensa uma sílaba, uma nota. Compositora, instrumentista e arranjadora, essa artista tem o dom de transformar simples canções em verdadeiras pérolas. Que habilidade tem essa cantora para transitar entre uma variedade de gêneros sem jamais perder o alento de sua identidade. Dia desses ouvi-a cantando uma canção de Michael Jackson tão lindamente que chegou a superar a interpretação do próprio. Essa é a Visentin, frase que ela mesma afirma entre gargalhadas escancaradas que acompanham o constante inclinar da cabeça para trás.
Como intérprete e compositora, Cristiane Visentin percorreu uma imensa variedade de festivais no Brasil, obtendo inúmeros primeiros lugares. Realizou espetáculos inesquecíveis dedicados a obra de Sueli Costa e Fátima Guedes: "Meu trabalho se enriqueceu muito com a atenção de Cristiane Visentin", além de cantar acompanhada por músicos de peso como o guitarrista Victor Biglione e o baterista Téo Lima . A vivência por dez anos nos Estados Unidos se efetuou como uma espécie de continuidade e amadurecimento do percurso construído no Brasil, em que a artista pode assimilar com propriedade a influência da música composta pelos negros jazzistas americanos: “Cantei com os velhos do jazz, cantei nas esquinas de New Orleans em momento do show de Norah Jones... aquelas coisas de quem não perderia nenhuma oportunidade.”
Ouvir Cristiane Visentin é ficar diante de uma artista completa, “beleza bonita de ver”, já dizia Fernando Brant. Retomo mais uma audição de “Bird in Blue”, o indecifrável e inquieto pássaro do amor. Essa é a Visentin, diria ela entre cargalhadas.
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