terça-feira, 24 de março de 2009

Encantada por Palavra encantada




Acabo de assistir novamente encantada a Palavra Encantada pela terceira vez. Me transformei na personagem Cecília, interpretada por Mia Farrow em A rosa púrpura do Cairo, de Woody Allen. Sentada sozinha na poltrona do lado esquerdo da última fileira do cinema abri meu caderninho de anotações musicais e deixei acesa a luz do celular, para que me servisse de lanterna nos momentos iluminados do filme que eu tentava aprisionar no papel.

Na ocasião do lançamento do meu cd dedicado a parceria Sueli Costa e Cacaso, um jornalista me dirigiu a seguinte pergunta: - Primeiro a poesia ou primeiro a música? Sem exitação respondi: - A música me leva até a poesia e a poesia me traz de volta para a música. Essa frase que soltei subitamente acabou se tornando meu lema de vida, a justificativa de tudo o que faço.

A questão do intercâmbio poesia e música não consiste em assunto absolutamente inédito, visto que tem surgido com frequência filmes e programas de TV relacionados ao tema, a exemplo de Vinícius (sobre a vida e obra de Vinícius de Moraes), Música é perfume (sobre Maria Bethânia) e Zumbido. Este último em formato televisivo, produzido exclusivamente para o Canal Brasil, reúne algumas entrevistas realizadas pelo compositor e cantor Paulinho Moska com nomes da música popular brasileira envolvidos com o universo poético como Lenine, Zeca Baleiro e Chico César. Contudo o tom que imprime Palavra encantada suplanta esses trabalhos pela profundidade e delicadeza no tratamento da questão.

A diretora Helena Solberg, que já havia incursionado com êxito no mundo musical no ótimo documentário Banana is my Business, baseado na vida da cantora Carmem Miranda, revela em Palavra Encantada seu talento na escolha dos entrevistados e da equipe responsável pela pesquisa, que envolve um rico material visual nunca antes divulgado para o grande público.

Palavra Encantada traz a tona o tema por vezes recorrente das inquietudes do processo de criação, porém com uma linguagem sedutora que dispensa os enjoados recursos didáticos. Adriana Calcanhotto abre a cena inaugural cantando à capella lindamente os versos de Chansong d'Ol Moz Son Plan e Prim, do poeta provençal do séc XII Arnaut Daniel, considerado um mestre na integração entre palavra e som. O canto puro e cristalino de Adriana anuncia a viagem pelos labirintos encantadores da canção, enquanto a câmera vai se aproximando delicada e vagarosamente da partitura. Helena Solberg mostra que conhece a arte das sutilezas.

Lenine reforça a idéia sugerida no canto de Calcanhotto ao afirmar que os compositores brasileiros são descendentes diretos da figura do trovador. A reflexão sobre a singularidade da linguagem da canção se explicita nos depoimentos de Paulo César Pinheiro e Chico Buarque. Bem humorado e a vontade sentado ao lado do piano, Chico tenta sem muito sucesso resgatar sem o auxílio de nenhum instrumento alguns versos de sua composição Uma palavra, pleno exercício de canção metalinguística que prescinde da música para existir. Guiando-se pela melodia guardada em sua memória auditiva, Chico vai tentando desatar as palavras de Uma palavra: “Palavra viva/Palavra com temperatura, palavra/Que se produz/Muda/Feita de luz mais que de vento, palavra/Palavra dócil/Palavra d’água pra qualquer moldura/Que se acomoda em balde, em verso, em mágoa/Qualquer feição de se manter palavra”.

Paulo César Pinheiro complementa Chico Buarque ao falar os versos de Só danço samba, palavras que segundo o letrista só sobrevivem com o suporte da música. A emoção toma conta da tela quando Liminha do Cordel do fogo encantado recita o poema Os três mal amados, de João Cabral. É tocante ver a platéia absolutamente extasiada repetindo os versos junto com Liminha: “O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte”.

Imagem comovente é a da poeta Hilda Hilst sendo entrevistada por Zeca Baleiro em sua Casa do Sol, um pouco antes de morrer. Close na face muito pálida desgastada pelo tempo e pela dor, Hilda dá uma tragada profunda no cigarro e solta: “As pessoas cagam para os poetas”. Um pouco adiante a cantora Zélia Duncan descreve emocionada a sensação de deslumbramento que a invadiu, quando soube que os poemas de Hilda Hilst ganhariam vida ainda mais intensa ao serem musicados. Sem melodramas, mas devo confessar que me bateu vontade de chorar quando Zélia de modo suave cantou à capella alguns trechos de Ode descontínua para flauta e oboé: “Porque tu sabes que é de poesia/Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,/Que a teu lado te amando,/Antes de ser mulher sou inteira poeta./E que o teu corpo existe porque o meu/Sempre existiu cantando./Meu corpo, Dionísio/É que move o grande corpo teu.”

Vale destacar as belas imagens inéditas, algumas de tão majestosa plasticidade que me remeteram a Humberto Mauro. Uma maravilha ver o jovem Dorival Caymmi cantando e contemplando o mar, seu universo infinito. Bethânia densifica: “Dorival Caymmi é como Guimarães Rosa: é um Brasil bruto, puro iluminado. Caymmi é o céu e a terra”.

O humor também preenche algumas cenas, como no momento em que Ismael Silva canta numa performance expressionista muito estranha para os padrões atuais. Com a voz cheia de vibratos e a boca em excessiva abertura, a interpretação de Ismael soa engraçada e destoante. Tom Zé é indiscutivelmente genial e gozadíssimo em seus comentários. Espontâneo, musicalíssimo e antenado a tudo, rouba a cena quando canta sua impagável Jimmy renda-se. Impossível conter o riso quando ele de maneira escrachada brinca com os astros CaetanoVeloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Janis Joplin e Bob Dylan, colocando todos no mesmo balaio de gatos: Bob Dica, diga/Jimi renda-se!/Cai cigano, cai, camóni boi/ Jarrangil century fox/Galve me a cigarrete//Jani chope chope chope chope.”

Com a participação também de outros nomes fundamentais da produção e do pensamento musical como Wisnick, Tatit, Arnaldo Antunes, Martinho da Vila e Antônio Cícero, o filme percorre todo o seu caminho com estilo, sinceridade e elegância. Tarefa difícil essa de conseguir atingir o equilíbrio. Volto para assistir de novo, sem vergonha de ser Cecília!

Um comentário:

figbatera disse...

Ótima resenha, Dani!
Eu a li tb lá no blog do Acir/Contra o vento.
Parabéns!