quinta-feira, 28 de abril de 2011
Entrevista com o pintor Dnar Rocha
Dando uma revirada na minha caixa de guardados acabei encontrando uma antiga entrevista que realizei com o meu amigo Dnar Rocha, talentosíssimo pintor que partiu deixando um enorme vácuo. Esta entrevista aconteceu numa tarde agradável e fria do mês de julho de 1999. Entre goladas de café, pinceladas e alguns acordes falamos sobre arte, música, vida, sonhos. Infelizmente deixei registrado apenas o conteúdo mais formal em que Dnar fala sobre um de seus quadros expostos no Museu Mariano Procópio. A princípio pretendia aproveitar os esclarecimentos de Dnar para escrever uma monografia sobre o quadro, contudo esta conversa acabou guardada num papel que agora já traz certo cheiro de guardado e um amarelo que me transporta para um certo lirismo. Procurei preservar na íntegra a fala de Dnar, mantendo consequentemente o tom de coloquialidade. Infelizmente não consegui uma fotografia do quadro, o que acarreta de certa maneira uma dificuldade para o leitor, pois Dnar comenta detalhes explicitados na obra como cor, forma, etc.
Dnar Rocha: Na ocasião em que eu pintei esse quadro na sociedade Antônio Parreiras armei esse motivo. Só que primeiro eu armei esse motivo com esse tacho num caldeirão, depois botei a garrafa, o caneco, a garrafa deitada e pintei. O objetivo era o tacho como estudo, e o que tem de novo aí na minha pintura é que a outra é mais acadêmica e essa é mais libertária, o excesso dessa sombra escura que tem no caneco mostra que ela está bem vincada, normalmente no academicismo essa sombra não fica assim, parece que o caneco está furado aqui, quer dizer, a violência dessa sombra é uma das coisas boas que tem o quadro. E em segundo lugar a composição, minha natureza morta a partir daí comecou a se agrupar em três elementos básicos, aí tem quatro que se completa com a garrafa, mas a garrafa está tão integrada ao conjunto todo que a composição são três elementos. Tem uma placa no fundo de cinza que serve de anteparo aos objetos, corta as linhas curvas do tacho e corta a mesa, quer dizer, cortar no sentido assim, você tem uma linha horizontal, coloca uma vertical, você corta, cruza, elimina a horizontalidade de uma linha com uma linha vertical. Então tem aí essa garrafa, a garrafa foi tambem uma coisa nova, pela facilidade de motivo começaram a aparecer na minha pintura essas garrafas, pela facilidade de encontrar de fato um motivo. O tacho é feito de uma forma bem moderna, eu acho um tacho bem moderno esse, a maneira de pintar o tacho, com as cores que pintei.
Daniela Aragão: E essa mesa?
Dnar Rocha: Aqui é uma mesa, esse cinza serve de anteparo com o laranja, o vermelho do tacho, o cobre.
Daniela Aragão: E o branco que é uma cor tão predominante na sua pintura aparece aqui nao é?
Dnar Rocha: Ele aparece pela primeira vez aqui, é a primeira vez que aparece completamente branco.
Daniela Aragão: A presença constante do branco considero uma das características mais acentuáveis na sua pintura. Ele vai crescendo?
Dnar Rocha: Vai, vai crescendo, ampliando, eu vou estudando mais a coisa, mais cor, depois coloco mais outros objetos brancos, mas o achado nesse quadro aqui foi esse contraste, essa peça branca, essa composição é bonita, é boa. Essa coisa já pretendia ser uma peça branca, pois ele é até uma louça meio marfim, mas eu de certa maneira já pretendia o branco, tanto que a asa é completamente branca. Nesse quadro não tive muita preocupação com o contorno, fiz alguns contornos mas não muita coisa.
Daniela Aragao: A natureza morta é muito frequente em seus trabalhos.
Dnar Rocha: Eu sempre estudei muito natureza morta por ser uma coisa assim fácil de achar, é fácil você pintar natureza morta porque o motivo está sempre a sua disposição em casa, uma caneca por exemplo. Já a paisagem solicita a saída para a rua e a natureza morta é fácil, sempre foi a natureza morta motivo de estudo para todos os pintores, todo pintor sempre gostou de pintar natureza morta. Cezanne ficava pintando aquelas naturezas mortas anos a fio, um mesmo quadro as vezes. Ele até usava muita fruta artificial, flores artificiais até, ele chegava a demorar tanto num quadro desses que as flores murchavam, as frutas apodreciam. O que o pessoal lá da Antônio Parreiras pintava era isso, então eu entrei pintando esse negócio, natureza morta. Pintei retrato, figura, mas me concentrei mais na natureza morta, tanto que esse quadro que se encontra no museu foi estruturado a partir da natureza morta. O Rui Merheb gostava muito do detalhe dessa garrafa, ele sempre falava assim: " Vi uma natureza morta sua no museu, tem uma garrafa deitada assim bonita".
Daniela Aragão: Voce escolheu essa obra para figurar no museu?
Dnar Rocha: Não, naquele tempo o Salão Antônio Parreiras tinha um prêmio, na verdade eram tres prêmios aquisitivos e parece-me que esse meu quadro conseguiu o terceiro. Os três primeiros prêmios iam para o museu, chamavam-se Prêmio aquisitivo do museu. Eu não sei o tamanho desse quadro, sei que foi pintado em cima de madeira, compensado. Está dando bicho e nao vai durar muito não.
Daniela Aragão: Van Gogh é uma influencia grande em sua pintura?
Dnar Rocha: Hoje estou mais para Van Gogh que para Morandi, mas nessa época eu estava muito para Morandi.
Daniela Aragão: As combinações de cores costumam se repetir em certas fazes de sua criação?
Dnar Rocha: Esse quadro tenta reproduzir com fidelidade as cores que estavam lá no natural, a mesa tinha essa cor, a mesa é cinza, existe essa cor. Essa é uma placa, uma prancheta que a gente usa para pregar papel e desenhar, para fazer fundo. Eu tentei dar um caráter realista, a garrafa é verde, a parede da cor da parede, o tacho da cor do tacho. Só que acabei fazendo esse tacho um pouco mais moderno, as sombras são mais modernas, tanto a do tacho quanto a da garrafa de cima que está em pé, quanto a garrafa que está deitada e o caneco. As sombras é que dão o toque moderno nesse tom. Nessa época eu estava pesquisando para fazer de acordo com o natural, quando eu comecei a abandonar isso, comecei tambem a inventar, por exemplo, se a garrafa estava verde eu colocava ela azul ou vermelho, eu já não obedecia mais a cor que estava servindo de modelo para mim. O objeto que estava servindo de modelo para mim as vezes era revestido com uma outra cor, eu comecei a me permitir fazer isso. Depois cheguei a fazer bem parecido com o natural, dali comecei a mudar as coisas, as cores, a cor da mesa. Entao hoje faço uma natureza morta de imaginação e vou criando, faço uma pintura de criação, vou criando uma natureza morta inventada por mim mesmo, uma coisa que não tem nada a ver com nenhum lugar, não tem nenhum lugar específico que representa, ela existe só no quadro. A minha natureza morta desponta dessa reflexão que faço, essa pintura natural que parte de mim.
Daniela Aragão: O caráter auto reflexivo que é uma questão inerente também a outras categorias artísticas como a literatura.
É o fazer artístico, eu fui questionando essa coisa do que fazer, que os espanhóis falam “Qui a ser”, o que fazer? Vou pintar natureza morta? Vou pintar cavalo? Vou pintar paisagem? Se eu vou pintar natureza morta vou mudar em quê? Vou pintar do natural, vou armar aqueles cachos de uva igual alguns? Não era a minha visão, não era a visão do meu grupo pintar coisas assim muito sedutoras, motivos sedutores. Um cacho de uva caindo assim, o frango, um faisão dourado caindo assim em cima da mesa né? Não era da nossa visão, o meu grupo não tinha essa visão de pintura, o meu grupo rejeitava essa visão. O meu grupo abrange eu, Carlinhos Bracher, Rui, Stelling e Nívea Bracher. O nosso grupo rejeitava a sedução na arte, a palavra certa, essa foi até uma palavra usada pelo Brandão que utilizou essa expressão sedutora. A gente não tinha essa coisa da sedução, a gente não tinha amor a sedução, a gente não tinha vergonha de pintar por exemplo só uma garrafa, ainda que quebrada, ainda que não fosse . ninguém vender aquilo. Eu me lembro de um pintor lá do meu grupo, Waldir ramos, ele fez por exemplo uma vassoura e uma pedra num canto de mesa no chão, quer dizer, aquilo ali jamais ia ser vendido, a não ser para uma pessoa muito especializada, um especialista. Então a nossa pintura tinha uma certa rejeição ao sedutor, a coisa sedutora, a sedução como motivo. A sedução do motivo como forma de vender, facilitar a vida, tanto que nós todos fomos rejeitados, o Rui foi ser bancário, o Stelling foi pintar livro. Tinha o Frederico Bracher, ele fazia aquelas naturezas mortas com aquelas maças que parecia que estava bem no Éden, bem com toda a matéria, toda a propriedade da maça né? As uvas, parecia que você podia chupar a uva. E a pintura não tem essa finalidade, o nosso grupo achava...E essa coisa que eu tô te falando é novidade, eu nunca falei isso. O nosso grupo não tinha essa intenção de fazer um quadro sedutor.
Daniela Aragão: isso é uma inovação?
Dnar Rocha: era uma inovação, nós eramos pintores que não tínhamos direito ao mercado, o mercado rejeitava porque a gente rejeitava a sedução, o mercado pede sedução. O mercado de música por exemplo quer, muito embora eu goste de muita coisa do Roberto Carlos, mas eles querem Roberto Carlos, esse negócio de Tchan, querem o que é apelativo. O que a Globo mostra no Faustão o povão quer. Então, conclusão, quem é que fica fora do mercado? Egberto Gismonti nem aparece no mercado por rejeição do próprio mercado. O mercado rejeita determinados artistas, então o mercado rejeitou Rui Merheb, rejeitou a mim, rejeitou Stelling, rejeitou esses pintores todos. Por isso que a gente sofreu com a pintura, a gente não fazia quadros sedutores. Até que tentei fazer alguma coisa para sobreviver, mas larguei pra lá e não quis saber disso. Eu corri da pintura ruim, quando fiquei em condições de fazer uma pintura melhor, agora dá pra viver de pintura fazendo pintura boa. Esperei que a minha vida se organizasse, porque eu não queria repetir a experiência do Van Gogh e eu pude fazer uma pintura boa.
O caráter reflexivo da sua produção foi se acentuando com a passagem do tempo?
Dnar Rocha: Foi, eu podia ter pintado isso aqui a vida toda tentando pesquisar a matéria que estava lá e que estava bom, esse quadro eu podia ter pintao ele hoje tal o grau de seriedade que ele tem, é um quadro muito sério, as coisas que estão aqui não estão de brincadeira, a pessoa sabe que um pintor desse que fez isso aqui não é um pintor que tá brincando com pintura.
Daniela Aragão: sua pintura mostra constantemente os diálogos que você está traçando, você está dialogando com a pintura ocidental.
Dnar Rocha: É, com a pintura ocidental, com a nossa visão, porque a nossa visão é ocidental, lógico. Tudo o que fazemos a princípio é resultante de uma visão ocidental do mundo, os Árabes, Muçulmanos nem têm pintura, nem tem museu, não tem nada. O problema da religião lá, não se pode cultuar imagens “não farás para ti imagens”, essas coisas todas, que na bíblia também tem um pouco, mas eles lá são mais radicais. Então voc~e pode-se até conhecer um grande escritor árabe mas pintor você não conhece. Então a nossa visão é uma visão do ocidente, a pintura é um produto do ocidente, uma criação do ocidente. Lógico, os pintores lá da Rússia, mas da Rússia europeia, kandinsk, Chagall, esse pessoal todo ali da Rússia pertence a Russia europeia, Moscou pertence a Rússia europeia. Quer dizer, esses pintores todos do ocidente é que são criadores dessa pintura, então pensei em uma ocasião em editar um livro, um livro só das minhas naturezas mortas, ficaria um estudo muito bom. Está na sua mão fazer um livro sobre as minhas naturezas mortas. Você pega isso e depois vai costurando, depois pega as outras. E aí eu fui pintando natureza morta, paisagem, figura, retrato, interiores e tal, fui fazendo um apanhado de tudo, quando você diz “o que fazer de um artista?”, fui aprofundando em todas essas atividades, do que fazer de um pintor.
Daniela Aragão: E o abstracioniasmo, ele não te pegou, não é?
Dnar Rocha: O abstracionismo não me pegou, eu sou um pintor figurativo, muito embora determinados quadros quase caminhem para o abstracionismo, mas ainda permaneço no figurativo. Eu sou um pintor figurativo. Tem muita coisa para estudar na pintura, a cor, a composição, o desenho do quadro. Tem muita coisa para se estudar numa pintura, se você quiser estudar só composição tira essa garrafa, pinta os três elementos e já muda o enfoque. Há muito o que estudar numa natureza morta, o Cezanne ficou pintando uma maçã durante tempos e tempos seguidos. Esse quadro eu acho muito bom.
Daniela Aragão: Uma coisa que você já me disse faz bastante tempo e que nunca mais me esqueci, você falou assim: “ as vezes eu pinto a natureza, os frutos, as coisas, um momento que me toca muito de fragilidade humana é quando eu vejo as pessoas comendo. É uma motivação para você?
Dnar Rocha: Essas coisas de mesa, comida, falam muito para mim, tem muito a ver comigo e eu sou pintor de natureza morta não é por acaso, gosto muito disso. O Luis Affonso falou por exemplo que o momento que mais o comove do ser humano é quando ele está dormindo. Eu por exemplo me toco muito quando a pessoa está comendo, nos restaurantes, daí que vejo que o ser humano é terra a terra, vira um ser terra a terra quando está comendo. Então tenho uma ligação com todos os objetos da cozinha, panela, eu sempre pintei isso: panela, panela, panela,panela.E na minha retrospectiva que irá sair aí proximamente vai ter muita natureza morta, vou fazer questão de enfocar isso.
Daniela Aragão: É mais que urgente fazermos uma antologia da sua pintura para mostra-la a todos. Você é um pintor muito presente aqui em Juiz de Fora, em todos os lugares vemos você.
Dnar Rocha: Sou bem divulgado aqui, o santo da casa aqui comigo faz milagre, sou muito procurado.
Daniela Aragão: A sua pintura é muito marcante, seu traço é facilmente identificável.
Dnar Rocha: É uma pintura de um grupo, é uma visão que não é só minha, é a visão de um grupo que pensava assim. Essa coisa que eu falei do sedutor, tanto que o Frederico Bracher frequentava a Antônio Parreiras e ficava por lá dando palpite sobre perspectiva de garrafa, a garrafa estava fora de perspectiva, umas coisas assim.
Daniela Aragão: Você se preocupava com perspectiva?
Dnar Rocha: Primeiro estudei bastante perspectiva, então aprendi as leis da perspectiva, primeiro tive uma formação acadêmica para depois romper com isso tudo. Estudei desenho academicamente, fiz retratos acadêmicos, naturezas mortas, estudei desenho. A única coisa que estudei com professor foi desenho, com a katarina Zanéti, pintura não, eu quis ser autodidata. Fiquei no grupo livre de pintores da Antônio Parreiras, não tive espaço por exemplo para fazer coisas sedutoras, esse espaço não se deu porque o meu grupo era muito bom, pensava muito bem a arte, principalmente o Rui, o Rui foi o mais radical de todos. Sempre quando ele ía no museu manifestava o gosto pelas naturezas mortas, falava sempre : “uma bela natureza morta”, dava informações sobre o quadro, uma garrafa tombada por exemplo, o meu grupo rompeu desde o princípio com a pintura sedutora. Nós tivemos que fazer um aprendizado, aprender teoria da perspectiva, teoria de luz e sombra, contraste, tem a sombra própria do objeto, a sombra projetada, tem todo o desenvolvimento do contraste. A perspectiva se divide entre a linear e a aérea, temos todas essas implicações, estudamos tudo isso para o exercício da paisagem e também das naturezas mortas e dos interiores. Depois comecei a usar as leis da perspectiva para a minha pintura, para a feitura do meu trabalho e não me preocupando muito com ela, não me preocupando em seguir leis. Nesse quadro mesmo tem coisas, por exemplo, se você observar a linha dessa mesa ela não coincide com a linha da mesa de lá, já há um certo desprezo com esse esmero pela perspectiva, já não me interessava. Aqui por exemplo a perspectiva está correta, o tacho, esse caneco, essa garrafa, uma perspectiva difícil. Esse canto era um elemento do quadro, botei esse cinza, não tive preocupação em ver se ele estava na altura. Aqui eu já comecei a usar a perspectiva a meu serviço, é menos radical do que isso. Tem um caldeirão que tem um perspectiva assim naquela asa dele, e esse eu já comecei a despreocupar, por exemplo, o outro tacho, uma cozinheira passa uma bucha e fica aparecendo uma sombra assim do cobre. Aqui eu aboli essa parte do academicismo da pintura.
Daniela Aragão: Picasso teve suas fases rosa e azul, seria possível alguma classificação em sua obra? Temporal?
Dnar Rocha: Eu tive pinturas brancas e pinturas mais com cor e sem cor, tem uns que eu radicalizei geral, muita massa de tinta. Em pintura o resultado é o que interessa, se tem massa ou se é aguado isso não importa.
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