terça-feira, 4 de janeiro de 2011
Entrevista com o arranjador, pianista e compositor Cristovão Bastos. Part I
Daniela Aragão: Quando a música apareceu em sua vida?
Cristovão Bastos: Aos sete anos de idade numa apresentação de acordeonistas no bairro Marechal Hermes, em que nasci e morava. Falei com meu pai que queria estudar acordeon e no mês seguinte eu já estava numa academia começando a estudar.
Daniela Aragão: E o piano?
Cristovão Bastos: O piano eu conheci na escola de acordeon, entrei numa escola para aprender acordeon aos sete anos, tinha nessa escola um piano que me chamou atenção e comecei a experimentar por pura curiosidade com uns dez para onze anos, e um pouco mais depois que eu me formei aos treze anos. Me formei em acordeon nessa escola que era de música, mas não consistia num conservatório, era como se fosse. A prova final acontecia no centro da cidade, não na escola em que eu estudava, em seguida vinha um diploma conferido pelo professor.
Daniela Aragão: Interessante observar o seu percurso que bate com a história da formação musical de outros pianistas como João Donato. Você fez a transição do acordeon para o piano, acordeon era um instrumento mais usual na época. O Sylvio Gomes passou por esse processo também.
Cristovão Bastos: Teve uma época em que o acordeon foi uma febre, tinham na escola em que estudei três ou quatro cabines destinadas ao estudo de acordeon. Tinha uma sala para teoria e solfejo. Aconteciam aulas de hora em hora e todos os horários eram preenchidos, imagine quatro professores dando aula, ao menos oito por dia.
Daniela Aragão: Como apareceu sua faceta de compositor?
Cristovão Bastos: A composição apareceu cedo, a primeira de que me lembro aconteceu quando eu tinha uns dez anos e fiz uma música com um parceiro do meu professor de acordeon, ele se chamava Adilson. Ele fez uma letra e nós tocamos para a namorada dele que ficou fascinada pela música, e me lembro de um fato engraçado, estávamos justamente na casa dela compondo essa canção quando pedi uma água e ela falou: “-Essa água é abençoada”. Eu era uma criança e não consigo me lembrar da música.
Daniela Aragão: Você fez cedo a opção pelo piano, tinha já a convicção de que seria músico profissional ou foi um processo espontâneo?
Cristovão Bastos: Foi completamente espontâneo, eu não coloquei na minha cabeça que seria um músico de qualquer maneira. Acontece contudo que sempre fui absolutamente apaixonado por música, com dois meses de escola de música já tirava músicas da rádio e tocava, eu tinha uma curiosidade musical muito grande. Na escola pública tinha sempre a quadrilha do meio do ano, eu devia estar com uns dez anos de idade e me lembro de coisas assim, eu ia tocando e inventando a quadrilha, tocando coisas que não existiam. Eu nunca voltava para o mesmo tema, ia inventando, inventando. Acho que foi a primeira manifestação de que me recordo de improviso e de composição, pois eu ia criando temas, passagens, modulações e o interessante é que as pessoas não notavam, achavam que eu estava tocando música que já existia.
Daniela Aragão: Já tem todo um lado do arranjador florescendo aí não é? Esse arranjador ainda menino que vinha introduzindo modulações, nuances muito próprias.
Cristovão Bastos : Acho que sempre tive cabeça de arranjador, posso falar do primeiro grupo em que trabalhei que era o do Crésio Augusto, que foi meu professor de acordeon. Essa minha primeira relação com o piano se deu através dele, porque ele tocava piano no grupo Crésio Augusto e seu conjuto, eu tocava acordeon, tinha um guitarrista, um baterista, um saxofonista. Tem coisas que considero de muita importância para mim, por exemplo esse primeiro grupo em que fui tocar onde o Crésio me apresentou a um cara chamado Pitanga, que tocava guitarra, mas sem nunca ter estudado teoria musical. Quando vi esse cara tocar fiquei fascinado e pensei: - pô, nunca vou tocar como esse cara! Eu observava esse cara que considero meu primeiro grande mestre. Um cara na qual aprendi muita coisa observando, eu chegava, via ele tocar, pedia para repetir o acorde e ele tocava mas não sabia explicar. O lance de tocar piano e acordeon são coisas diferentes pois o sistema cromático indica a diferença. O acordeon você encosta na tecla, o meu primeiro contato com o piano foi assim, eu ficava tentando tocar mas apanhava muito da mão esquerda. Comecei a tocar numa boate aos dezessete anos e nem poderia na verdade por não ter ainda dezoito. Eu não sabia o que faziam as moças que trabalhavam na noite, tamanha a minha ingenuidade. Um dia o dono da boate falou que o pianista iria embora e perguntou se eu sabia tocar, daí me introduzi na carreira de pianista. Eu sabia colocar a mão no piano, mas tocar era outra história e resolvi no peito, trabalhei um tempo nessa boate e depois comecei a tocar num conjunto. Começou assim em Cascadura, num gesto bem juvenil.
Daniela Aragão: Corajoso
Cristovão Bastos: Por outro lado eu me lembro que eu tocava acordeon
Daniela Aragão: Você é um pianista que construiu sua formação de maneira autodidata?
Cristovão Bastos: Completamente, embora sempre tenha o diálogo com outros músicos, informações compartilhadas.
Daniela Aragão: Você tem composições com vários parceiros como Aldir Blanc, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Ana Terra e Abel Silva..
Cristovão Bastos: Tenho uma parceria somente de choros com Paulinho da Viola, nesse tempo nosso de parceria temos quatro músicas juntos. Ele é meu compadre, padrinho do meu filho mais velho, o Allan.
Daniela Aragão: Com cada parceiro implica uma construção musical diferente?
Cristovão Bastos: Eu acho que não. Quando mostro uma música para um parceiro e ele gosta, a minha responsabilidade acabou. Então quando um parceiro me dá uma letra para eu musicar, a responsabilidade dele também acabou. É assim com Ana Terra, Sérgio Natureza, Paulo César Pinheiro. Do jeito que você faz a pergunta imagino que você queira dizer quando a parceria acontece junto.
Daniela Aragão: Pois é, Aldir é um, Ana Terra é outra, Paulo César, Chico Buarque, cada um com sua singularidade. Esses encontros são com pessoas diferentes que trazem suas próprias marcas.
Cristovão Bastos: Uma mesma música que eu desse para Aldir, Ana Terra ou Paulinho a diferença estaria por conta do parceiro.
Daniela Aragão: Se por exemplo você está num processo mútuo?
Cristovão Bastos: Isso vai se dar na empatia. Você pode inverter o processo assim: se uma pessoa dá uma letra para mim e a mesma letra para Paulinho da Viola.
Daniela Aragão: Aproveito para te perguntar sobre suas duas belíssimas composições que já se tornaram de certa maneira antologizadas: Resposta ao Tempo, com Aldir Blanc e Todo o sentimento, com Chico Buarque.
Cristovão Bastos: As duas músicas eu mostrei para os parceiros quando já estavam prontas e havia passado um certo tempo. Todo sentimento, quando mostrei para o Chico, talvez já tivesse passado uns dois meses. Mostrei primeiro para a Miúcha que gostou muito.
Daniela Aragão: A gravação de Nana de Resposta ao Tempo é única, sublime, fica difícil imaginar outras depois dessa.
Cristovão Bastos: Um arranjo feito pelo próprio compositor que trabalhava com Nana, eu já devia fazer coisas com Nana há uns dez anos quando essa música foi feita. Nós temos uma afinidade musical muito grande, não tem explicação para o que eu senti quando fiz esse arranjo, é uma coisa de momento, essa eu cheguei no estúdio e cinco minutos depois fiz a introdução.
Daniela Aragão: Interessante você ter me dito ontem que a introdução tem uma marca tão densa e impactante que quando você toca as primeiras notas o grande público de imediato reconhece e corresponde efusivamente.
Cristovão Bastos: Dá um frisson na platéia, tem aquelas meninas que gostam. Não foi uma música pensada pracaramba e nem feita para a minissérie. Eu acho que essa música tem a força dela embora a televisão seja um veículo legal.
Daniela Aragão: Interessante é que tanto Todo Sentimento quanto Resposta ao tempo trazem a marca do tempo e vista por dois grandes compositores que são Chico Buarque e Aldir Blanc. Em Todo Sentimento se tem a marca da vivência do tempo de uma relação amorosa, a história de um casal, enquanto em Resposta ao tempo se tem o tempo em sua dimensão ampla, existencial, metafísica. Você parece trazer essa sugestão da temporalidade em sua música.
Cristovão Bastos: Eu compus raio de luz com Abel Silva, canção que foi até tema de uma novela, é absolutamente leve: “Você chegou, iluminou o meu olhar”. Foi gravada pela Barbra Streisend, ela gravou com um arranjo lindo. Eu coloco muita música no facebook, certa vez um cara disse por lá que o arranjo era pasteurizado. Que coisa bonita que a Barbra fez e a madrinha da música foi Itamara Koorax, que levou para o Abel. Suave veneno foi encomenda.
Daniela Aragão: E Cinquenta anos, sua parceria com Aldir?
Cristovão Bastos: Ele estava fazendo o disco 50 anos e me pediu uma canção, aí eu mandei essa canção para ele, que se tornou a canção do disco. Ele me ligou as duas ou três da madrugada.
Daniela Aragão: Eu acho que essa canção tem um eu muito marcadamente masculino por isso considero antológica a gravação do Paulinho da Viola.
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