sexta-feira, 11 de setembro de 2009
Slow music : arte maior de iniciados
Para quem conhece bem
Os caminhos
Do amor seu vai e vem
Quem conhece
Fernando Brant
Faz uns três meses que não escrevo nenhuma crônica sobre canções, discos, vislumbramentos sonoros. Não que tenha deixado de ouvir músicas que me tocassem, nesse tempo passaram por meu mp3 muito Francis Hime, Edu Lobo, Rosa Emília, Lobão e principalmente Joyce. Sou fã declarada de Joyce, sempre que posso vou aos seus shows e não deixo de colocar seus CDs para escutar. Há algum tempo não sai de meus ouvidos o antigo Passarinho Urbano, gravado pela cantora em 1976. Nele pode-se ouvir a Joyce dos primórdios, com um timbre consideravelmente mais agudo e o violão espetacular. Um disco que traz um repertório absolutamente nacional, com canções que condiziam com o contexto repressivo da época como Acorda amor, Radiopatrulha, Pesadelo e Pede passagem. O belo poema Passarinho, de Mário Quintana, musicado por Joyce e que dá sugestão ao título do disco, alegoriza a necessidade de cantar como uma das saídas existenciais: “Todos esses que aí estão/ Atravancando o meu caminho/ Eles passarão.../Eu passarinho!”.
Joyce canta com a leveza e suavidade de um passarinho, o teor denso evidenciado em algumas letras é suplantado pela interpretação da cantora, que valoriza interpretações delicadas e plenas de pulsação lírica. Acorda Amor, canção antológica de Chico Buarque, ganha a bela e enxuta leitura de Joyce, em que a voz de um agudo puríssimo é acompanhada pelas batidas precisas de seu próprio violão. A sedução toma o lugar da opressão, onde Eros se sobrepõe a Tanatos, e a força maior da vida clama por espaço, como em Pesadelo, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro: “Quando um muro separa/Uma ponte une/Se a vingança encara/O remorso pune/Você vem, me agarra/Alguém vem, me solta”.
Após Passarinho Urbano, Joyce gravou muitos outros discos de qualidade indiscutível como Tardes Cariocas, Saudade do futuro, Ilha Brasil, Tudo Bonito, Banda Maluca e tantos mais. Ela é uma artista completa: compõe, canta, faz arranjos e toca muito bem violão. Embora a música popular brasileira seja povoada por uma imensidão de cantoras, conta-se nos dedos aquelas que incorporam tantas qualidades, a exemplo de Joyce.
Celebrando quarenta anos de carreira, Joyce acaba de lançar Slow Music, seu tão sonhado disco: “Este é o projeto dos meus sonhos. Sonhei com ele pela primeira vez há 10 anos atrás, e agora, finalmente, ele se materializa em sons”. Slow Music é um cd primoroso da primeira a última faixa, em que o amor é tema onipresente. O título “Slow” sugere o andamento das canções, soft, cool, em homenagem a três grandes ícones do bom gosto e elegância no gênero: Shirley Horn, João Gilberto e Bill Evans. Em termos de condução rítmica, Slow Music soa até atípico no conjunto da obra de Joyce, que vem se consolidando cada vez mais, principalmente no mercado exterior, como uma cantora fast: “eu tenho um estilo que não é nada slow, na verdade é fast pracaramba. Eu sou mais conhecida até nos trabalhos internacionais pelas músicas de andamento rápido, pelo samba jazz, pelas coisas mais swingadas, até meio dançantes e tudo, então Slow Music pra mim é uma experiência nova no sentido de buscar esse caminho”.
“Música é alimento para alma”, diz a cantora, e a idéia do disco surgiu a partir do momento em que Joyce leu o manifesto do movimento slow food, realizado na Itália. O manifesto foi redigido a partir da inauguração da primeira lanchonete MC Donalds em Roma, causando imensa revolta na população. Contra o despejo desgovernado de junk food, comida de péssima qualidade, os italianos reinvindicaram o resgate e a valorização das qualidades essenciais da culinária italiana, como sabor e tempo de preparo. Assim como a junk food invade avassaladoramente os paladares dos cidadãos do mundo, a junk music também entorpece os ouvidos das pessoas, que são submergidas pela produção musical também de péssima qualidade. Joyce enfatiza que: “A gente ingere junk music pelos ouvidos e aquilo fica dentro de você o tempo todo, queira você ou não. Você está na rua, você ouve de tudo. Então a minha idéia em relação a isso era exatamente fazer um disco que pudesse ser colocado em situações de grande stress, por exemplo entrando em São Paulo pela Marginal Tietê”.
Com sua levada única, que explicita plena maturidade e domínio sobre a escolha do repertório e dos músicos que a acompanham -os três mosqueteiros - Joyce faz sua ode ao amor. O amor celebrado pela artista ultrapassa o furor do amor paixão, comumente entoado pelos representantes da junk music. Joyce canta acima de tudo o amor agridoce, vivenciado, saboroso e “madurado de carinho”, como descreve Fernando Brant nos versos de Fruta Boa.
De 1990, momento da idealização, até a gravação definitiva do cd, se passaram dez anos, tempo que Joyce alegou ter sido necessário para sedimentar com serenidade e sabedoria os amores vividos. As composições de Slow Music analisam vários aspectos do amor: amor com toques de ironia em Samba do Grande Amor (Chico Buarque), amor perturbado pelo ciúme na belíssima Medo de Amar (Vinícius de Moraes), amor sincero e por isso perigoso em Amor Amor (Sueli Costa e Cacaso), amor expressão pura de alegria em But Beautiful ( J. Burke e Van Heusen), amor separação, numa espécie de nova versão de Trocando em Miúdos em Sobras da Partilha (Joyce e Paulo César Pinheiro), amor pequeno, feito para aprendizes na delicada Valsa do pequeno amor (Joyce Moreno).
A concepção do disco ressalta a qualidade dos arranjos que primam por interpretações que dão ênfase ao caráter jazzista. O gabarito do trio de músicos composto por Tuty Moreno (bateria), Jorge Helder (contrabaixo) e Hélio Alves (piano) permitiu altos vôos sonoros. Ouvi inúmeras vezes canções como Slow Music e Valsa do pequeno amor, desfrutando de cada nuance dos improvisos. Valsa do pequeno amor é um exercício de delicadeza, inteiramente composta por Joyce a música fala dos pequenos amores que são vivenciados numa condição de prelúdio para o almejado grande amor. A Joyce menina-mãe-mulher dos tempos de Clara e Ana, agora é a mulher-senhora, dona de uma considerável bagagem artística e existencial: “O grande amor/arte maior de iniciados/predestinados são bem poucos os mortais/é tenebroso, é embriagador/ mas só se mostra inteiro em esplendor/ pra quem viveu/ quem teve o seu pequeno amor”.
Slow Music é preciosidade de gente grande.
quinta-feira, 3 de setembro de 2009
Essa cidade me atravessa
Absorvo o mundo através de música. Quando estou conversando com alguém, ouvindo uma palestra ou alguma conversa de outrem trazida pelo ar, quase sempre surge algum verso de alguma canção que contém aquela palavra. Assisti num dvd da cantora Ana Carolina um divertido e inusitado bate-papo entre ela e Chico Buarque, em que ambos falavam da mania de pronunciarem as palavras de trás para frente. Hábito incontrolável, afirmaram eles.
Troquei o cenário monótono da academia de musculação pela matéria viva das calçadas, da fumaça dos carros, da sinuosidade dos morros, da força das ondas, do calor das areias, do cheiro de maresia, da sensualidade dos corpos, da fome dos corpos, da curvatura dos arcos. Da beleza das palmeiras, do sabor da água de coco, da pulsação criativa, dos sotaques, da inclinação para o espetáculo, do ritmo acelerado,dos rompantes contemplativos, das muitas cores, do humor, da ousadia, da alegria, da sedução e do espanto.
Em nosso cancioneiro não falta música que preencha os mais diversos estados de alma. Desde que me mudei para o Rio de Janeiro, me invadem os versos de O nome da cidade, belíssima canção feita por Caetano Veloso, inspirado na personagem Macabéa, do romance A hora da estrela, de Clarice Lispector. Na madrugada de ontem bateu uma vontade de tocá-la para o meu amigo Marcelo, companheiro de apê carioquíssimo. Cantei verso por verso, prolongando cada nota, cada palavra, como se me justificasse através da poesia de Caetano: “Cheguei ao nome da cidade/ Não à cidade mesma espessa/ Rio que não é rio; imagens/ Essa cidade me atravessa/ Será que tudo me interessa/ Cada coisa é demais e tantas/ Quais eram minhas esperanças?/ O que é ameaça e o que é promessa/ Ruas voando sobre ruas/ Letras demais, tudo mentindo/ O Redentor, que horror! Que lindo!/ Meninos maus mulheres nuas/ A gente chega sem chegar/ Não há meada, é só o fio/ Será que pra meu próprio rio/ Esse rio é mais mar que o mar?”
Sinto-me como uma Macabéa do alto das Gerais que, embora tenha ouvido bem mais que o rádio-relógio, mal consegue dissimular a ebulição de sentimentos. Essa cidade me atravessa em sua imensidão, suas ofertas, seus contrastes, seu fascínio. Terra ensolarada de misturas: “Eu quero te mostrar o Rio de Janeiro em que o Corcovado está de costas”, disse meu querido amigo carioca, o estudioso de música e professor Alberto Moby. Flano, me enfronho, participo, mas consciente da falta de traquejo, que espero vir com o tempo, rápido. Domingo passado aprovei minha performance de “não Macabéa”, ao me enturmar rápido no churrasco do meu outro amigo músico e poeta, Rogério Batalha. Este já me presenteou com um ótimo cd de composições suas em parceria com Moacyr Luz e Du Basconça, gravado ao vivo no Centro de Referência da Música Carioca.
Em compensação, fui intensamente Macabéa quando recuei diante da levada sedutora de um “menino-homem do rio”, que desejo desde os tempos de vivência nas gerais. Uma menina-mulher tonta em meio à poesia do instante, lia-absorvia suas palavras, de cabeça baixa, como se pudesse medir o desmedido: “Te acho lindo, você é muito interessante, mas tô com medo”. No fundo só rindo de mim, dele, de nós. Faltou-me “jeito de corpo”, “ah bruta flor do querer”.
Vou buscando na memória outras canções que também descrevem esses múltiplos Rios. Idilicamente sereno e convidativo como nos versos de Antônio Maria: “Vento do mar no meu rosto/ E o sol a queimar, queimar/ Calçada cheia de gente a passar, e a me ver passar/ Rio de Janeiro, gosto de você/ gosto de quem gosta/ Deste céu, desse mar/ Dessa gente feliz”. Sensualmente Zona Sul como canta Marina Lima, sua eterna musa: “O hotel Marina quando acende/ Não é por nós dois/ Nem lembra o nosso amor/ Os inocentes do Leblon/ Esses não sabem de você”. Levemente Bossa Nova, como exalta Vinícius de Moraes: “Ela é carioca/ Ela é carioca/ Basta o jeitinho dela andar/ Nem ninguém tem carinho assim para dar/ Eu vejo na cor dos seus olhos/ As noites do Rio ao luar”.
Liricamente suburbano como entoa Chico Buarque: “Lá não tem moças douradas/ Expostas, andam nuas/ Pelas quebradas teus exus/ Não tem turistas/ Não sai foto nas revistas/ Lá tem Jesus/ E está de costas/ Fala, Maré/ Fala, Madureira/ Fala, Pavuna/ Fala, Inhaúma/ Cordovil, Pilares/ Espalha tua voz nos arredores/ Carrega tua cruz/ E os teus tambores”. Poeticamente sublime como descreve também Chico Buarque: “Dois irmãos, quando vai alta madrugada/ E a teus pés vão-se encostar os instrumentos/ Aprendi a respeitar tua prumada/ E desconfiar do teu silêncio/ Penso ouvir a pulsação atravessada/ Do que foi e o que será noutra existência/ É assim como se a rocha dilatada/Fosse uma concentração de tempos”.
Festivo como vibra Gilberto Gil: “O Rio de Janeiro/ continua lindo/ O Rio de Janeiro/ Continua sendo/ O Rio de Janeiro/ Fevereiro e Março/ Alô, alô, Realengo/ Aquele abraço!/ Alô torcida do flamengo/ Aquele abraço.”. Luminosamente fascinante como evoca Adriana Calcanhotto, ex Macabéa gaúcha confessa: “Cariocas são bonitos/ Cariocas são bacanas/ Cariocas são sacanas/ Cariocas são dourados/ Cariocas são modernos/ Cariocas são espertos/ Cariocas são diretos/ Cariocas não gostam de dias nublados.” Erótica e poeticamente marginal como expõe Cazuza: Você nunca varou a Duvivier às cinco/ Nem levou um susto saindo do Val Improviso/ Era quase meio-dia no lado escuro da vida/ Nunca viu Lou Reed Walking on the outside/ Nem Melodia transvirado/ Rezando pelo Estácio/ Nunca viu Allen Ginsberg/ Pagando michê na Alasca”. Romântico como revela Luiz Melodia “O Estácio acalma o sentido dos erros que eu faço/ Trago, não traço, faço, não caço/ O amor da morena maldita do Largo do Estácio”.
Aconchegante como quer Aldir Blanc: “Só fico à vontade/ Na minha cidade/ Volto sempre a ela/Feito criminosa/ Doce e calorosa/ A minha história/ Escorre aqui/ Há quem não se importe/ Mas a Zona Norte/ É feito cigana lendo a minha sorte”. Malandramente carioca como suínga Seu Jorge: “O Rio de Janeiro é a capital/ Eu vi a nega no Morro da Mangueira/ Vi a loura na praia de bobeira/ Mas a mina da Vila Isabel é uma mulher sensacional”. Cantar o Rio ainda vai me render muitas e muitas páginas, então, já é.
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