segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Hermeticamente Waly



Acabo de assistir a Pan Cinema Permanente, ótimo documentário de Carlos Nader que revela-desvela em fragmentos de sonhos, cores, desejos e delírios o poeta e multiartista Waly Salomão. O que não faltam são adjetivos para classificar esse homem que viveu sob a égide do excesso. Waly, poeta baiano barroco do sorriso largo e espontâneo, dos movimentos exagerados, do discurso hiperbólico, do humor, da fantasia, da desrepressão.

Esse filme de Carlos Nader foi eleito o melhor documentário no Festival Internacional de Documentários não por acaso, pois é resultado de um trabalho de quinze anos e mais de trezentas imagens de Waly no Brasil, na Suíça, na fronteira com a Venezuela e até na Síria, terra de seu pai.

Pan Cinema Permanente é título de um poema de Waly dedicado a Carlos Nader que consta em Algaravias, seu melhor livro. O filme privilegia uma linguagem entrecortada que percorre vários momentos da vida do artista, ao mesmo tempo em que vai traçando um panorama do comportamento de um Brasil da época do desbunde até os tempos atuais da globalização. É filme verdade que se projeta no universo de sonho e inquietude de Waly: “Chega desse papo furado de que o sonho acabou, a vida é sonho, a vida é sonho, a vida é sonho”.

O filme dirige seu foco para o Waly persona pública e demonstra o quanto este artista de índole vulcânica viveu a vida sob o primado da representação. Para ele a vida não passava de um grande teatro em que as pessoas colocam suas máscaras de acordo com a necessidade das circunstâncias. Waly fez de si mesmo um ator em permanente estado de alerta, jamais abandonava o personagem, transformando qualquer situação banal em episódio dramático e festivo: “Não preciso de verdades. Para viver você só precisa de mentiras”.

Admirado mas também rechaçado, seduzia ou afastava os que se encontravam ao seu redor. Rogério Batalha, poeta carioca que conviveu muito com Waly me contou algumas passagens engraçadas do excêntrico poeta. Disse que certa vez se aproximava deles um “pseudopoeta” o qual Waly não suportava, a saída encontrada pelo furacão Waly foi criar uma cena: “Anda Batalha, finja que estou te devendo mil reais, fala alto me cobrando com raiva”. Diante de tamanho conflito cênico o pseudopoeta desapareceu.

Contudo a que se diferenciar a produção poética de Waly da persona pública. O epíteto carnavalizante fazia parte de sua composição cênica, ele era o hiperbólico vivaz com sua presença irradiante nas atividades culturais, nas entrevistas e nas conferências. Entretanto sua poesia vai na contramão da postura anárquica, irreverente, marginal e espontânea comumente classificada pela mídia. Sua criação poética é antiespontaneísta, extremamente culta e elaborada resulta de um traballho sério de pesquisa e construção estética. Em Fábrica do poema, poema metalingüístico dedicado a arquiteta Lina Bo Bardi, Waly explicita sua faceta de ourives da palavra: “Sonho o poema de arquitetura ideal/ Cuja própria nata de cimento encaixa palavra por palavra,/tornei-me perito em extrair faíscas das britas e leite das pedras/acordo/ e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo, acordo”.

A linguagem do filme é permeada de substrato poético e revela o quanto a poesia era onipresente na existência de Waly. Seus próprios insights performáticos vinham imbuídos de poesia. Ao substituir a transparência pela riqueza difusa da incorporação de um personagem de si próprio, Waly tentava transcender os limites da linguagem e do cotidiano banal, estéril, deserotizado. No comportamento excessivo do artista residia a luta permanente entre as forças de Eros e Thanatos, onde o humor refinado despontava como máscara-disfarce, numa espécie de solução corrosiva: “minha alegria permanece eternidades soterrada/ e só sobe para a superfície/através dos tubos alquímicos/ e não da causalidade natural./ela é filha bastarda do desvio e da desgraça,/ minha alegria: um diamante gerado pela combustão/ como rescaldo final de incêndio”.

Além de poeta Waly exercia o ofício inclassificável de “agitador cultural”, participava de eventos literários, dirigia shows, prefaciava livros, compunha letras de música, transitando entre as margens e os centros. Cheio de humor contou que devido ao sucesso da canção Mel, em parceria com Caetano Veloso, começou a ser chamado de “seu abelha”. Aliás, no filme de Carlos Nader Caetano interpreta a bela canção que compôs em homenagem ao saudoso amigo. Morte e vida se misturam nessa elegia delicada: “findaste o teu desenho/e a tua marca sobre a terra resplandece/resplandece nítida e real/entre os livros e os tambores de Vigário Geral/E o brilho não é pequeno”.

A relação com as artes plásticas se deu também com intensidade na trajetória criativa de Waly, profundo admirador da obra do amigo Hélio Oiticica, trocou com este uma série de experiências poéticas, artísticas e ideológicas. Nos Babilaques, invenção designada por ele de “performance-poético-visual”, é visível a maestria com que trabalha no nível da multilinguagem: compõe, superpõe, funde textos, objetos, luzes, planos, imagens, cores e superfícies.

Busco na memória mais uma vez as palavras de Batalha: “Eu nunca vi alguém com tanta paixão pela vida, com tanto tesão em viver”. A canção Olho de Linde, realizada por Waly em parceria com Jards Macalé é na verdade seu auto retrato. Viva esse vulcão criativo: Quem fala que sou esquisito hermético/É porque não dou sopa estou sempre elétrico/Nada que se aproxima nada me é estranho/Fulano sicrano beltrano/Seja pedra seja planta seja bicho seja humano/quando quero saber o que ocorre à minha volta/ligo a tomada abro a janela escancaro a porta/experimento tudo nunca me iludo//tudo sentir de todas as maneiras/ é a chave de ouro do meu jogo”.