terça-feira, 27 de dezembro de 2011

domingo, 6 de novembro de 2011

Olho de Lince


Encontro dedicado à poesia brasileira dos anos oitenta aos dias atuais na Puc-Rio. Na mesa central Júlio Diniz, Antonio Cícero, Eucanaã Ferraz e Ana Cristina Chiara discutiam a existência e o destino da poesia e dos poetas no mundo atual, alternando-se entre falas que misturavam múltiplas sensações como desencanto, exaltação, humor e surpresa. Uma moça sentada ao meu lado subitamente sussurrou: “Imagina se o Waly Salomão estivesse sentado agora nesta mesa”. Ambas tivemos vontade de rir, pois a presença de Waly naquele instante certamente consistiria numa quebra absoluta dos protocolos que regem o universo acadêmico. Despudorado, verborrágico, anárquico e visceral Waly pareceu ser/estar sempre no avesso, do avesso, do avesso, do avesso.

Conheci primeiramente o Waly das letras vibrantes e plenas de eros como Mel: “O abelha rainha faz de mim/um instrumento de teu prazer/sim, e de tua glória/Pois se é noite de completa escuridão/Provo do favo de teu mel/Cavo a direita claridade do céu/E agarro o sol com a mão”. Mais tarde tomei contato com sua produção poética que explicita o percurso de um criador que sempre foi consciente do poder da palavra, no espaço da folha em branco Waly mantinha um estranho equilíbrio entre a sabedoria e a experimentação.

Retiro da minha pilha de cds Real Grandeza, ótimo disco que reúne o repertório da dupla. Com a participação de Frejat, Luiz Melodia, Maria Bethânia e Adriana Calcanhotto o disco traz a seiva dos versos de Waly acrescida pela riqueza musical de Macal. Olho de lince, composição que inaugura o cd é no fundo o autoretrato do poeta e artista multicriativo Waly Salomão; “Quem fala que sou esquisito hermético/É porque não dou sopa estou sempre elétrico/Nada que se aproxima nada me é estranho/Fulano sicrano beltrano/Seja pedra seja planta seja bicho seja humano”. “Olho de Lince” abre o cd com classe, cujo piano minimalista de Cristovão Bastos impõe um toque de refinamento e expande o caminho para o ecoar das vozes de Waly e Macalé.

Sendo uma homenagem póstuma a Waly, o disco tem como mérito a atmosfera de frescor que dele exala, cuja participação de músicos de uma geração mais recente como Frejat e Adriana Calcanhotto, imprime nas canções um olhar contemporâneo marcado por um novo formato conceitual. Apesar de inserções modernas que vão além dos músicos convidados, o disco mantém a essência dos autores. “Anjo exterminado” interpretado pelas vozes e violões de Calcanhotto e Macalé é um belo registro que evidencia a inteiração sonora dos dois artistas, cuja voz da cantora impõe certa leveza e graciosidade cheia de swing aos versos de Waly: “Anjo exterminado/ Olho o relógio iluminado/ Anúncios luminosos/Luzes da cidade/Estrelas do céu/Me queimo num fogo louco de paixão”.

A força interpretativa de Macalé jamais me deixa passiva e indiferente, numa crônica inteiramente dedicada a ele fiz questão de registrar o quanto havia me tocado sua interpretação de Ne me quitte pas. Em olho de Lince ele regrava Rua real grandeza com o simples auxílio de seu personalíssimo violão. Sua voz é portadora também de uma marca única que deixa a emoção extravasar sem cair no melodrama. Entre movimentos de contenção e expansão Macalé fixa seu próprio eixo de condução e equilíbrio musical. Certamente uma alma irmã de Waly que lhe presta uma homenagem digna e emocionada.

sábado, 30 de julho de 2011

Entrevista com o compositor Márcio Itaboray


Daniela Aragão: Como começou a música em sua vida?

Márcio Itaboray: Eu não consigo saber isso porque a música acontecia dentro da minha casa, meu pai era músico de tocar no rádio, compositor. Nasci em Juiz de Fora e me mudei muito cedo para São João, lugar em que meu pai costumava levar os artistas. Ele levava lá a Angela Maria no auge, Gregório Barros, Jackson do Pandeiro e a Almira, todos acompanhados por ele. Eu era muito novinho, mas me lembro que a música acontecia por lá direto. Meu avô era músico e farmacêutico prático, ele montava uma banda numa cidade e uma farmácia, teve onze filhos sendo que nenhum nasceu na mesma cidade. Todas essas cidades que ele percorria ganharam uma farmácia e uma banda montados por ele, ele tocou na banda do Ari Barroso em Ubá. Então a música na minha vida é isso e as pessoas costumam falar que pelo fato de eu ser médico a música acontece na minha vida como válvula de escape, não é nada disso. Se não fosse a música eu não existiria, não é válvula de escape, é um prazer. Eu gosto muito de uma frase dita pelo Yamandú Costa, várias vezes ele chegou no lugar de fazer o concerto e na hora do show percebia que tinha esquecido o instrumento. Daí perguntavam a ele: “- você não tem cabeça não?” E ele respondia: “- Para mim faz parte do meu corpo”. Então a música para mim é isso aí. Meu pai por ser também representante comercial viajava muito e eu lhe fazia companhia, via ele compor no volante muitas vezes e consequentemente comecei a compor também desde novinho. Fiz música com sete, oito anos, música de boemia que era o estilo que meu pai fazia. Ele cantava essas músicas para mim e me lembro disso, uma que se chamava Triste Boêmio: -Sou um triste boêmio, vivo nas noites de sereno esperando meu amor/ há dias que ela não vem . Essa foi a primeira letra que fiz com oito anos, então a música em minha vida é junto com absolutamente tudo, para mim ela é tudo, eu não fui músico profissional, não quis ser, músico instrumentista eu não seria, eu queria ser compositor, queria ser não, o que sou é compositor, se as músicas são boas ou ruins cabe se julgar, mas eu sou compositor. Para mim a coisa com música é compor e tem o fato de eu adorar música, não vivo sem música, Nietzche tem uma frase que diz que a vida sem música seria um erro e para mim a música é exatamente isso, um sentido para minha vida.

Daniela Aragão: Você se mostrou desde pequeno tocado pela palavra, pelos versos.

Márcio Itaboray: Sim, claro. Meu pai cantava uma música que dizia assim: “Quase que eu disse agora o nome dessa mulher”, não me lembro bem dos versos, mas o cara vem falando de uma mulher que ele na verdade não quer dizer o nome, a história de uma mulher que deu uma sacaneada no cara e que ele coloca no final da canção assim : “da magoa que me de devora quase que eu disse agora o nome dessa mulher”. Eu era pequeno e perguntei ao meu pai o que era aquilo e ele falou que só tinha uma explicação para aquilo, o fato da mulher se chamar Débora, da magoa que me devora quase que eu disse agora o nome dessa mulher. Isso vinha na cabeça dele. Daí eu provocava o meu pai com isso e eu tinha uns sete anos.

Daniela Aragão: A importância da palavra para você é muito explícita tanto que você não dá ênfase ao som de imediato, mas a palavra musicada, ou melhor, a palavra cantada.

Márcio Itaboray: Ah sim, a palavra musicada, a palavra cantada, por isso que acabei te contando sobre essa música em que me chamava atenção a palavra “devora”, que poderia ser talvez uma intenção camuflada do compositor em dizer o nome da amada Débora, foneticamente devora não é Debora até porque as sílabas tônicas são outras, mas é interessante.

Daniela Aragão: Suas composições revelam uma densidade existencial, nunca ficam na superficialidade. Você também se une a parceiros que possuem essa marca da carga existencial densa, como a Sueli Costa por exemplo. Certamente o legado de seu pai resultou em influência até no substrato de suas letras,pois você não abandona de certa maneira a tradição da canção “dó de peito”, os grandes dramas que assolam pequenos recortes do cotidiano. Esse fascínio que você alimenta também por histórias de vida.

Márcio Itaboray: É isso mesmo, me lembro que essas músicas que ouvia na infância eram com meu pai mesmo, o rádio pegava menos e como não tínhamos televisão meu pai tocava todas essas músicas daquela época e tinham músicas extremamente tristes que davam vontade de chorar e eu chorava. Ele cantava de uma forma tão forte, me lembro dele cantando uma música que o Orlando Silva cantava : Nosso senhor me perdoa. Essa música era de uma tristeza, as músicas então no geral eram muito tristes, vinham de dentro e os caras sofriam muito. Fico imaginando que como quase todos aqueles músicos eram boêmios e não tinham uma estrutura de vida muito boa, eram rapidamente trocados pelas mulheres. Então é só música de abandono, fiz a música Lupicínio que foi gravada no meu disco pela Sueli Costa exatamente por isso, na época que a compus eu era namorado de uma moça e percebi que não estava tão feliz naquela relação e o Lupicínio já falava “ah esse moços ah se soubessem o que eu sei”, tanto que a Sueli fez a introdução da canção em menor, pois com Lupicínio era em maior, ela joga no ar “Esses moços”. Vinicius de Moraes já veio com uma postura diferente em relação a Lupicínio, o poeta dizia que é melhor sofrer junto que viver sozinho. Daí falei que deveria ter ouvido muito mais Lupicínio e não Vinicius. Então é assim, como diz o Cacaso com Edu: “- Só que no amor quem perde quase sempre ganha veja só que coisa estranha saia dessa se puder”. Essa densidade acho que vem dessa formação que adquiri ouvindo as músicas com meu pai, era só porrada, não tinha meio termo não, como Roberto Carlos: - daqui pra frente tudo vai ser diferente. Não tinha nada disso não, se você não gosta de mim eu vou morrer. Meu pai cantava assim: “- Se Deus um dia olhasse a terra e visse o meu estado na certa compreenderia o meu viver desesperado, é doloroso mas infelizmente é a verdade”. Então o cara cantava a alma dele, tem uma música que o Milton Nascimento gravou, Tito Made e Agostinho dos Santos também e que dizia: - a noite está tão fria chove lá fora e a saudade sua. As coisas eram sofridas, então acho que para mim não faz sentido fazer uma música de brincadeirinha, mas eu faço muito jingle. Os jingles da prefeitura são quase todos meus, da Unimed. Agora uma música minha não tem como ser superficial. Como falo numa música: quero ter pouca saudade, quero ter muita alegria. Eu quero, mas não consigo. É difícil.

Daniela Aragão: As vezes uma nostalgia, um desejo, mas sem ser puramente melancólico.

Márcio Itaboray: Eu acho que o que me move é uma angústia permanente, vi recentemente um filme chamado “A falta que nos move”, sensacional. Brinco que quando faço meus projetos para o ano seguinte, são todos iguais a mais de dez anos e não projetos de grana, projetos de como lidar comigo mesmo. Um é que não consigo tirar férias de mim, o álcool diário para poder tratar da angústia permanente. A medicina me fez muito bem, pois eu lido com isso, a dor do outro. Tem muita coisa que já compus inspirada nessa minha vivência como médico, todo mundo que te procura na verdade quer é salvar a alma, não o corpo. Quando você não está doente você não pensa no seu corpo, mas pensa na sua alma o tempo todo. Você só sabe que tem dente quando dói ou quando está mastigando. A doença ameaça o seu eu, estou dizendo alma mas não sei qual a melhor expressão para falar, todo mundo tem medo de morrer na verdade por causa da alma. Se a pessoa quer enfeitar o corpo, quer na verdade enfeitar a aparência dele, que a alma seja mais apresentável.

Daniela Aragão: E essa característica da pulsação da “ânima” em suas composições aparece como falamos nas sua canções em parceria, como fica esse compartilhar com os parceiros?

Márcio Itaboray: Isso começou da seguinte forma, aos quatorze anos ganhei um festival no colégio João XXIII e nessa época conheci o Chico e o Bilinho Teixeira e chamei-os para tocar comigo no Festival da Cidade, que ganhamos com uma música minha. Em 72 montamos um grupo para tocar no Festival Intercolegial, nós ganhamos e o prêmio era participar do festival da cidade que era aquele grande festival, quando o Mamão fez “Tristeza pé no chão”. Nesse festival tinha o Guarabira, Maurício Maestro e tantos outros. Decidimos fazer um show nosso em 75 e foi o primeiro show de música popular do Pró Música, estimulei os parceiros a compor comigo que foram o Guto Gomes, Márcio Hallack e o Bilinho, por incrível que pareça eu fazia letra, comecei como letrista. Depois conheci o Mamão e o pessoal do Beco, eu era guitarrista do show do Mamão. Em 76 fiz um samba com o Mamão, em 77 ganhamos o show em Boa Esperança, começamos a fazer várias coisas. Comecei a sacar que o barato da parceria é primeiro pelo fato de que você divide, se for a solidão você divide com o seu parceiro. Fiz com Serjão também algumas músicas, essa parceria surgiu no momento em que a Pá foi embora. Depois me tornei também parceiro do Rodrigo Barbosa, Pestana e Gerrrô. Eu tenho até condições de fazer um disco sozinho em uns dois anos, mas não vejo a menor graça se eu não envolver um monte de gente, quando chamo os meus amigos que gostam de música e que estão em condições de fazer parte é muito bom. No dia do lançamento do meu livro Assuntos de vento tinha muito gente mesmo.

Daniela Aragão: Pois é, eu também estava lá (risos). Me recordo do Sérgio Ricardo, Milton Nascimento, Sueli Costa, Fernando Brant, Jaime Além..

Márcio Itaboray: Foi tudo feito meio artesanalmente, o dia do lançamento do meu cd no Bom Pastor foi um momento que reuniu todo mundo, vários cantores e músicos de ontem e de agora. Falando então na parceria acho que é isso, essa troca, o Zé Renato vem gravar na terça feira uma música que é minha com letra do Rodrigo Barbosa, agora numa música minha feita com o Márcio Hallack a Sueli virou parceira mudando o andamento, então se tornou uma tríade. É esse que é o grande barato, caso contrário não teria sentido, eu pagava um disco, vou trabalhando e concluo em dois anos, e aí? Tenho grandes parceiros, o Rodrigo por exemplo, posso confessar também que eles estão aprendendo comigo, pois sou um compositor que adoro letras que tenham uma densidade existencial, como você disse. O Chico Buarque quando brinca de mudar as rimas que poderiam ser chamadas de fracas, quando ele rima toca com vodka, essas preocupações meticulosas. Então ele diz que gosta de música que a primeira rime com a oitava, mas que a segunda rime com a sexta pois senão vai se perder em Brama, ama refrigerante e amante.

Daniela Aragão: A capacidade que você tem também de identificar a própria musicalidade inerente ao verso que te aparece de forma crua.

Márcio Itaboray:O Pestana fez um samba para o Flavinho da Juventude que é de uma beleza!

Daniela Aragão: Mas retomando a questão dessa irmandade que você faz questão de celebrar e proclamar, jamais posso me esquecer do momento em que gravei sua canção Tempo passado no cd Olhares Cruzados. Era uma noite fria de inverno e o estúdio fervia de gente, tanto entre os que participavam efetivamente do disco como técnico de som, fotógrafo, até os simplesmente amigos. A canção que eu e Márcio Hallack tínhamos a incumbência de gravar era de muito lirismo e conduzida num clima cheio de sutilezas que aparentemente não combinava com a atmosfera meio atribulada do estúdio. Eu e Márcio Hallack atacamos juntos e repetimos mais uns dois takes, quando fui ouvir já mixada e masterizada no cd fiquei comovida com o resultado pela carga de emoção e a limpidez, possivelmente um resultado dessa sua irmandade musical.

Márcio Itaboray: Reafirmo que o grande barato da parceria é dividir, mas com pessoas afins. Também não chamaria pessoas que não tem compreensão da minha música.

Daniela Aragão: Fale desse disco novo, é uma espécie de continuidade do Olhares Cruzados?

Márcio Itaboray: Ele é diferente, pois pensei que o Olhares Cruzados seria o único disco que eu iria fazer resultando então num songbook. Esse é um disco só de músicas recentes, só tem um contraponto que eu fiz com o Gerrô em 78, é um disco que tem uma cara e nasceu de uma idéia que surgiu de um acontecimento que vivi, eu estava com os meus filhos no carro e um amigo me convidou para visitar uma exposição de carros antigos e isso gerou uma conversa e tal e um de meus filhos de repente fala: “- Pô pai você coleciona o que ?”, fiquei pensando, pensando e na verdade coleciono coisas que são artigos impalpáveis, o disco se chama Artigos impalpáveis e iria se chamar Colecionador de artigos impalpáveis. Como é que eu vou colecionar a dor, o arrepio, a febre, a saudade, tudo impalpável. Colecionar coisas materiais é interessante, mas uma boa prova do valor das coleções imateriais é que você se liga muito mais as emoções imateriais, quando por exemplo se destrói uma casa que você morava vai ficar muito mais uma lembrança do lar que você morava do que da casa que foi destruída. O artigo impalpável é o que habita a minha vida, sobrevivo de artigos palpáveis mas eu vivo de artigos impalpáveis que são a matéria viva da minha existência.

Daniela Aragão:Em Olhares Cruzados é muito nítida a riqueza de suas músicas que se dá por meio desses vários olhares que se entrecruzam. A Rosana Brito por exemplo tem uma leitura única.

Márcio Itaboray: Neste novo disco terão outros convidados como o Zé Renato, Edinho Leão.

Daniela Aragão: Muito interessante a entrada do Edinho que é um cara do rock.

Márcio Itaboray: O Edinho me convidou para participar daquele evento que ele faz, a noite dos compositores e eu nunca fui e ele no entanto me mandou uma carta sobre o Olhares Cruzados que me emocionou, e ele é um cara do rock. Me recordo de um acontecimento em que eu e o Fernando Brant fizemos no museu ferroviário, consistiu num debate sobre a ditadura em setembro de 2009 e o Edinho foi lá. Tinha muita molecada nova e tal, daí o Fernando fala para tocar uma música e chamei o Edinho para cantar Feira Moderna comigo e ele ficou louco. Eu gostaria também que o Mamão participasse do meu disco, se ele tiver condições. Estamos no começo da gravação.

Daniela Aragão:Uma curiosidade, os interpretes estão escolhendo as músicas ou você distribui? A Sueli por exemplo escolheu a música?


Márcio Itaboray: A Sueli não escolhe nada (risos), o Chico Buarque falou que o Bituca manda nele e a Sueli falou que nesse ponto eu mando nela. Ela gravou uma música do meu pai com apenas quatro versos, gravou o Lupicínio que também era a cara dela. Essa atual também é a cara dela, ela fala: vou amar, vou sofrer, vou cantar, vou voltar e a cada vez que ela fala eu vou amar é de um jeito, vou sofrer de um jeito, vou sorrir e ela sorri e o sorriso da Sueli é um sorriso que não me lembro bem exatamente o verso da canção que traduz, mas um verso da própria música dela com o Abel Silva, Canção Brasileira deixa claro.


Daniela Aragão: E essa nova canção ela já conhecia?

Márcio Itaboray: Eu mandei para ela e falei que tinha dez dias para poder decorar e gravar. Lupicínio já foi diferente, ela chegou e eu mostrei a música no violão, seguimos para o estúdio e não teve ensaio. Eu e Sueli somos carne e unha, pois ela me conheceu muito novo, quando nos conhecemos ela já estava no Rio e a Bethãnia e a Nara já tinham gravado suas músicas. Ela me pegou lá no Beco e falou; ‘-Esse cara é doido”, eu estava tocando Milagre dos peixes que tinha acabado de sair, ela me pediu para tocar umas duas, três vezes e daí ficamos amigos.

Daniela Aragão: Mas voltando ao livro Assuntos de vento, você acha que ele mereceria uma continuidade?

Márcio Itaboray: Dá vontade de contar tudo o que aconteceu por causa do Assuntos de vento porque aconteceram tantas coisas depois do evento, seria um Assuntos do evento. Depois do livro gravei um disco inteiro com músicas do meu pai, fiz um show com Fernando Brant no Faisão Dourado no dia que o Brizola morreu, voltei a fazer samba enredo que eu não fazia. Então valeria registrar o que me proporcionou esse livro. Mas no fundo aquilo foi uma brincadeira que acabou virando coisa séria. O disco atual está me deixando muito animado, estou muito feliz por estar fazendo de novo.

Daniela Aragão: E o Gustavo Barbosa continua como produtor?

Márcio Itaboray: Sim, sem ele não tenho a menor chance de fazer esse disco. Eu acho que essa sua idéia de reunir depoimentos de músicos da cidade é brilhante, pois não se faz isso mais. Murilo Mendes falou que Juiz de Fora era um vale cercado de pianos por todos os lados e isso tem tudo a ver com esse potencial enorme que a cidade revela para a música. Acho que Juiz de Fora está vivendo um momento musical muito legal, tem muita gente fazendo muito mais coisa do que se fazia naquela época. A época que estou falando não é a época dos festivais, mas na minha geração eram poucas pessoas que faziam. Hoje você abre o jornal e encontra na agenda cultural uma diversidade de opções. Não conheço todo mundo, mas tem o Salim que desenvolve um trabalho muito legal no seu bar, o Thiago Miranda, Dudu Costa, enfim, eles estão fazendo. Mamão durante seis anos ficou fazendo shows permanentemente todas as quintas feiras, é coisa rara um compositor local vivendo de música. Atualmente tem vários instrumentistas na cidade com uma qualidade musical muito maior do que tínhamos. Existe um movimento mais intenso do que havia naquela época. Então a nossa música está bem.

domingo, 17 de julho de 2011

Entrevista com o pianista, compositor e arranjador Cristovão Bastos II Parte


Daniela Aragão: Você é um compositor repleto de premiações.

Cristovão Bastos: Ganhei muito prêmio como arranjador de várias categorias, samba, música popular, MPB, disco instrumental. Ganhei um prêmio de melhor canção com Resposta ao tempo, esses prêmios começaram com o Prêmio Sharp. Como arranjador ganhei oito prêmios, como compositor ganhei um com a música Resposta ao tempo, ganhei também um prêmio de melhor disco instrumental com o trabalho que fiz com o violonista Marco Pereira em que fizemos nossa leitura da obra de Noel Rosa e Ari Barroso.

Daniela Aragão: Ali é uma grande releitura porque são standards, uma leitura muito particular e minuciosa de dois grades compositores.

Cristovão Bastos: Com certeza. Grande parte daquelas músicas que tocamos no disco na verdade eram melodias daquele outro parceiro, o pianista que acompanhava o Noel. Um grande pianista e compositor, autor das antológicas Conversa de Botequim, Pra que mentir e Feitio de oração. Acontece muito hoje a anulação de um parceiro numa música, dia desses vi no youtube a postagem da canção Todo sentimento e escreveram: “- Bela canção de Chico Buarque”.

Daniela Aragão: A velha questão de colocar o intérprete como compositor, mas nesse caso o Chico é o seu parceiro na feitura da letra.

Cristovão Bastos: Na verdade a canção apareceu primeiro e ele colocou uma letra. Temos que ficar atentos de vez em quando por causa disso.

Daniela Aragão: Interessante também o seu trabalho de elaboração de trilhas para cinema

Cristovão Bastos: É um outro campo, comecei fazendo orquestrações para uma trilha do Edu Lobo, fiz para uma refilmagem do Boca de Ouro, que foi feita pelo Avancini. Depois fiz outra com Edu para o filme Canudos, do Sergio Rezende. Fiz com Sergio Rezende dois filmes, música minha e orquestração do Edu em Mauá o Imperador e o Rei e Zuzu Angel. Nesse meio tempo colaborei com Edu para a trilha do Xangô de Baker Street. Ultimamente fiz a trilha do Suprema felicidade do Jabor. Novamente trabalho com Edu fazendo orquestrações para o filme ainda inédito do Hugo Carvana chamado: Não se preocupe nada vai dar certo. O Carvana é ótimo, fiquei muito contente ao trabalhar com ele, senti que ele é uma pessoa sensível pracaramba, ligado na coisa da música e na precisão do que queria, ele sabia dizer o que queria. Estou me preparando pra fazer uma trilha agora para o filme Pixinguinha, um homem carinhoso.

Daniela Aragão: Tenho uma certa curiosidade com relação ao processo de feitura de música para cinema. Você assiste ao filme, discute com o diretor?

Cristovão Bastos: Assisto ao filme, discuto com o diretor. O que é bom é quando se tem um tema específico e se desenvolve. O que você vai fazer é sublinhar, fazer com que a cena cresça ou reduza. Você pode diminuir o impacto de uma cena, você pode criar um impacto num lugar que ainda não tem, pode preparar, pode avisar o espectador com a música, pode enganar o espectador com a música. Você pode colocar uma música numa hora em que vai acontecer um negócio terrível sem avisar nada. A música pode ter um clima de suspense e o espectador às vezes começa a arrepiar o cabelo da nuca por causa da música. Isso depende do que o diretor quer, do que ele quer salientar, o que é importante. É um trabalho fascinante. Fora isso você é capaz de transformar em som a atenção, a alegria, o amor, o êxtase, o medo. Transformar isso em música é um negócio muito legal.

Daniela Aragão: Vi o filme Uma noite em 67 que reúne imagens históricas do festival de 67 que agregou Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Edu Lobo, Sergio Ricardo entre outros. Era um acontecimento popular veiculado pela televisão, mas que primava por uma qualidade enorme que contrasta com o que vemos e ouvimos hoje ser divulgado pela mídia. É nítido esse deslocamento da produção de qualidade, a qualidade parece se situar na margem enquanto o centro fica com o “lixo musical”.

Cristovão Bastos: Acho que as pessoas estão acreditando piamente na mídia, elas perderam a capacidade de escolha e de assumir um gosto pessoal. Acho que a coisa da mídia e da moda envolve muito as pessoas, acredito que muita gente se veste de acordo com o que está sendo ditado por aquele momento. Então a música tem uma mídia toda voltada para uma coisa que é fácil de retorno, acho que as pessoas estão muito preguiçosas. Não é uma coisa da pessoa chegar num lugar e escolher o que quer, ela pode até escolher uma coisa que está na mídia, mas não só isso. As pessoas estão muito entregues.

Daniela Aragão: Você está falando da questão da não capacidade ou autonomia de escolha, mas me chama a atenção o fato de que durante certo período a música popular brasileira de qualidade estava sendo mostrada e assimilada pelo grande público como se verifica no filme Uma noite em 67.

Cristovão Bastos: As grandes gravadoras passaram a querer artistas que vendem dois milhões de discos. Talvez no passado, quarenta, cinquenta anos atrás era normal ter numa gravadora um artista que vendia vinte mil discos. Agora as gravadoras só querem os que vendem milhões. Se você tivesse uma pequena gravadora em que cada um vendesse entre dez e trinta mil discos o faturamento seria bom. A sua gravadora vende no total duzentos mil discos, é uma coisa a se pensar, é um lucro legal e dá para você fazer um investimento interessante. Acho que as mega produções não estão preocupadas com isso, é um discussão complicada. Eu não posso de repente descartar uma mega produção, pois a mega produção é muito boa, ela tem tudo de bom, pode não ter um conteúdo maravilhoso. O que estou achando difícil é encontrar uma mega produção com um tremendo de um conteúdo. Acho que as pessoas estão preguiçosas. Tinha um amigo meu em Marechal Hermes, na época com uns dezessete anos, e que tinha uma coleção de jazz. Não existia a massificação da mídia, existiam coisas ruins também, mas era diferente. Algumas coisas muito estranhas, uma música do Teixeirinha que fez um sucesso absurdo apelidada de Churrasco de mãe. Escutava-se isso, mas ao mesmo tempo um Tom Jobim, escutava-se numa rádio por exemplo o Henry Mancini. Tem uma expressão fantástica para se fazer uma coisa sem escrúpulos que é “otimização dos custos”, uma expressão que foi cunhada para isso. Acho que temos uma otimização dos custos em tudo, o que é mais rápido de desenvolver.

Daniela Aragão: Eu me recordo de um depoimento dado pelo Chico Buarque que causou um certo frisson, ele dizia que o gênero canção constituído por uma letra bem elaborada e uma música bem feita se tornaria extinto. Nós caminharíamos para uma outra coisa, talvez mais próxima da fala.

Cristovão Bastos: Há uma ilusão de que o tempo ficou escasso para todo mundo, isso é uma ilusão. Como eu sou um cara que trabalho com a intuição, a música que eu faço é resultante do meu envolvimento com isso. As vezes tenho dificuldade de verbalizar certas coisas e nem acho ruim isso. Então as vezes eu traço as minhas teorias.

Daniela Aragão: Puxei esse assunto justamente pelo caminho que você trilha, pela qualidade do seu trabalho, pelo preciosismo das suas composições. Um preciosismo que prima cada vez mais por uma clareza e limpidez. Tem também a qualidade dos parceiros envolvidos que são o Chico Buarque, Edu Lobo, Paulinho da Viola . E falei justamente de uma questão suscitada por um de seus parceiros que é o Chico Buarque.

Cristovão Bastos: A música ficou muito veiculada ao mercado e ela é muito mais que isso, o mercado se aproveita, mas ele não é dono da música, a música é uma coisa muito grande, imensa. Acho impossível o mercado acabar com a obra do Ravel, vai ter sempre alguém que vai colocar aquele disquinho e ouvir o Ravel em casa e ficar inebriado. Então não é propriedade da mídia. Isso não acaba com a arte.

Daniela Aragão: É muita gente fazendo coisa boa e que não está sendo divulgada.

Cristovão Bastos: É, mas antigamente não se tinha essa preocupação tão grande em ser divulgado, as pessoas faziam música. A mídia se apossou de tudo, você não vai negar o tempo moderno e a possibilidade que a mídia tem de mostrar uma obra sua, mas ao mesmo tempo isso gera um outro poder, um poder novo. Eu vou mostrar o que eu quiser, o cara que é dono da mídia não vai mostrar tudo democraticamente, pode-se dizer que tem coisas ultrapassadas, coisas que não interessam. Faz um longo tempo, talvez um trinta anos, vi um diretor de gravadora que estava execrando um trabalho do Bill Evans, o que me interessa isso? A visão dele não tinha nada a ver com a música. Acho que isso é um negócio terrível, mas é temporário, acho que você não consegue matar uma coisa que é muito boa. A música não tem nada a ver com isso, pode chegar no nordeste e ouvir o Bumba meu Boi e um diretor de gravadora dizer: - isso não presta, não vende. As pessoas precisam começar a olhar as coisas de verdade.

Daniela Aragão: Você é um músico que viaja muito não é?

Cristovão Bastos: Viajo pracaramba, agora está acontecendo algo interessante comigo, em vários lugares que vou tem sempre um monte de gente que vem conversar comigo, que quer tirar fotografia, que quer saber o que estou fazendo. E não movo nada em relação a isso, tem gente até querendo fazer isso por mim. Não faço isso. Cada dia são mais pessoas que se aproximam, às vezes estou tocando num show e quando anunciam meu nome aplaudem. Eu não fiz nada por isso, então acho que é uma prova. Quer dizer, fiz coisa pracaramba, mas não me movi em direção a mídia. Não posso dizer que a mídia é uma ilusão, digamos que seja uma apropriação indébita.

Daniela Aragão: Me recordo de uma vez em que conversávamos por telefone e você estava no nordeste e entusiasmado comentava sobre as influências daquele local. Seu trabalho capta essa diversidade, essas nuances de um país tão rico.

Cristovão Bastos: Vai lá em Madureira ver a velha guarda da Portela tocando e você vai ter um monte de informação, um monte de música maravilhosa. Vai ouvir o Jongo da Serrinha, Minas Gerais, vai ver as folias, vai ver o Maracatu.

Daniela Aragão: E tudo isso influencia a sua música?


Cristovão Bastos: Sim , Maracatu por exemplo é uma criação fantástica, as vezes estou fazendo uma música e sem querer coloco um acento lá. Fiz um arranjo para o Edu para Ciranda da Bailarina e tem uma levadinha que é uma coisa do Maracatu. Se você escutar agora no disco Tantas Marés, você vai ver que tem sutis influências do Maracatu. Eu fiz sem pensar no Maracatu; mas era coisa que já tinha me atingido.

Daniela Aragão: E ao mesmo tempo tem esse carioquismo, a Bossa Nova também muito impregnada.

Cristovão Bastos: Engraçado, o pessoal fala tanto da Bossa Nova mas a batida do João Gilberto é samba, ele sofisticou mas aquilo é samba, aquilo é tamborim se você escutar “tem tem quim quim”. É o tamborim né? Roberto Menescal por exemplo falou uma coisa interessante, que não estava sintonizado com o pessoal que estava fazendo só música de dor, sofrida e ele gostou da alegria da Bossa Nova: Dia de luz, festa de sol.

Daniela Aragão: Não tem músico que não se diga impactado pelo surgimento do João Gilberto e você?

Cristovão Bastos: João é um grande criador , mas a coisa que mais admiro no João é a tenacidade, tem uma coisa dele que é a obsessão, fica dias numa música para descobrir o formato, uma nota, vai trabalhando com essa tenacidade para chegar no resultado do jeito que ele quer. Isso aí é uma qualidade que o faz chegar nas coisas que ele chega.

Daniela Aragão: João é extremamente moderno, atemporal. E o seus trabalhos atuais?

Cristovão Bastos: Estou pensando em fazer um disco solo, tem filme para fazer e acho que estou começando a retomar as composições que andavam meio paradas.Tem com a Ana Terra, Dudu Falcão, estou para colocar uma música para o Abel faz alguns meses. Basicamente é isso e estou estudando muito.

Daniela Aragão:Muito obrigada Cristovão, com certeza nosso papo ainda vai render...

Cristovão: Ah sim Daniela, temos muita música no ar.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Programação de shows no Festival de Inverno

10/7 Sotão - Rua Direita, 124 – Centro – Tel. (31) 3551-0491

12/7 Spaghetti - Rua Direita, 138 - Centro - Tel. (31) 3552-5090

17/7 Sotão - Rua Direita, 124 – Centro – Tel. (31) 3551-0491

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sexta-feira, 10 de junho de 2011

Ouro Preto sob o olhar de Mauro Rocha


Minha vivência em Ouro Preto tem me trazido uma proximidade maior com as artes plásticas que vislumbro nas belas obras de Carlos Bracher, Guignard, Mauro Rocha e Ivan Marquetti. Mauro Rocha, o mais jovem dentre essa tríade valorosa é um artista que figura praticamente desconhecido, mas que desponta por sua tocante e singular pintura com traçados fortes que ilustram um percurso repleto de meandros, em que uma estética predominantemente realista evidente em suas produções iniciais da lugar a uma manifestação de caráter fortemente expressionista. Ouro Preto e suas casas, igrejas, ruazinhas e personagens anônimos figuram nas pinceladas densas de Mauro Rocha que percorre um universo telúrico e barroco transcendente. Delicadeza e aspereza, lirismo e espanto, um conjunto de aparentes antíteses permeiam as telas desse pintor que vislumbra seu micro-macrocosmo –Ouro Preto com um olhar de homem-menino. Em tons de azul surge um acordeonista que emana ecos pictórico-sonoros, amarelo, dourado e ocre ressaltam de um violoncelista compenetrado em seu ofício. Um menino de faces rosadas toca outro acordeon multicromático.

Rótulos não cabem à magnitude da criação de Mauro Rocha, evidentemente ele é um artista que dialoga com a pintura ocidental e com a linhagem expressionista que inclui sobretudo Van Gogh. Já dizia T. S Elliot que o verdadeiro artista imprescindivelmente carrega em sua criação a memória dos “seus mortos”. “Eu sempre quis criar um elo entre o presente e o passado” afirma o pintor. Artista de alma meio cigana, Mauro Rocha viveu quase uma década na Europa conciliando o ofício da pintura com atividades mais burocráticas que lhe asseguravam a sobrevivência. Flanando por terras estrangeiras, viveu as dores e delícias de um artista jovem em momento ainda de auto- descoberta. De volta ao Brasil a pintura de Mauro desponta mais amadurecida, autoral, concentrada em suas cores e formas. A imersão em outras culturas favoreceu a aceleração do processo de intenso autoquestionamento que resultou em transfiguração. Emociona-me o quadro de feição realista de sua fase inicial que expõe um cenário bucólico em que um sol radiante ilumina a racionalidade do traçado do desenho das galinhas, mas arrebatam-me os quadros em que Ouro Preto e suas casas, ruazinhas e igrejas deflagram um lirismo quase melancólico : “Vi muitos cenários e belas paisagens por onde passei e vivi, mas nada me instiga mais e me inspira e conduz mais a pintar do que Ouro Preto”. Plenamente integrado/concentrado em sua Ouro Preto, Mauro Rocha recria e universaliza a matéria local em que a histórica Vila Rica marcada por sua força de contrastes luminosos e opressivos é caminho para o mundo. Um mundo de vermelhos, azuis, lilases, pretos, verdes, marrons, violetas invadem as telas com suas casas, personagens, igrejas, pedras e estradas labirínticas. Quando passeio com Mauro pelas ruas da cidade me preparo para compartilhar uma visão contemplativa que ele aparenta fazer questão de deixar quase incólume: “Olha só aquele detalhe daquela casinha no meio das árvores, talvez o ângulo da direita retrate melhor. Preste atenção na Casa dos Contos bem ao centro, agora veja aquele conjunto de casas na extremidade, na Rua Direita tem uma casa...”. Vou seguindo seu olhar por vezes cambaleante, por vezes preciso, por vezes angustiado, por vezes feliz por simplesmente estar diante de seu pequeno vasto mundo. Pura de imensidão e beleza é a criação de Mauro Rocha.

sábado, 4 de junho de 2011

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Entrevista com a cantora Kika Tristão


Daniela Aragão: Como começou a música em sua vida?

Kika Tristão: Sei lá, acho que desde que eu abri os olhinhos. Meu pai falava que eu estava no jardim da infância e cantava a música : “Eu gosto da árvore forida, você gosta também.Foi Deus que lhe deu a vida nasceu para o nosso bem”. Eu dizia Forida, devia ter uns quatro ou cinco anos. Música nunca me passou despercebido, eu me lembro que ela sempre me chamou atenção, me tocava, me sensibilizava. Quando ela entrou mesmo foi com uns nove, dez anos quando eu comecei a tocar violão. Eu pedi aos meus avós um violão e eles me deram, então comecei a tocar com uns nove anos de idade. Nessa fase eu morava em barra do Piraí, meu pai trabalhava na rede ferroviária e depois quando nós voltamos para Juiz de Fora continuei meu curso aqui com o Ronaldo Itaboray. Daí ele me falou que eu deveria levar a sério, pois achou que eu tinha uma voz bonita. Participamos de festivais da Pró-Música, depois disso conheci a Sueli Costa. A Sueli foi uma pessoa super importante, pois ela foi me dando caminhos para que eu me tornasse uma cantora profissional, para que eu vislumbrasse um profissionalismo e não ficasse só no amadorismo e tal. Ela me apontou esse caminho e aproveitei, fui para o Rio quando eu tinha uns dezessete anos para fazer aula com o Pepe Castro Neves que era muito amigo da Sueli.

Daniela Aragão: E nessa época a Sueli estava estourando no Brasil né?

Kika Tristão: A Sueli estava estouradérrima com as músicas, (cantarola) “ A minha alma tem um corpo moreno”, era o auge da Sueli e eu curti muito. Foi muito bacana conviver com a Sueli nesse período e ela é uma grande compositora, a simplicidade dela, nunca se deslumbrou, sempre foi muito próxima de nós simples mortais. De qualquer maneira ela me apresentou muita coisa lá no Rio, me abriu portas no Rio e me fez ver a seriedade, essa coisa de você ter sempre que estar buscando, estudando e se informando para não parar. Ela sempre me deu muito apoio no Rio, ela foi meu porto seguro no Rio, pois você sai de Juiz de Fora que é uma cidade pequena de hábitos interioranos e encara uma metrópole. E eu fui para o Rio trabalhando, o Pepe castro Neves me indicou para o produtor Ari Sperlling e eu fui trabalhar com o Wagner Tiso e fiquei fazendo parte do quinteto vocal que era o Viva Voz. Os vocais ficaram muito na minha vida artística no Rio de Janeiro e fui muito operária de música no Rio, aprendi muito, aprendi a ser profissional com a convicção de que eu nunca posso parar de estudar, que tenho sempre que me aprimorar. Aprendi o que é o sucesso, independente de ter ou não ter sucesso você é uma profissional e tem sempre que estar buscando estar com os melhores, isso eu sempre busquei, que é estar com os melhores da música popular brasileira.

Daniela Aragão: Eu conheci você no Mistura Fina fazendo um show com o Be Happy.


Kika Tristão: Pois é, o Be Happy foi uma coisa muito doida, pois eu saí do Viva Voz depois de uns quatro anos, eu trabalhava com o Djavan e já tinha feito toda a temporada do disco Lilás e trabalhei muito. O próprio quarteto foi se desgastando e consequentemente saí, nessa fase eu conheci o Luiz Avellar que foi o meu marido, trabalhamos muito juntos, na época trabalhei muito com jingle, gravação. Nessa fase nós pegamos para fazer a campanha da Coca Cola e o Luiz era o cabeça disso tudo. Era o lançamento da Big coke e da Diet coke, a troca da campanha que era “Coca Cola é isso aí” para “Emoção pra valer”, e nós trabalhamos muito nessa campanha. Era eu, Ana Zinger, Chico Pupo, Márcio Lott, gravávamos todo dia e depois de um certo tempo a coisa começou a soar rápido. O Luiz sugeriu que montássemos um quarteto vocal, desse trabalho da Coca Cola que surgiu o Be Happy. Eu sou muito amiga do João Caetano que é um grande compositor, mas ele trabalhava com moda também e um dia me deu uma camisa com guache com o Smile em que estava escrito Be Happy. Cheguei com essa camisa no estúdio e todo mundo adorou, cheguei no João e pedi mais camisas para distribuir para o pessoal. Naquele dia gravamos todos com a camisa escrita Be Happy e todo mundo começou a falar : _ Ah o Be Happy... Daí surgiu esse nome para o quarteto vocal. As pessoas achavam que era em função da música : - “Don’t Worry be happy” e não era, foi por causa da camisa. Daí surgiu o Be Happy, que foi muito bacana porque o Luiz era mentor dos arranjos, fazia todos os arranjos e foi um sucesso. Fizemos shows no Rio, São Paulo, algumas capitais, fizemos show em Curitiba. Foi intenso, daí fui para Nova York gravar vocal com a Simone, foi uma fase muito produtiva com o Be Happy, muito rica musicalmente. Aprendi muito. A música está sempre mudando de estilo, sempre te impondo e no meio do caminho fui chamada para trabalhar na dublagem de canções dos filmes do Walt Disney. As músicas da Disney te exigem muito que é o tal do canto belting, o canto Broadway.

Daniela Aragão: E essa sua experiência em conjunto é muito salutar, pois você tem essa vivência individual do seu canto, mas você adquire também essa experiência com o outro, aprende a lidar com a harmonização de vozes.

Kika Tristão: O Domingos Rafaele que é um grande crítico dizia que eram quatro solistas cantando vocal, na verdade nós não éramos vocalistas, nós éramos solistas. Os quatro tinham um histórico solo, eu o Chico Pupo a Ana que depois saiu e entrou no lugar, a Aline Cabral que também tem um histórico de solista. Então éramos quatro cantores solistas que fazíamos vocal. Isso diferenciava todo o panorama de vocais, as histórias dos vocais se dividem antes do Be Happy e depois do Be Happy, como disse o Domingos. Nós gravamos o jingle da Brahma: “- a número um” com João Gilberto. Tive o privilégio de gravar com João Gilberto, foi muito emocionante. Tive momentos muito marcantes na minha vida, pois são mais de vinte e cinco anos nessa profissão. Muitos episódios me marcaram muito como gravar com o Milton, Djavan, ele foi musicalmente enriquecedor, trabalhei nuns três discos dele. Trabalhar com o Walt Disney foi fantástico, pois me deu uma visibilidade, criei um público meu que prossegue em comunidades do Orkut e facebook e que conhecem o meu trabalho. Uma das experiências mais fantásticas foi ter gravado com o João Gilberto pois ele é uma pessoa a princípio muito serena, tive uma experiência ótima. Trabalhei com o Tim Maia seis meses fazendo shows pelo Brasil e tive experiências ótimas , nada assim como todo mundo fala.

Daniela Aragão: João Gilberto e Tim Maia são meio antíteses, um é a explosão e o outro a contenção.

Daniela Kika Tristão: Com o João Gilberto o arranjador e produtor era o Eduardo Sotto Neto, ele é um grande arranjador, fez até aquela música famosa do Ayrton Senna. Gravei com eles o jingle do Rock in Rio. Nós entramos no estúdio e chegando lá gravamos o jingle e tal. Quando acabamos tudo João Gilberto abriu a porta do estúdio e disse: “- Essas vozes parecem sinos”. Nós ficamos super emocionados, foi aquela festa dentro do estúdio. Em certo momento rimos, pois ele ficava sempre muito quietinho, mas em certo momento levantou e disse: “- Não estou gostando muito dessa mixagem porque está tudo assim linear, as montanhas não são lineares porque a música teria que ser linear? É uma viagem né? Muito emocionante também foi gravar com Roberto Carlos, fui fazer vocal para um disco dele. Fica tudo na mão do produtor. Antigamente as gravações eram à noite, raramente pela manhã, enfim, músicos, técnicos de som não funcionam bem de manhã. Eu me lembro que era de madrugada e o bar da Som Livre já tinha fechado e o bebedouro ficava no andar debaixo. Na hora que deu um intervalinho saí do estúdio para ver se conseguia água, esse estúdio tem um anexo que é uma sala de televisão. Acabaram os estúdios todos e nem sei esse da Som Livre ainda existe. Aí falei alto: - não tem água vou ter que pegar lá embaixo. Só ouvi uma voz me dizer assim: “-Pode pegar no meu bar”. A primeira coisa que me veio na cabeça foi assim: é o rei. Porque eu já tinha gravado alguns discos dele como vocalista e ele nunca tinha aparecido no estúdio. O universo do Roberto Carlos é muito interessante, por exemplo a questão do figurino, todos da equipe que incluem músicos, técnicos e tal devem ir de branco, azul, não podem ir de marrom, preto. Isso é da superstição dele e é sério. Então escondíamos nossas bolsas que não eram brancas ou azul turquesa. E o Rei foi muito simpático, ele tem uma luz, um negócio diferente. Me recordo que a Sueli Costa falava também da luz de Dorival Caymmi, eu não o conheci. Ele era uma entidade, acho que tem pessoas que são assim mesmo. O Milton Nascimento também me provocava timidez, eu sempre ficava nervosa. Eu me encontrava muito com o Milton, principalmente na época em que era casada com o Luiz Avellar. Foi uma fase muito produtiva que guardo com muito carinho.

Daniela Aragão: Um período muito rico em que a música popular brasileira vivia sob esse predomínio do bom gosto e da qualidade.

Kika Tristão: Tinha muito trabalho e muita qualidade, eu cheguei no Rio e não sabia gravar, nem sequer sabia como colocar um fone. Eu tinha dezenove aninhos né Dani? Essas coisas de saber a distância do microfone e tal, essas coisas, esses conhecimentos hoje você adquire em Juiz de Fora, na época não era possível. A primeira vez que eu entrei num estúdio foi no disco da Funalfa, o primeiro disco da Funalfa em que gravei Beco do Baltazar. Fomos gravar lá no estúdio Hawaí, no Rio, e depois fiquei sabendo que é um dos piores estúdios no Rio.

Daniela Aragão: Essa música é do João Medeiros né?

Kika Tristão: Sim, música do João. O João Medeiros foi uma entidade que em Juiz de Fora não tem mais, e é uma coisa que eu já falei em público. O João Medeiros teve um papel importantíssimo na minha vida e acho que na vida artística de muitos outros de juiz de Fora, pois o João era um crítico, o João Medeiros em Juiz de Fora era o verdadeiro crítico de música. O crítico é muito importante, pois ele vai te dando uma referência, o João tinha uma coisa assim de que eu tinha que crescer. Foi ele até que me apresentou a Sueli Costa, pois ele viu a minha vontade de ser profissional, ele estava lá quando ganhei o festival em Cataguases, ganhei como melhor intérprete. Eu era novinha, tinha dezessete, dezoito anos e cantava. O João me incentivava, ia aos shows, enfim, era importante para mim que desejava me profissionalizar, me tornar de fato uma artista, ouvir dele os julgamentos. Ele estabelecia os parâmetros.

Daniela Aragão: Você disse que o João foi importante para você, para mim também foi fundamental no despontar da minha carreira de cantora. Minha primeira gravação foi a faixa Sol da Tarde, parceria dele com Damásio. João dirigiu um show meu no Musik dedicado as composições de Sueli Costa e Cacaso e mais tarde elaboramos juntos um projeto de um cd inteiramente dedicado as canções da parceria. Infelizmente João partiu antes da aprovação do projeto e não pode participar.


Kika Tristão: Ele que nos apresentou inclusive na ocasião da condecoração do Fernando Brant, lá no Faisão.

Daniela Aragão: Pois é, que interessante. Vale lembrar que ele foi o primeiro parceiro da Sueli.

Kika Tristão: Eles eram grandes amigos

Daniela Aragão: O João tinha um radar para a coisa boa, ouvido apuradíssimo.

Kika Tristão: Sinto hoje a falta desse tipo de crítico como o João. Ficou um vácuo, não teve ninguém que assumisse, que preenchesse esse vazio do João Medeiros. Juiz de Fora precisa, pois a cidade necessita de uma referência, o João conhecia por exemplo o Abel Silva, outros grandes compositores, sabia o que estava acontecendo entre os grandes músicos. Sabia quem tocava pracaramba. Ele uma vez me falou: “- Kika, acho melhor você parar de ouvir Elis Regina”. Eu fui como toda a minha geração da escola Elisiana, como costumamos brincar. Isso que o João falou foi muito importante para mim, ficou na minha cabeça. É sinal de que a partir daquele momento eu tinha que buscar a minha identidade. E o João agregava, ele queria saber sempre o que estávamos fazendo. Além de tudo ele escrevia no jornal, tenho notinhas do João.

Daniela Aragão: Ele era o cara que dava o respaldo.

Kika Tristão: Como eu me deparei com vários críticos no Rio, Mauro Ferreira, Domingos Rafaelli. O Mauro Ferreira é mais ligado no lado da MPB pop e o Mauro Ferreira já é do jazz, o Tárik de Souza que conheci também. A arte precisa disso e Juiz de Fora é uma cidade em que proliferam músicos. Eu acho que sem o crítico a coisa fica no amadorismo, na tentativa do profissionalismo.

Daniela Aragão: Eu convivi com o João nos seus últimos anos de vida muito assiduamente e ele se mostrava muito desencantado com o panorama da música brasileira. Mesmo estando em Juiz de Fora ele parecia sentir-se sem lugar. Não havia para ele mais espaço no jornal para o tipo de crítica que ele produzia. De certa maneira a cidade já começava a viver certa orfandade com ele vivo.

Kika Tristão:A música passou por um processo que o João pegou já no final da vida dele. A música passou por essa crise fonográfica que a muito tempo já vinha. Vale lembrar também a banalização que a internet trouxe para a música. São dois lados, de um lado a facilidade de acesso proporcionada pela internet e por outro a banalização. Antes ficávamos um ano esperando a chegada de um disco do Chico Buarque, do Milton, dos Borges, às vezes dois anos para um disco do Tom Jobim. Era um acontecimento. Eu me lembro quando foi lançado o Saudades do Brasil da Elis Regina que vinha numa caixa e era caríssimo, um negócio inacessível.

Daniela Aragão: A questão é da mudança dos valores da mídia, o que a internet vende hoje. O Chico Buarque deu uma declaração dizendo que achava que o gênero música popular brasileira seria extinto. Essa forma clássica que conhecemos de uma letra bem construída, uma música e uma voz, isso seria uma manifestação do século XX.

Kika Tristão: Eu concordo e obviamente isso vai influenciar as outras músicas. Estou nessa fase do meu novo cd e hoje em dia tem a World Music que aproveita muito a MPB clássica, criou outra roupagem, uma nova forma de interpretação a qual eu me identifiquei pracaramba. Acho que essa coisa passou, como passou o erudito. Se via ópera nos teatros normalmente, era para o povão. Essas coisas vão mudando mesmo, acho que a música está ficando world mesmo, mundo. Não está tão segmentada. Estou até em contato com a Sarah Tavares que é uma grande compositora portuguesa, ela é uma excelente compositora, grande cantora. Ela é premiada nesse segmento que é a World Music que consiste numa MPB com uma roupagem mais moderna. Acho que é um reflexo desse mundo em que estamos vivendo, que é uma coisa mais globalizada. Quer colocar Cítara no meu cd, utilizar uns instrumentos diferentes. O eletrônico está aí e chegou para ficar, os lounges que são muito bacanas. O mundo vivia antes uma coisa muito fechada, as políticas eram muito cruéis e isso de certa forma influenciou a música. Até uma vez eu vi o Roberto Menescal comentar sobre o impacto da entrada da Bossa Nova. É um ciclo, vou fazer regravação de João Donato, Marcos Valle, só que com outra roupagem. Acho que é uma evolução da música e seria importante a presença de um crítico para avaliar isso. Às vezes eu sinto que Juiz de Fora ainda está muito no Trem Azul, é importante você ver o que os grandes músicos estão fazendo, os arranjadores, os produtores. Eu peguei dois grandes produtores que são o Donatinho, filho do João Donato, um garoto com no máximo trinta anos e que já trabalhou com a Fernanda Abreu,Vanessa da Mata e o Alex da Bossacucanova que não perdeu esse caminho que a música tá tomando.

Daniela Aragão: Eu vou puxar um pouquinho para trás aproveitando sua deixa da Bossa nova mencionada um pouco antes. Você gravou um belo disco pela Lei Murilo Mendes com canções de Tom, Vinicius, um repertório primoroso.

Kika Tristão: Esse cd foi um cd projeto, foi na fase em que se estava homenageando os cinquenta anos da Bossa Nova e a MPB também. Escolhi músicas bem clássicas da Bossa Nova como Chega de Saudade, que marcou a Bossa Nova. Gravei Carlinhos Lyra, peguei arranjos de Dudu Lima, Hermannes de Abreu.


Daniela Aragão: São clássicos, mas que constituem em desafios pois o trabalho é para não se deixar cair no lugar comum.

Kika Tristão: Voltamos a João Medeiros novamente, quando eu estava participando de um dos primeiros festivais na minha vida o João se aproximou de mim e disse: “-Kika, aprende a cantar Bossa Nova, pois quem sabe cantar Bossa Nova canta tudo”. É verdade, pois Bossa Nova não é simples de cantar. A Lei Murilo Mendes é fantástica, pois daqui a uns trinta anos a cidade vai possuir um acervo musical inigualável. Na produção do meu disco eu fiz uma fusão entre amigos do Rio e juiz de Fora, o Marcos Suzano tocou no meu cd, o Emerson Dias fez a mixagem do cd. Foi um projeto árduo e gosto muito dele, acho que foi um cd muito honesto.

Daniela Aragão: Ele tem um enquadramento muito bom, pois as vezes aparecem discos muito irregulares. O seu apresenta uma proposta uniforme.

Kika Tristão: É verdade, eu fiz um pouco de Bossa Nova como Chega de Saudade e Coisa mais linda e gravei Vieste do Ivan Lins. Gravei Sol de Primavera. As canções do Ivan são glamourosas. Achei um disco projeto e esse que irei fazer agora pela Lei considero o meu disco de carreira.


Daniela Aragão: Te desejo muito sucesso pois talento não te falta. Obrigada pela entrevista.

Kika Tristão: Eu agradeço Dani, sucesso pra você também.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Entrevista com o pintor Dnar Rocha


Dando uma revirada na minha caixa de guardados acabei encontrando uma antiga entrevista que realizei com o meu amigo Dnar Rocha, talentosíssimo pintor que partiu deixando um enorme vácuo. Esta entrevista aconteceu numa tarde agradável e fria do mês de julho de 1999. Entre goladas de café, pinceladas e alguns acordes falamos sobre arte, música, vida, sonhos. Infelizmente deixei registrado apenas o conteúdo mais formal em que Dnar fala sobre um de seus quadros expostos no Museu Mariano Procópio. A princípio pretendia aproveitar os esclarecimentos de Dnar para escrever uma monografia sobre o quadro, contudo esta conversa acabou guardada num papel que agora já traz certo cheiro de guardado e um amarelo que me transporta para um certo lirismo. Procurei preservar na íntegra a fala de Dnar, mantendo consequentemente o tom de coloquialidade. Infelizmente não consegui uma fotografia do quadro, o que acarreta de certa maneira uma dificuldade para o leitor, pois Dnar comenta detalhes explicitados na obra como cor, forma, etc.

Dnar Rocha: Na ocasião em que eu pintei esse quadro na sociedade Antônio Parreiras armei esse motivo. Só que primeiro eu armei esse motivo com esse tacho num caldeirão, depois botei a garrafa, o caneco, a garrafa deitada e pintei. O objetivo era o tacho como estudo, e o que tem de novo aí na minha pintura é que a outra é mais acadêmica e essa é mais libertária, o excesso dessa sombra escura que tem no caneco mostra que ela está bem vincada, normalmente no academicismo essa sombra não fica assim, parece que o caneco está furado aqui, quer dizer, a violência dessa sombra é uma das coisas boas que tem o quadro. E em segundo lugar a composição, minha natureza morta a partir daí comecou a se agrupar em três elementos básicos, aí tem quatro que se completa com a garrafa, mas a garrafa está tão integrada ao conjunto todo que a composição são três elementos. Tem uma placa no fundo de cinza que serve de anteparo aos objetos, corta as linhas curvas do tacho e corta a mesa, quer dizer, cortar no sentido assim, você tem uma linha horizontal, coloca uma vertical, você corta, cruza, elimina a horizontalidade de uma linha com uma linha vertical. Então tem aí essa garrafa, a garrafa foi tambem uma coisa nova, pela facilidade de motivo começaram a aparecer na minha pintura essas garrafas, pela facilidade de encontrar de fato um motivo. O tacho é feito de uma forma bem moderna, eu acho um tacho bem moderno esse, a maneira de pintar o tacho, com as cores que pintei.

Daniela Aragão: E essa mesa?

Dnar Rocha: Aqui é uma mesa, esse cinza serve de anteparo com o laranja, o vermelho do tacho, o cobre.

Daniela Aragão: E o branco que é uma cor tão predominante na sua pintura aparece aqui nao é?


Dnar Rocha: Ele aparece pela primeira vez aqui, é a primeira vez que aparece completamente branco.

Daniela Aragão: A presença constante do branco considero uma das características mais acentuáveis na sua pintura. Ele vai crescendo?

Dnar Rocha: Vai, vai crescendo, ampliando, eu vou estudando mais a coisa, mais cor, depois coloco mais outros objetos brancos, mas o achado nesse quadro aqui foi esse contraste, essa peça branca, essa composição é bonita, é boa. Essa coisa já pretendia ser uma peça branca, pois ele é até uma louça meio marfim, mas eu de certa maneira já pretendia o branco, tanto que a asa é completamente branca. Nesse quadro não tive muita preocupação com o contorno, fiz alguns contornos mas não muita coisa.

Daniela Aragao: A natureza morta é muito frequente em seus trabalhos.

Dnar Rocha: Eu sempre estudei muito natureza morta por ser uma coisa assim fácil de achar, é fácil você pintar natureza morta porque o motivo está sempre a sua disposição em casa, uma caneca por exemplo. Já a paisagem solicita a saída para a rua e a natureza morta é fácil, sempre foi a natureza morta motivo de estudo para todos os pintores, todo pintor sempre gostou de pintar natureza morta. Cezanne ficava pintando aquelas naturezas mortas anos a fio, um mesmo quadro as vezes. Ele até usava muita fruta artificial, flores artificiais até, ele chegava a demorar tanto num quadro desses que as flores murchavam, as frutas apodreciam. O que o pessoal lá da Antônio Parreiras pintava era isso, então eu entrei pintando esse negócio, natureza morta. Pintei retrato, figura, mas me concentrei mais na natureza morta, tanto que esse quadro que se encontra no museu foi estruturado a partir da natureza morta. O Rui Merheb gostava muito do detalhe dessa garrafa, ele sempre falava assim: " Vi uma natureza morta sua no museu, tem uma garrafa deitada assim bonita".

Daniela Aragão: Voce escolheu essa obra para figurar no museu?

Dnar Rocha: Não, naquele tempo o Salão Antônio Parreiras tinha um prêmio, na verdade eram tres prêmios aquisitivos e parece-me que esse meu quadro conseguiu o terceiro. Os três primeiros prêmios iam para o museu, chamavam-se Prêmio aquisitivo do museu. Eu não sei o tamanho desse quadro, sei que foi pintado em cima de madeira, compensado. Está dando bicho e nao vai durar muito não.

Daniela Aragão: Van Gogh é uma influencia grande em sua pintura?

Dnar Rocha: Hoje estou mais para Van Gogh que para Morandi, mas nessa época eu estava muito para Morandi.

Daniela Aragão: As combinações de cores costumam se repetir em certas fazes de sua criação?

Dnar Rocha: Esse quadro tenta reproduzir com fidelidade as cores que estavam lá no natural, a mesa tinha essa cor, a mesa é cinza, existe essa cor. Essa é uma placa, uma prancheta que a gente usa para pregar papel e desenhar, para fazer fundo. Eu tentei dar um caráter realista, a garrafa é verde, a parede da cor da parede, o tacho da cor do tacho. Só que acabei fazendo esse tacho um pouco mais moderno, as sombras são mais modernas, tanto a do tacho quanto a da garrafa de cima que está em pé, quanto a garrafa que está deitada e o caneco. As sombras é que dão o toque moderno nesse tom. Nessa época eu estava pesquisando para fazer de acordo com o natural, quando eu comecei a abandonar isso, comecei tambem a inventar, por exemplo, se a garrafa estava verde eu colocava ela azul ou vermelho, eu já não obedecia mais a cor que estava servindo de modelo para mim. O objeto que estava servindo de modelo para mim as vezes era revestido com uma outra cor, eu comecei a me permitir fazer isso. Depois cheguei a fazer bem parecido com o natural, dali comecei a mudar as coisas, as cores, a cor da mesa. Entao hoje faço uma natureza morta de imaginação e vou criando, faço uma pintura de criação, vou criando uma natureza morta inventada por mim mesmo, uma coisa que não tem nada a ver com nenhum lugar, não tem nenhum lugar específico que representa, ela existe só no quadro. A minha natureza morta desponta dessa reflexão que faço, essa pintura natural que parte de mim.

Daniela Aragão: O caráter auto reflexivo que é uma questão inerente também a outras categorias artísticas como a literatura.

É o fazer artístico, eu fui questionando essa coisa do que fazer, que os espanhóis falam “Qui a ser”, o que fazer? Vou pintar natureza morta? Vou pintar cavalo? Vou pintar paisagem? Se eu vou pintar natureza morta vou mudar em quê? Vou pintar do natural, vou armar aqueles cachos de uva igual alguns? Não era a minha visão, não era a visão do meu grupo pintar coisas assim muito sedutoras, motivos sedutores. Um cacho de uva caindo assim, o frango, um faisão dourado caindo assim em cima da mesa né? Não era da nossa visão, o meu grupo não tinha essa visão de pintura, o meu grupo rejeitava essa visão. O meu grupo abrange eu, Carlinhos Bracher, Rui, Stelling e Nívea Bracher. O nosso grupo rejeitava a sedução na arte, a palavra certa, essa foi até uma palavra usada pelo Brandão que utilizou essa expressão sedutora. A gente não tinha essa coisa da sedução, a gente não tinha amor a sedução, a gente não tinha vergonha de pintar por exemplo só uma garrafa, ainda que quebrada, ainda que não fosse . ninguém vender aquilo. Eu me lembro de um pintor lá do meu grupo, Waldir ramos, ele fez por exemplo uma vassoura e uma pedra num canto de mesa no chão, quer dizer, aquilo ali jamais ia ser vendido, a não ser para uma pessoa muito especializada, um especialista. Então a nossa pintura tinha uma certa rejeição ao sedutor, a coisa sedutora, a sedução como motivo. A sedução do motivo como forma de vender, facilitar a vida, tanto que nós todos fomos rejeitados, o Rui foi ser bancário, o Stelling foi pintar livro. Tinha o Frederico Bracher, ele fazia aquelas naturezas mortas com aquelas maças que parecia que estava bem no Éden, bem com toda a matéria, toda a propriedade da maça né? As uvas, parecia que você podia chupar a uva. E a pintura não tem essa finalidade, o nosso grupo achava...E essa coisa que eu tô te falando é novidade, eu nunca falei isso. O nosso grupo não tinha essa intenção de fazer um quadro sedutor.

Daniela Aragão: isso é uma inovação?

Dnar Rocha: era uma inovação, nós eramos pintores que não tínhamos direito ao mercado, o mercado rejeitava porque a gente rejeitava a sedução, o mercado pede sedução. O mercado de música por exemplo quer, muito embora eu goste de muita coisa do Roberto Carlos, mas eles querem Roberto Carlos, esse negócio de Tchan, querem o que é apelativo. O que a Globo mostra no Faustão o povão quer. Então, conclusão, quem é que fica fora do mercado? Egberto Gismonti nem aparece no mercado por rejeição do próprio mercado. O mercado rejeita determinados artistas, então o mercado rejeitou Rui Merheb, rejeitou a mim, rejeitou Stelling, rejeitou esses pintores todos. Por isso que a gente sofreu com a pintura, a gente não fazia quadros sedutores. Até que tentei fazer alguma coisa para sobreviver, mas larguei pra lá e não quis saber disso. Eu corri da pintura ruim, quando fiquei em condições de fazer uma pintura melhor, agora dá pra viver de pintura fazendo pintura boa. Esperei que a minha vida se organizasse, porque eu não queria repetir a experiência do Van Gogh e eu pude fazer uma pintura boa.

O caráter reflexivo da sua produção foi se acentuando com a passagem do tempo?

Dnar Rocha: Foi, eu podia ter pintado isso aqui a vida toda tentando pesquisar a matéria que estava lá e que estava bom, esse quadro eu podia ter pintao ele hoje tal o grau de seriedade que ele tem, é um quadro muito sério, as coisas que estão aqui não estão de brincadeira, a pessoa sabe que um pintor desse que fez isso aqui não é um pintor que tá brincando com pintura.

Daniela Aragão: sua pintura mostra constantemente os diálogos que você está traçando, você está dialogando com a pintura ocidental.

Dnar Rocha: É, com a pintura ocidental, com a nossa visão, porque a nossa visão é ocidental, lógico. Tudo o que fazemos a princípio é resultante de uma visão ocidental do mundo, os Árabes, Muçulmanos nem têm pintura, nem tem museu, não tem nada. O problema da religião lá, não se pode cultuar imagens “não farás para ti imagens”, essas coisas todas, que na bíblia também tem um pouco, mas eles lá são mais radicais. Então voc~e pode-se até conhecer um grande escritor árabe mas pintor você não conhece. Então a nossa visão é uma visão do ocidente, a pintura é um produto do ocidente, uma criação do ocidente. Lógico, os pintores lá da Rússia, mas da Rússia europeia, kandinsk, Chagall, esse pessoal todo ali da Rússia pertence a Russia europeia, Moscou pertence a Rússia europeia. Quer dizer, esses pintores todos do ocidente é que são criadores dessa pintura, então pensei em uma ocasião em editar um livro, um livro só das minhas naturezas mortas, ficaria um estudo muito bom. Está na sua mão fazer um livro sobre as minhas naturezas mortas. Você pega isso e depois vai costurando, depois pega as outras. E aí eu fui pintando natureza morta, paisagem, figura, retrato, interiores e tal, fui fazendo um apanhado de tudo, quando você diz “o que fazer de um artista?”, fui aprofundando em todas essas atividades, do que fazer de um pintor.

Daniela Aragão: E o abstracioniasmo, ele não te pegou, não é?

Dnar Rocha: O abstracionismo não me pegou, eu sou um pintor figurativo, muito embora determinados quadros quase caminhem para o abstracionismo, mas ainda permaneço no figurativo. Eu sou um pintor figurativo. Tem muita coisa para estudar na pintura, a cor, a composição, o desenho do quadro. Tem muita coisa para se estudar numa pintura, se você quiser estudar só composição tira essa garrafa, pinta os três elementos e já muda o enfoque. Há muito o que estudar numa natureza morta, o Cezanne ficou pintando uma maçã durante tempos e tempos seguidos. Esse quadro eu acho muito bom.

Daniela Aragão: Uma coisa que você já me disse faz bastante tempo e que nunca mais me esqueci, você falou assim: “ as vezes eu pinto a natureza, os frutos, as coisas, um momento que me toca muito de fragilidade humana é quando eu vejo as pessoas comendo. É uma motivação para você?

Dnar Rocha: Essas coisas de mesa, comida, falam muito para mim, tem muito a ver comigo e eu sou pintor de natureza morta não é por acaso, gosto muito disso. O Luis Affonso falou por exemplo que o momento que mais o comove do ser humano é quando ele está dormindo. Eu por exemplo me toco muito quando a pessoa está comendo, nos restaurantes, daí que vejo que o ser humano é terra a terra, vira um ser terra a terra quando está comendo. Então tenho uma ligação com todos os objetos da cozinha, panela, eu sempre pintei isso: panela, panela, panela,panela.E na minha retrospectiva que irá sair aí proximamente vai ter muita natureza morta, vou fazer questão de enfocar isso.

Daniela Aragão: É mais que urgente fazermos uma antologia da sua pintura para mostra-la a todos. Você é um pintor muito presente aqui em Juiz de Fora, em todos os lugares vemos você.

Dnar Rocha: Sou bem divulgado aqui, o santo da casa aqui comigo faz milagre, sou muito procurado.

Daniela Aragão: A sua pintura é muito marcante, seu traço é facilmente identificável.

Dnar Rocha: É uma pintura de um grupo, é uma visão que não é só minha, é a visão de um grupo que pensava assim. Essa coisa que eu falei do sedutor, tanto que o Frederico Bracher frequentava a Antônio Parreiras e ficava por lá dando palpite sobre perspectiva de garrafa, a garrafa estava fora de perspectiva, umas coisas assim.

Daniela Aragão: Você se preocupava com perspectiva?

Dnar Rocha: Primeiro estudei bastante perspectiva, então aprendi as leis da perspectiva, primeiro tive uma formação acadêmica para depois romper com isso tudo. Estudei desenho academicamente, fiz retratos acadêmicos, naturezas mortas, estudei desenho. A única coisa que estudei com professor foi desenho, com a katarina Zanéti, pintura não, eu quis ser autodidata. Fiquei no grupo livre de pintores da Antônio Parreiras, não tive espaço por exemplo para fazer coisas sedutoras, esse espaço não se deu porque o meu grupo era muito bom, pensava muito bem a arte, principalmente o Rui, o Rui foi o mais radical de todos. Sempre quando ele ía no museu manifestava o gosto pelas naturezas mortas, falava sempre : “uma bela natureza morta”, dava informações sobre o quadro, uma garrafa tombada por exemplo, o meu grupo rompeu desde o princípio com a pintura sedutora. Nós tivemos que fazer um aprendizado, aprender teoria da perspectiva, teoria de luz e sombra, contraste, tem a sombra própria do objeto, a sombra projetada, tem todo o desenvolvimento do contraste. A perspectiva se divide entre a linear e a aérea, temos todas essas implicações, estudamos tudo isso para o exercício da paisagem e também das naturezas mortas e dos interiores. Depois comecei a usar as leis da perspectiva para a minha pintura, para a feitura do meu trabalho e não me preocupando muito com ela, não me preocupando em seguir leis. Nesse quadro mesmo tem coisas, por exemplo, se você observar a linha dessa mesa ela não coincide com a linha da mesa de lá, já há um certo desprezo com esse esmero pela perspectiva, já não me interessava. Aqui por exemplo a perspectiva está correta, o tacho, esse caneco, essa garrafa, uma perspectiva difícil. Esse canto era um elemento do quadro, botei esse cinza, não tive preocupação em ver se ele estava na altura. Aqui eu já comecei a usar a perspectiva a meu serviço, é menos radical do que isso. Tem um caldeirão que tem um perspectiva assim naquela asa dele, e esse eu já comecei a despreocupar, por exemplo, o outro tacho, uma cozinheira passa uma bucha e fica aparecendo uma sombra assim do cobre. Aqui eu aboli essa parte do academicismo da pintura.

Daniela Aragão: Picasso teve suas fases rosa e azul, seria possível alguma classificação em sua obra? Temporal?

Dnar Rocha: Eu tive pinturas brancas e pinturas mais com cor e sem cor, tem uns que eu radicalizei geral, muita massa de tinta. Em pintura o resultado é o que interessa, se tem massa ou se é aguado isso não importa.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Entrevista com o arranjador, pianista e compositor Cristovão Bastos. Part I



Daniela Aragão: Quando a música apareceu em sua vida?

Cristovão Bastos: Aos sete anos de idade numa apresentação de acordeonistas no bairro Marechal Hermes, em que nasci e morava. Falei com meu pai que queria estudar acordeon e no mês seguinte eu já estava numa academia começando a estudar.

Daniela Aragão: E o piano?

Cristovão Bastos: O piano eu conheci na escola de acordeon, entrei numa escola para aprender acordeon aos sete anos, tinha nessa escola um piano que me chamou atenção e comecei a experimentar por pura curiosidade com uns dez para onze anos, e um pouco mais depois que eu me formei aos treze anos. Me formei em acordeon nessa escola que era de música, mas não consistia num conservatório, era como se fosse. A prova final acontecia no centro da cidade, não na escola em que eu estudava, em seguida vinha um diploma conferido pelo professor.

Daniela Aragão: Interessante observar o seu percurso que bate com a história da formação musical de outros pianistas como João Donato. Você fez a transição do acordeon para o piano, acordeon era um instrumento mais usual na época. O Sylvio Gomes passou por esse processo também.

Cristovão Bastos: Teve uma época em que o acordeon foi uma febre, tinham na escola em que estudei três ou quatro cabines destinadas ao estudo de acordeon. Tinha uma sala para teoria e solfejo. Aconteciam aulas de hora em hora e todos os horários eram preenchidos, imagine quatro professores dando aula, ao menos oito por dia.

Daniela Aragão: Como apareceu sua faceta de compositor?

Cristovão Bastos: A composição apareceu cedo, a primeira de que me lembro aconteceu quando eu tinha uns dez anos e fiz uma música com um parceiro do meu professor de acordeon, ele se chamava Adilson. Ele fez uma letra e nós tocamos para a namorada dele que ficou fascinada pela música, e me lembro de um fato engraçado, estávamos justamente na casa dela compondo essa canção quando pedi uma água e ela falou: “-Essa água é abençoada”. Eu era uma criança e não consigo me lembrar da música.

Daniela Aragão: Você fez cedo a opção pelo piano, tinha já a convicção de que seria músico profissional ou foi um processo espontâneo?

Cristovão Bastos: Foi completamente espontâneo, eu não coloquei na minha cabeça que seria um músico de qualquer maneira. Acontece contudo que sempre fui absolutamente apaixonado por música, com dois meses de escola de música já tirava músicas da rádio e tocava, eu tinha uma curiosidade musical muito grande. Na escola pública tinha sempre a quadrilha do meio do ano, eu devia estar com uns dez anos de idade e me lembro de coisas assim, eu ia tocando e inventando a quadrilha, tocando coisas que não existiam. Eu nunca voltava para o mesmo tema, ia inventando, inventando. Acho que foi a primeira manifestação de que me recordo de improviso e de composição, pois eu ia criando temas, passagens, modulações e o interessante é que as pessoas não notavam, achavam que eu estava tocando música que já existia.

Daniela Aragão: Já tem todo um lado do arranjador florescendo aí não é? Esse arranjador ainda menino que vinha introduzindo modulações, nuances muito próprias.

Cristovão Bastos : Acho que sempre tive cabeça de arranjador, posso falar do primeiro grupo em que trabalhei que era o do Crésio Augusto, que foi meu professor de acordeon. Essa minha primeira relação com o piano se deu através dele, porque ele tocava piano no grupo Crésio Augusto e seu conjuto, eu tocava acordeon, tinha um guitarrista, um baterista, um saxofonista. Tem coisas que considero de muita importância para mim, por exemplo esse primeiro grupo em que fui tocar onde o Crésio me apresentou a um cara chamado Pitanga, que tocava guitarra, mas sem nunca ter estudado teoria musical. Quando vi esse cara tocar fiquei fascinado e pensei: - pô, nunca vou tocar como esse cara! Eu observava esse cara que considero meu primeiro grande mestre. Um cara na qual aprendi muita coisa observando, eu chegava, via ele tocar, pedia para repetir o acorde e ele tocava mas não sabia explicar. O lance de tocar piano e acordeon são coisas diferentes pois o sistema cromático indica a diferença. O acordeon você encosta na tecla, o meu primeiro contato com o piano foi assim, eu ficava tentando tocar mas apanhava muito da mão esquerda. Comecei a tocar numa boate aos dezessete anos e nem poderia na verdade por não ter ainda dezoito. Eu não sabia o que faziam as moças que trabalhavam na noite, tamanha a minha ingenuidade. Um dia o dono da boate falou que o pianista iria embora e perguntou se eu sabia tocar, daí me introduzi na carreira de pianista. Eu sabia colocar a mão no piano, mas tocar era outra história e resolvi no peito, trabalhei um tempo nessa boate e depois comecei a tocar num conjunto. Começou assim em Cascadura, num gesto bem juvenil.

Daniela Aragão: Corajoso

Cristovão Bastos: Por outro lado eu me lembro que eu tocava acordeon

Daniela Aragão: Você é um pianista que construiu sua formação de maneira autodidata?

Cristovão Bastos: Completamente, embora sempre tenha o diálogo com outros músicos, informações compartilhadas.

Daniela Aragão: Você tem composições com vários parceiros como Aldir Blanc, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Ana Terra e Abel Silva..

Cristovão Bastos: Tenho uma parceria somente de choros com Paulinho da Viola, nesse tempo nosso de parceria temos quatro músicas juntos. Ele é meu compadre, padrinho do meu filho mais velho, o Allan.

Daniela Aragão: Com cada parceiro implica uma construção musical diferente?

Cristovão Bastos: Eu acho que não. Quando mostro uma música para um parceiro e ele gosta, a minha responsabilidade acabou. Então quando um parceiro me dá uma letra para eu musicar, a responsabilidade dele também acabou. É assim com Ana Terra, Sérgio Natureza, Paulo César Pinheiro. Do jeito que você faz a pergunta imagino que você queira dizer quando a parceria acontece junto.

Daniela Aragão: Pois é, Aldir é um, Ana Terra é outra, Paulo César, Chico Buarque, cada um com sua singularidade. Esses encontros são com pessoas diferentes que trazem suas próprias marcas.

Cristovão Bastos: Uma mesma música que eu desse para Aldir, Ana Terra ou Paulinho a diferença estaria por conta do parceiro.

Daniela Aragão: Se por exemplo você está num processo mútuo?

Cristovão Bastos: Isso vai se dar na empatia. Você pode inverter o processo assim: se uma pessoa dá uma letra para mim e a mesma letra para Paulinho da Viola.

Daniela Aragão: Aproveito para te perguntar sobre suas duas belíssimas composições que já se tornaram de certa maneira antologizadas: Resposta ao Tempo, com Aldir Blanc e Todo o sentimento, com Chico Buarque.

Cristovão Bastos: As duas músicas eu mostrei para os parceiros quando já estavam prontas e havia passado um certo tempo. Todo sentimento, quando mostrei para o Chico, talvez já tivesse passado uns dois meses. Mostrei primeiro para a Miúcha que gostou muito.

Daniela Aragão: A gravação de Nana de Resposta ao Tempo é única, sublime, fica difícil imaginar outras depois dessa.

Cristovão Bastos: Um arranjo feito pelo próprio compositor que trabalhava com Nana, eu já devia fazer coisas com Nana há uns dez anos quando essa música foi feita. Nós temos uma afinidade musical muito grande, não tem explicação para o que eu senti quando fiz esse arranjo, é uma coisa de momento, essa eu cheguei no estúdio e cinco minutos depois fiz a introdução.

Daniela Aragão: Interessante você ter me dito ontem que a introdução tem uma marca tão densa e impactante que quando você toca as primeiras notas o grande público de imediato reconhece e corresponde efusivamente.

Cristovão Bastos: Dá um frisson na platéia, tem aquelas meninas que gostam. Não foi uma música pensada pracaramba e nem feita para a minissérie. Eu acho que essa música tem a força dela embora a televisão seja um veículo legal.

Daniela Aragão: Interessante é que tanto Todo Sentimento quanto Resposta ao tempo trazem a marca do tempo e vista por dois grandes compositores que são Chico Buarque e Aldir Blanc. Em Todo Sentimento se tem a marca da vivência do tempo de uma relação amorosa, a história de um casal, enquanto em Resposta ao tempo se tem o tempo em sua dimensão ampla, existencial, metafísica. Você parece trazer essa sugestão da temporalidade em sua música.

Cristovão Bastos: Eu compus raio de luz com Abel Silva, canção que foi até tema de uma novela, é absolutamente leve: “Você chegou, iluminou o meu olhar”. Foi gravada pela Barbra Streisend, ela gravou com um arranjo lindo. Eu coloco muita música no facebook, certa vez um cara disse por lá que o arranjo era pasteurizado. Que coisa bonita que a Barbra fez e a madrinha da música foi Itamara Koorax, que levou para o Abel. Suave veneno foi encomenda.

Daniela Aragão: E Cinquenta anos, sua parceria com Aldir?

Cristovão Bastos: Ele estava fazendo o disco 50 anos e me pediu uma canção, aí eu mandei essa canção para ele, que se tornou a canção do disco. Ele me ligou as duas ou três da madrugada.

Daniela Aragão: Eu acho que essa canção tem um eu muito marcadamente masculino por isso considero antológica a gravação do Paulinho da Viola.