domingo, 4 de janeiro de 2009

Belezas acesas por dentro



Há cerca de uns sete meses andei fazendo uma pesquisa sobre as cantoras da MPB desde a era do rádio. Passei por Carmem Miranda, Emilinha, Marlene, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Dolores Duran, Maysa, Sylvia Telles, Dircinha Batista, Elizeth Cardoso, Nora Ney, Nara Leão, Elis Regina, Gal Costa, Maria Bethânia, Rita Lee, Joyce, Nana Caymmi, Marisa Monte, Adriana Calcanhotto, Cássia Eller, até as mais atuais Vanessa da Mata e Roberta Sá.

Muitas cantoras acabaram ficando de fora, pois meu foco se direcionou para a questão das “escolas do canto”, ou seja, as cantoras fundadoras de estilo e as sucessoras. Fui ouvindo e analisando essas vozes procurando perceber as particularidades, semelhanças e influências. Elis Regina afirmou que se espelhava em Ângela Maria, mas ouvindo seus primeiros discos nota-se uma enorme semelhança entre seu canto e o da cantora e compositora Dolores Duran. Maria Bethânia traz muito da interpretação expressionista de Dalva, e as sopranos Marisa Monte e Vanessa da Mata são filhas da Gal Costa dos tempos do desbunde tropicalista.

Vanessa da Mata me parece uma releitura da Gal dos anos sessenta e setenta. Seu figurino traz uma profusão de saias coloridas e colares que dialogam com a fase tropicalista e psicodélica dos discos Gal Legal e Fatal. Os cabelos enrolados e muito volumosos também remetem a Gal de “divino maravilhoso”: “É preciso estar atento e forte/Não temos tempo de temer a morte”. Quanto ao aspecto musical, alguns arranjos evocam uma atmosfera neo-tropicalista, em que a voz de Vanessa brilha com sua leve rouquidão e a emissão de agudos cristalinos.

De tanto ouvir as músicas de Vanessa da Mata tocando por todos os cantos, me bateu uma enorme vontade de resgatar Gal Costa, que deixei na geladeira desde o excelente Mina d’água do meu canto. Este disco que reunia standards de Chico Buarque e Caetano Veloso, colocava em evidência a cantora baiana no auge de seu domínio técnico. Afinadíssima e com uma concepção rítmica admirável, ela interpretou magistralmente O Quereres e o rapp Língua, de Caetano Veloso. Com a voz muito bem colocada (graves e agudos em equilíbrio), Gal Costa explorava todas as possibilidades que seu instrumento oferecia: “Por isso uma força me leva cantar/Por isso essa força estranha/ Por isso é que eu canto, não posso parar/ Por isso essa voz tamanha”.

Infelizmente nos discos que se seguiram Gal foi apresentando performances cada vez piores, a voz começou a perder brilho e afinação. Acredito que no caso dela a menopausa deva ter sido a grande responsável pela alteração, já que a redução acelerada de estrógeno afeta o desempenho da voz no que diz respeito a emissão de notas agudas. Entretanto não foi unicamente a voz que sofreu transformação, guardo na memória a triste imagem de Gal cantando num reveillon há uns seis anos com um figurino sofrível, composto por uma roupa inteiramente retalhada pelas mãos de tesoura de Edward, aquele do filme.
Mas deixemos de lado as críticas negativas, porque Gal Gosta é uma cantora que construiu uma carreira respeitável. Para celebrar meu momento de reconciliação escolhi a deslumbrante Lágrimas Negras, canção de Jorge Mautner e Nelson Jacobina gravada por ela no disco Cantar, de 1979. Tudo é bonito demais em Lágrimas Negras, a voz impecável de Gal, a elegância do arranjo e guitarra de Perinho Albuquerque e os versos de Jacobina: “Na frente do cortejo o meu beijo/Muito forte como aço, meu abraço/São poços de petróleo a luz negra dos seus olhos/ Lágrimas negras caem, saem/ Dói//Belezas são coisas acesas por dentro/Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento”.

Depois resolvi reouvir da primeira a última faixa Água Viva, um dos discos de Gal que mais me influenciou. É primoroso o trabalho visual do encarte que mostra a cantora submersa nas águas e envolta por borbolhas, puro talento da fotógrafa Marisa Álvares Lima, esta que registrou vários momentos de sua carreira. Água Viva impressiona pela quantidade de talento reunida: “isso se fazia naquele tempo de sonhadores e ousados”, como disse meu amigo, o saxofonista Glaucus Linx. Penso que Glaucus está com a razão, ali sonhava o Manuel Audaz Toninho com sua guitarra, Wagner Tiso com seus acordes cheios, Ruy Guerra com seu talento cinematograficamente poético, Sueli Costa e Abel Silva com as angústias e alegrias da “vida de artista”: “O que é uma vida de artista/ No mercado comum da vida humana/Um projeto de sonho inocente/ Eu talvez não te veja essa semana”.

Água Viva mostra a beleza criativa desses sonhadores, conforme as palavras de Glaucus. Todas as gravações estão inundadas de calor humano, ouve-se os músicos não somente em seu caráter virtuosista, mas acima de tudo tocando com a emoção e o prazer do ofício. As canções de Dorival Caymmi, Tom Jobim, Gonzaguinha, Caetano Veloso, Sueli Costa e Chico Buarque ganham uma interpretação única na voz cristalina de Gal.

Água Viva é um disco de esteta, mas com alma. Não há nada sobrando ou faltando, emociona todo o tempo com seus contrastes que ora assumem ares de pleno vigor “erótico”, como quer Paula e Bebeto: “É vida, vida que amor brincadeira, à vera/Eles amaram de qualquer maneira, à vera/Qualquer maneira de amor vale a pena/Qualquer maneira de amor vale amar”. Ora de puro lirismo como em Pois é, realizada apenas com a voz de Gal e o piano de Tomás Improta: “Pois é/Fica o dito e redito por não dito/ e é difícil dizer que inda é bonito/ Cantar o que me restou de ti”.


Vou ouvindo e ouvindo, de novo e de novo Gal, é divino maravilhoso.